• Ilustríssima

    Monday, 06-May-2024 09:39:21 -03

    Leia texto inédito de Rodrigo Naves

    RODRIGO NAVES
    ilustração MARIANA SERRI

    13/12/2015 02h08

    Foto Danilo Verpa/Folhapress

    Minha memória funciona por associações que, depois de estabelecidas, raramente me traem. Já um nome isolado (de pessoa, árvore, ou fruta), que o uso ainda não gravou em minha mente, me deixa em meio ao mais inóspito deserto, como se tivesse sido abandonado em um mundo desconhecido.

    Há pouco tempo conheci uma jovem chamada Milena. Por motivos que não vêm ao caso, era importante para mim não esquecer seu nome. Reparem o caminho que fiz. Gosto de arte. E pensei em associar o nome de minha jovem amiga à famosa "Vênus de Milo", que não a lembra em nada. Nunca mais esquecerei seu nome.

    Esses processos são conhecidos, e várias correntes da psicologia já os comprovaram empiricamente. Há um outro fenômeno ligado à memória que me deixa ainda mais intrigado. Trata-se daquelas situações em que momentaneamente não nos lembramos de um nome e ficamos cutucando o cérebro até o encontrarmos.

    Que estranha estrutura nos garante que naquela varredura que fazemos nos milhões de nomes que armazenamos seja justamente aquele único que confere com o nome procurado?

    Essas minhocas têm ocupado minha mente desde que uma queda embaralhou os fichários do meu cérebro. Às vezes procuro relacionar coisas e acontecimentos que presencio à pessoa que sou ou fui. Dificilmente avanço na investigação. A corrente de eventos que compõe uma existência tem nexos muito diversos dos que unem Milena a Milo. Talvez seja essa uma das razões de tantos dos nossos esquecimentos

    E as imagens que faço girar na minha mente em busca de um rosto familiar que me ajude a sair do alheamento parecem girar em falso, como se aquele palimpsesto que nos acode tantas vezes tivesse sido apagado com ácido.

    Não levo uma vida miserável. Consegui refazer uma rotina, trabalho e tenho uma existência digna. Algo me diz porém que amei desesperadamente uma mulher cujo rosto desapareceu, embora ambos continuemos vivos.

    RODRIGO NAVES, 60, crítico de arte, é autor, entre outros, de "A Calma dos Dias" (Companhia das Letras).

    MARIANA SERRI, 33, é artista plástica.

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024