O que diriam os patriarcas que fundaram os EUA sobre o plano de Donald Trump de barrar a entrada de muçulmanos no país?
Entre os mais de 37 milhões de livros da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, um deles poderia servir neste momento ao histriônico bilionário como lembrete do espírito de liberdade religiosa que está nos alicerces do país que ele quer presidir.
Trata-se de uma cópia do Alcorão, o livro sagrado do islã, que pertencia a Thomas Jefferson. Principal autor da Declaração de Independência (1776) e terceiro presidente dos EUA (1801-09), Jefferson foi um dos mais influentes "founding fathers" (pais fundadores), como são conhecidos os patriarcas na nação. Em 1765, quando era um estudante de direito, comprou uma tradução para o inglês do Alcorão que faria parte de sua biblioteca de mais de 10 mil livros e de sua crença radical na liberdade religiosa.
CONTRA A CORRENTE
A relação do terceiro presidente americano com o texto sagrado do islã é contada em "Thomas Jefferson's Qur'an" (o Alcorão de Thomas Jefferson), livro fascinante da historiadora Denise Spellberg.
Era uma época em que a maioria dos americanos já via com desconfiança os muçulmanos, um sentimento importado da Europa, e na qual até a minoria católica tinha poucas defesas legais no ambiente dominado pelos protestantes.
Inspirado pelo filósofo inglês John Locke, pai do liberalismo moderno, Jefferson buscou conhecimento sobre o islamismo para solidificar suas ideias sobre a tolerância religiosa, mesmo sem jamais ter encontrado um muçulmano.
Em seu livro, Spellberg destaca que a extraordinária qualidade visionária de Jefferson e de outros "pais fundadores" foi defender os direitos de um muçulmano "imaginado e futuro", algo que consideravam crucial para promover a universalidade dos direitos americanos.
A campanha de Jefferson o levaria a redigir o Estatuto de Liberdade Religiosa da Virgínia, em 1876, que antecipou a separação entre Estado e igreja incluída na Primeira Emenda da Constituição. Sua importância na história americana é celebrada em Washington pelo imponente Memorial a Jefferson, um edifício arredondado de arquitetura neoclássica às margens do rio Potomac.
REALITY SHOW
Corte para 2015. Dono de uma fortuna declarada de US$ 9 bilhões (cerca de R$ 35,4 bilhões) e com a experiência televisiva acumulada como apresentador de reality show, Donald Trump nada na corrente do medo anti-islâmico para liderar com folga a disputa entre os pré-candidatos republicanos à Casa Branca. Visto inicialmente como uma curiosidade passageira, começa a ser levado a sério.
Em seus comícios, Trump gaba-se sem parar dos bilhões que fez com seus cassinos e empreendimentos imobiliários, com frases de efeito que parecem tiradas de seu antigo programa na TV, "O Aprendiz". Mas um pouco de conhecimento da história do país não faria mal.
"Ninguém espera que Donald Trump ou qualquer outro candidato se torne um novo Thomas Jefferson. Mas precisamos exigir desses aspirantes à Presidência um nível mínimo de conhecimento geral. Não é pedir demais", escreveu o cientista político Louis René Beres, da universidade Purdue.
LIBERAL
Qualquer previsão é prematura. Ainda falta quase um ano para a próxima eleição presidencial, e as primárias dos partidos ainda nem começaram. Mas é curioso observar que, enquanto a escalada xenófoba de Trump tenta atrair a porção mais conservadora do eleitorado, a sede do governo federal onde ele quer se instalar é um bastião de liberalismo. Aqui, o bilionário jamais venceria.
A capital costuma ocupar o primeiro lugar no ranking das cidades mais liberais dos EUA e também em categorias específicas, como a mais amigável a gays.
Em fevereiro, tornou-se um dos cinco lugares dos EUA onde o consumo de maconha é legal. Desde então, a fumaça dos baseados é o aroma predominante nas ruas da capital: segundo uma pesquisa do "Washington Post", 57% dos residentes sentem o cheiro pelo menos uma vez por mês. E 45% dizem não ligar.
MARCELO NINIO, 49, é correspondente da Folha em Washington.