• Ilustríssima

    Tuesday, 23-Apr-2024 21:06:40 -03

    Leia trecho da tradução de "O Sumiço", de Georges Perec

    GEORGES PEREC
    tradução ZÉFERE
    ilustração ALEXANDRE TELES

    27/12/2015 02h03

    QUANTO A ISTO Corria 1969 –um ano após sua composição– quando saiu "La Disparition". Tal lipograma –assim qualificamos obras das quais um ou mais tipos são suprimidos– configuraria um dos mais notórios produtos do grupo OuLiPo, dando ampla fama ao autor nascido na França (1936-82). O livro ganha tradução inaugural no idioma luso, intitulada "O Sumiço", a princípios do ano próximo. No posfácio, o tradutor clarifica artimanhas usadas para transpor tal trama policial, a qual, a propósito, trata do sumiço da vogal mais comum da língua original do livro, aqui omitida a custo. O rigor da informação, contudo, ultrapassa a graça: a Autêntica ficou a cargo da obra.

    Alexandre Teles

    Antoin Vagol não caía no sono. Ligou a luz. No pulso, o Jaz marcava uma hora da madrugada. Suspirou fundo, aprumou as costas na cama, apoiado numa almofada. Apanhou um livro, abriu-o, foi dando uma lida; mas só captava naquilo um imbróglio confuso, topava a toda hora com uma palavra cujo significado ignorava.

    Largou o livro na cama. Foi à pia; molhou uma luva para banho, passou-a no rosto, na gorja.

    Sua pulsação batia à disparada. Suava. Abriu a vidraça, sondou a madrugada. Não fazia calor, tampouco frio. Um rumor indistinto vogava no ar. Próximo dali, profundo como a tocar numa vigília, surdo como a dobrar numa inumação, abafado como a badalar sob a borrasca, um sino soou a sua batida trinitária. Lá do canal Saint-Martin, um murmulho lastimoso sinalizava uma barca a passar.

    Na moldura da vidraça, um bicho do tórax azul índigo, com um aguilhão puxando para o açafrão, quiçá barata, quiçá moscardo, não, um borrachudo ia andando, arrastando consigo uma folhinha, uma alfa. Antoin ficou mais próximo, doido para achatá-lo com uma pancada, mas o animal, batidas as asas, voou, sumiu na madrugada. Vagol não logrou atingi-lo.

    Tamborilou uma marcha militar no oblongo caixilho da vidraça.

    Abriu o frigobar, apanhou um achocolatado, tomou uma xícara. Ficou mais apaziguado. Foi para o sofá, passou as páginas do jornal um tanto quanto distraído. Fumou um cigarro, conquanto incomodado com o odor. Tossiu.

    Ligou o rádio: após uma música afro-cubana, tocaram um bóston, aí um tango, aí um fox, aí um cotilhão arranjado ao gosto do dia. Dutronc cantou algo do Lanzmann, Barbara, uma canção do Aragon, Stich-Randall, uma ária da "Aída".

    Haja vista o susto súbito do Antoin, havia tirado um cochilo. Anunciavam no rádio: "Notícias do dia". Não havia um único fato com alguma importância. Valparaíso: duas dúzias mais um ou dois mortos na inauguração dum viaduto; Suíça: Norodom Sihanouk não irá a Washington; Matignon: Pompidou faz proposta aos sindicatos visando a uma nova organização do status quo, mas fica só na palavra. Biafra: conflitos raciais; Conakry: o assunto foi um putsch. Um tufão ia arrasando Nagasaki, um tornado batizado com um antropônimo gracioso (Amanda) ia ficando mais próximo das ilhas Tristão da Cunha, das quais a população ia saindo graças ao auxílio da Marinha.

    Roland-Garros, por fim: numa partida da Copa Davis, Santana havia ganhado do Damon por 4 a 1.

    Apagou o rádio. Agachou na alfombra, tomou inspiração, forçou uns cinco ou mais apoios na musculatura torácica, mas não tardou a ficar cansado. Aprumou as costas ainda no chão, fatigado, fixando com um olhar lasso o curioso croqui a surgir ou sumir na alcatifa Aubusson, a variar a partir das formas organizadas por sua visão:

    Assim via, hora ou outra, uma argola inacabada com um traço horizontal alongando a sua ponta: quiçá como um G maiúsculo visto numa poça d'água.

    Ou, branco no branco, surgida numa bruma cristalina, a altiva figura dum monarca brandindo um arpão com uma ponta tripla.

    Ou, por um átimo, surgindo duma linha sob mais uma sob mais uma, um croqui aproximativo, insatisfatório: voltas avultadas, contornos bastardos a rascunhar, num vão arroubo da imaginação, a Mão tridáctila dum Sardônico rindo às gargalhadas.

    Ou, como uma imposição, sim, punha ali a figuração dum borrachudo do tórax fuliginoso, no qual havia uma articulação trística dum branco próximo ao lirial.

    Antoin dava asas à imaginação. A cada minuto mais absorvido naquilo, sondando a alfombra, via surgir cinco, ou mais uma combinação, duas dúzias mais uma ou duas, muitas, rascunhos pondo-o fascinado, mas fragílimos, lapsos falhos, obscuras figuras. Procurava organizá-las, buscando o surgidouro dum sinal mais nítido, dum sinal global cuja significação, quiçá, viria logo à tona, um sinal satisfatório. Contudo via um tramado com traços incôngruos, uns croquis silabados ou mal-acabados, aos punhados, todos soando como uma contribuição para urdir, para compor uma configuração dum croqui inicial ali simulado, imitado, aproximado, mas jamais todo à mostra:

    um autor formado por uma pata humana, por uma marcha par trás, por dó;

    transformado por um fulaninho, por uma convicção, por uma acusada;

    um balido dum borro;

    um sol cifrado;

    ou olha: os olhos malignos duma orca colossal, provocando Jonas, hipnotizando Caim, fascinando Ahab: avatar múltiplo dum imo vital cuja divulgação consistia num tabu, substitutos ambíguos a contornar, "ad infinitum", um logos, uma força abolida aos confins do nunca, mas pondo Antoin ansioso por avistá-la surgir, por todo o porvir.

    Ficava irritado. A visão da alfombra fazia um mal alvoroçador para Vagol. Às voltas com tanta ilusão ditada por sua imaginação, cria avistar um ponto mais avultado, um foco ignorado, o qual, por muito pouco, por um triz, jamais podia alcançar.

    Continuava. Contumaz. Fascinação da qual não podia abrir mão. No fundo da alfombra, como tudo fazia supor, havia um fio a tramar o obscuro ponto Alfa, um grão do Todo Grandioso dando profusas mostras do Infinito Cósmico, ponto primordial do qual, súbito, surgiria um panorama total, abismo com raio nulo, campo insabido do qual ia traçando o inaudito litoral, cujo contorno insinuado ia cobrindo com os próprios passos, turbilhão, altos muros, prisão, bordas galgadas mas nunca transpostas...

    GEORGES PEREC (1936-82) escritor francês autor de livros como "As Coisas" (Companhia das Letras).

    ZÉFERE, José Roberto Andrade Féres, 35, é tradutor.

    ALEXANDRE TELES, 36, é artista plástico.

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