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    Os labirintos da obra do performer John Giorno em Paris

    ADRIANA FERREIRA SILVA

    20/12/2015 02h02

    RESUMO Mostra no Palais de Tokyo, em Paris antecipa os 80 anos de John Giorno, que foi amante de Andy Warhol e personagem de filmes experimentais como "Sleep" (1963). Ele é homenageado por seu atual companheiro, o escultor Ugo Rondinone. Poesia, pintura e budismo são os eixos da exposição, dividida em oito seções.

    André Morin/Divulgação
    Sala da mostra recupera documentos do minucioso arquivo de John Giorno
    Sala da mostra recupera documentos do minucioso arquivo de John Giorno

    No início dos anos 60, um dos passatempos preferidos de Andy Warhol era filmar seu jovem amante. Sua câmera super-8 seguia John Giorno pela casa, enquanto o poeta lavava louças nu, descansava no jardim ou se divertia com amigos. Os registros domésticos eram ensaios para o primeiro filme experimental de Warhol, "Sleep" (1963), no qual, ao longo de mais de cinco horas, tudo que se vê na tela é Giorno dormindo.

    Todos esses "screen tests" –alguns até então inéditos–, além do próprio "Sleep", estão em exibição numa das salas da exposição-obra "I <3 John Giorno", em cartaz até 10 de janeiro no Palais de Tokyo, em Paris. O evento concebido pelo escultor suíço Ugo Rondinone, 51, é o maior realizado sobre o poeta, pintor e performer norte-americano. Também é uma declaração do amor de Rondinone por Giorno, seu companheiro há 18 anos.

    Os dois se conheceram em 1997, quando Rondinone convidou Giorno para participar de uma instalação que reunia outros quatro poetas. "Eu me apaixonei por sua agilidade, seu discurso", diz o suíço. "Essa união é também o casamento de dois mundos. O da poesia, sobre o qual sempre tive interesse, e o das artes plásticas."

    Esta é a terceira –e definitiva– mostra em que Rondinone rende homenagem a Giorno. Nela, "esculpiu" oito capítulos, conectados como um labirinto, em referência às oito décadas de vida de John Giorno –que se completam em dezembro de 2016. Em cada espaço, o suíço expõe facetas do nova-iorquino, enfatizando três "dimensões" que, segundo ele, definem sua personalidade: a poesia, a pintura e o budismo.

    "John foi pioneiro nesses três universos. Ele é um dos únicos ícones remanescentes da geração que criou a verdadeira cultura norte-americana, no início dos anos 1960", afirma Rondinone.

    "A amizade com os pintores da pop art influenciou sua maneira de escrever e transformar os poemas em telas. Ele foi o primeiro a vislumbrar a possibilidade de usar o microfone para fazer performances e iniciou uma prática que teria repercussões no movimento punk, nas cenas de 'slam poetry' e poesia sonora e no rap", continua o curador. "E foi ele quem introduziu o budismo tibetano nos Estados Unidos, em meados dos anos 1970."

    PORÃO

    Rondinone começou a idealizar seu tributo em 2000, quando teve acesso aos 15.147 documentos que o parceiro guardava no porão da casa dos pais, em Nova York. "Desde 1958, John mantém muito bem organizadas lembranças familiares, registros de viagens e da vida mundana, poemas, reportagens sobre ele, anúncios. Fiquei muito impressionado com seu acervo. O desafio de apresentar esse arquivo literário sob a forma de uma exposição foi a principal razão dessa mostra."

    Após a descoberta, ele contratou dois especialistas para catalogar os documentos, divididos por décadas e compilados como livros.

    Cópias desses compêndios estão disponíveis para consulta numa instalação dentro de uma sala cujas paredes são cobertas por xerox desses mesmos arquivos, impressas em folhas coloridas nas sete tonalidades do arco-íris –referência tanto ao papel de Giorno na militância gay quanto à profusão de tonalidades de suas serigrafias.

    A participação de Giorno no processo resumiu-se a entregar a Rondinone a chave dos arquivos. "Não se trata de uma retrospectiva, mas de uma criação de Ugo sobre o meu trabalho", afirma Giorno.

    A arrumação trouxe à tona lembranças, como os vídeos preparatórios para "Sleep", que estavam guardados no Andy Warhol Museum, em Pittsburgh.

    Os dois se relacionaram por três anos, entre 1960 e 64. "Andy era um homem lindo", afirma Giorno. Em torno do casal, orbitavam, entre outros, os pintores Robert Rauschenberg e Jasper Johns, a coreógrafa Trisha Brown, o músico John Cage e a cantora Debbie Harry. "No começo dos anos 60, éramos um grupo de artistas amigos, interessados uns nos outros. Ninguém era famoso. Depois, todos se tornaram 'superstars'."

    Esses personagens foram fundamentais na formação de Giorno que, até se juntar a essa turma, atuava como corretor de ações em Wall Street. "Desde os 14 anos eu sabia que era poeta", afirma ele. "Mas, quando terminei a faculdade, meus pais disseram: 'John, nós vamos continuar a te ajudar com dinheiro, mas achamos que você deve encontrar um emprego'."

    As operações na bolsa de valores de Wall Street começavam às 10h e terminavam às 15h, deixando a Giorno tempo livre para escrever. Mas, em dado momento, achando tudo uma "baboseira", pediu demissão. Com o apoio financeiro dos pais, dedicou-se à poesia. "De repente, meus textos começaram a ser publicados e a repercutir. Quando o crítico do 'New York Times' fez uma resenha sobre mim, meus pais disseram: 'Parece que John está fazendo a coisa certa'."

    À época, os poetas de vanguarda estavam ligados à Escola de Nova York de John Ashbery, Frank O'Hara e Kenneth Koch. "Eles estavam preocupados com o modernismo, algo que aprecio, mas não me interessava", explica Giorno. "Eu era fascinado pela poesia lírica da geração beat, que me levou a lidar com os textos de uma maneira diferente. Livros e revistas são importantes, mas não o único meio válido. Queria abrir a poesia para o máximo de possibilidades."

    Assim nasceram as performances que Giorno realizava diante da nata da vanguarda nova-iorquina, repercutindo no imaginário de jovens artistas como Patti Smith e Laurie Anderson. "Quando comecei a promover esses encontros, em 1961, o único poeta a fazer algo parecido antes fora Allen Ginsberg, com 'O Uivo'", afirma. "Os outros todos se reuniam apenas para ler trechos de livros. Nunca me prendi a um pedaço de papel."

    'THANX'

    No primeiro capítulo da mostra, Rondinone apresenta uma versão recente dessas performances, "Thanx 4 Nothing", (obrigado por nada), poema escrito por Giorno ao completar 70 anos. Numa sala escura, quatro telões exibem o autor "agradecendo a todos por tudo"–incluídos na lista drogas, amantes, mortos e o budismo.

    O formato seguinte testado por Giorno, em 1968, foi o de transformar poemas em imagens, dando início à icônica série "Poem Painting". Nos 40 anos seguintes, ele pintou cartazes, lambe-lambes e telas de dentro das quais saltam frases como "Life Is a Killer" (a vida é uma assassina). No mesmo ano, Giorno inventou seu trabalho de maior repercussão, "Dial-A-Poem" (disque um poema), primeiro experimento em poesia sonora a utilizar uma mídia então moderna, o telefone. Ao ligar para uma linha 0800 criada para a obra, ouvia-se um de dez poemas na voz de William Burroughs, Allen Ginsberg, Debbie Harry e John Cage, entre outros 200 convidados.

    O "disque-poema" recebeu cerca de 60 mil chamadas por semana –número máximo suportado pelo sistema telefônico da época–, somando 1.112.337 em cinco meses.

    O experimento foi repetido dois anos depois, no MoMA, e volta à ativa no Palais de Tokyo (0800 106 106), com opções de texto em francês e inglês, interpretados pelo próprio poeta e por estrelas como Patti Smith, Serge Gainsbourg, Simone de Beauvoir, Marguerite Duras e Louise Bourgeois.

    Outra tentativa de poesia sonora recuperada no evento parisiense são os registros em vinil, CDs e cassetes lançados entre 1972 e 1993 pelo selo independente Giorno Poetry Systems Records. "Comecei essas gravações com bolsas do governo e nunca ganhei dinheiro com elas", afirma Giorno. "Eu as mandava de graça para as rádios universitárias tocarem e, depois de um tempo, essas faixas se tornaram um sucesso. O álbum de William Burroughs teve uma repercussão incrível. Entrou no primeiro lugar da lista de mais tocados."

    Burroughs morou dez anos no loft de Giorno em Nova York. Seu quarto, com uma pequena mesa e uma máquina de escrever, mantém-se intacto no número 222 da Bowery Street, endereço de Giorno há 53 anos. Ali, mantém uma rotina diária: passa as manhãs escrevendo; à tarde, pinta. O salão também é espaço de meditação e celebrações budistas –seu altar caseiro é reproduzido por Rondinone tal qual o original num dos compartimentos do Palais de Tokyo, enfeitado por quadros que retratam o budismo, cedidos pelo museu Guimet, de Paris.

    POP

    Uma grande seção da mostra dedica-se a revelar como sua obra reverberou na cultura pop, por meio de textos, pinturas, vídeos e performances feitos por artistas de diferentes décadas.

    Um deles foi Michael Stipe, vocalista do REM, que, inspirado nos "screen tests" de Andy Warhol, fez de Giorno personagem do videoclipe da canção "We All Go Back to Where We Belong" (2011), exibido no hall de entrada do museu. Há ainda retratos dele pintados por Billy Sullivan, Elizabeth Peyton e Verne Dawson, e um remake de "Sleep", batizado de "Sleep Talking", por Pierre Huyghe.

    Na abertura do evento, em outubro, de braços dados com Rondinone, Giorno posou para fotos, respondeu a perguntas, distribuiu abraços. Hoje, acredita que colaborou para que os últimos 50 anos tenham sido, segundo ele, "a era de ouro da poesia". "Nunca na história a poesia foi tão divulgada, em livros, como rap, slam ou por meio de novas tecnologias", acredita. "As pessoas dizem: 'A poesia está morta'. As formas tradicionais sim, porque elas morrem todos os dias. Nada deve durar para sempre. Mas novas formas de poesia floresceram. Fico muito feliz."

    ADRIANA FERREIRA SILVA, 40, é jornalista e correspondente da revista "Marie Claire" em Paris.

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