RESUMO Jornalista muitas vezes identificado como "guru da contracultura" reflete sobre como, pela ciência, a coisa,"res", se impôs sobre o ser, "ontos", num movimento previsto por Heidegger. Para ele, recuperar as verdadeiras fontes de vida numa volta aos ideais hippies poderia nos salvar dos prognósticos do filósofo alemão.
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O filósofo alemão Martin Heidegger |
Era preciso que um pensador brasileiro, não dos maiores, mas dos mais expostos à galhofa, viesse, não a cantar ao homem do povo Charlie Chaplin, como fez nosso poeta maior, mas a expor a cara a tapa por defender ideias insensatas que lhe valeram o ridículo de muitos mas a compreensão de ao menos uns poucos.
Vamos por partes.
Primeiro, a galhofa e o ridículo. Outro dia, uma grande amiga minha me confidenciou:
"Você sabe que todas as minhas amigas acham que você é um cara ridículo? É principalmente por causa dessa história de 'guru da contracultura'. Guru já é uma coisa ridícula, contracultura mais ainda. Você é um ridículo ao quadrado." "KKKKKKKK" -como cacarejam na internet!
No entanto, em vez de recuar, pedir perdão, me retratar da terrível vergonha, resolvi tentar salvar um pouco da minha dignidade usando daquilo que me resta, o miserável pensamento.
Como diz Heidegger, com simplicidade, somos pensadores porque somos seres que, entre outras coisas, pensam. E, como ele observa agudamente, são os pensamentos que vêm até nós, e não ao contrário. Pois bem: vieram-me pensamentos. Eles me levaram à viagem que acostumei chamar "de volta para o futuro", ou seja, para o século passado, quando havia um "futuro" que vislumbrávamos, encantados, um futuro colorido e pacificado, uma fantástica Era de Aquário, um futuro que lamentavelmente nunca se concretizou na realidade coletiva.
Hoje, no século 21, que deveria ter sido a realização daquele sonho, o futuro se reduziu a uma abstração incerta e sombria, uma ameaça fantasmagórica de decadência e destruição generalizadas. Nossa utopia tornou-se uma distopia assustadora.
Voltar para o futuro significa portanto, para mim, voltar ao sonho, ao futuro que pensávamos merecer e que parecia se concretizar no surgimento dos hippies. Dizem que acabaram, que os poucos remanescentes do seu passado dourado são em número insignificante, principalmente velhos que vão morrendo e, por certo, em breve, desaparecerão totalmente.
Advirto, senhores, que minha loucura não tem método. Posso pensar qualquer coisa a qualquer momento. Assim, a possibilidade de uma reflexão concreta sobre uma possível atualidade dos hippies me ocorreu lendo Heidegger.
Segundo ele, a tecnologia que nos domina e controla cada vez mais foi produzida por um desvio decisivo na história do pensamento ocidental, que foi o raciocínio do tipo preconizado por Sócrates, aprofundado por Platão e finalmente sacramentado com todas as honras por Aristóteles como a maneira de pensar essencial de nossa civilização e cultura.
A Idade Média acrescentou suas elucubrações teológicas supostamente cristãs a essa filosofia regida pela famosa "ratio", ou razão, mais explícita assim, em latim, como todos os conceitos da época.
Chamei essa maneira tradicional de pensar de "desvio" e não foi à toa. Segundo Heidegger, foi nele que se perdeu o pensamento originário dos pré-socráticos, nos devaneios do que veio a se chamar "filosofia" e, mais explicitamente, depois de Aristóteles, "metafísica". Ele se caracteriza pelo esquecimento do Ser e o domínio absoluto do ente, o que Heidegger chama de diferença ontológica.
A ontologia se ocupa do Ser, o "ontos", o que é o que é; a metafísica e seus subprodutos, como a ciência ocidental, por exemplo, ficam aprisionados no âmbito dos entes, o meramente ôntico, ou seja, objeto, coisa, "res".
O estudo particular de cada região ôntica foi feito pela ciência moderna a partir da visão de Aristóteles e das condições determinadas por Bacon. A investigação científica utiliza a "ratio", o raciocínio, a indução, a dedução etc. -mas, ao contrário do pensamento ontológico e da poesia, não penetra no mistério ontológico. Foi por isso que Heidegger pronunciou sua frase célebre de que "a ciência não pensa". Não pensa mesmo, em face da diferença ontológica identificada por Heidegger.
Mas a ciência não é a única a "não pensar". Está acompanhada por toda história da filosofia ocidental, até mesmo em Nietzsche, que, mesmo tendo sido o primeiro a denunciar a metafísica de Platão, é incluído por Heidegger entre os filósofos que a seguem.
Já se relacionou o esquecimento do ser, a diferença ontológica de Heidegger, aos processos deletérios denunciados pelo marxismo, principalmente a alienação, tal como é exposta nos "Manuscritos" de 1844 de Marx, e a reificação, tal como é estudada por Lukács em "História e Consciência de Classe", e utilizada por vários filósofos posteriores, dos quais meu favorito é Jean-Paul Sartre e seu conceito de serialização, apresentado na "Crítica da Razão Dialética".
TRIUNFO DA COISA
Mas todos esses filósofos permanecem atados tanto à "ratio" medieval quanto à visão ôntica do real como confronto entre "res cogitans" e "res extensa", o sujeito e o objeto, o espírito e a coisa, geralmente com o triunfo esmagador da coisa.
Entretanto, conforme Heidegger mostra com clareza, tudo isso é resultado de um desvio do pensamento grego posterior aos pré-socráticos, uma decadência que, para Nietzsche, começa em Sócrates, ganha uma formulação definitiva em Platão e determina o rumo do pensamento ocidental através de Aristóteles. A "physis", que nos pré-socráticos era a própria presença do Ser, vira Natureza feita de coisas, objetos; e o "logos", que era o seu sentido, vira lógica, "ratio", um emaranhado mental que faria da "techné" grega a ciência moderna, produto direto da natureza ôntica na visão do Estagirita.
A sempre cantada em prosa e verso ciência foi, portanto, a imperatriz do desvio. Foi ela que deu uma suposta dignidade à reificação, tornou-se a verdadeira religião dos acatados homens de conhecimento e gerou a tecnologia insaciável que substituiu as verdadeiras fontes da vida por suas invenções incessantes, aparentemente maravilhosas como fogos de artifício, que induziram o ser humano ao seu destino atual, do qual o ciborgue é a primeira, mas não será a última, manifestação.
No plano individual, cada um se vira como pode, a liberdade aqui é absoluta. Mas, no plano coletivo, as maquinações da visão ôntica estão se impondo de maneira cada vez mais abrangente.
Desde o século passado, os entusiastas do progresso tecnológico debocham dos reacionários que se apegam à mãe natureza, a Gaia, ou como se quiser chamar a "physis" primordial. É claro que eu próprio, por exemplo, só escrevo em computador, tenho meu modesto smartphone, às vezes uso laptop. Mas estou alerta.
Contudo as massas sucumbem aos mais variados tipos de histeria, não apenas a política, que parece ser a mais vistosa, mas as de ordem mais privada também. Ser dominada pelos brinquedinhos tecnológicos é a grande doença da mente coletiva em nosso tempo.
Eis, a seguir, o que desponta em nosso horizonte, como consequência do domínio da tecnologia sobre nossa vida coletiva, segundo as informações que tenho sobre o assunto. É, no mínimo, assustador. O texto que se segue foi extraído, sintetizado, de um artigo de Wilson Roberto Vieira Ferreira.
"O cientista de computadores Jaron Lanier é o inventor do conceito de realidade virtual, uma nova religião criada a partir da cultura da engenharia computacional. Em agosto [de 2010], Lanier publicou no jornal 'The New York Times' o artigo 'The First Church of Robotics', no qual denuncia a gestação do que seria a 'primeira religião da robótica', uma verdadeira religião das máquinas, cibertotalitária, na qual 'computadores se humanizam e seres humanos tornam-se computadores'."
"Isso quer dizer que, um dia, num futuro não muito distante, a internet vai de repente ser incorporada a uma superinteligência artificial, infinitamente mais inteligente do que qualquer um de nós individualmente. Vai se tornar um ser vivo em um piscar de olhos e dominar o mundo antes que os seres humanos percebam o que está acontecendo. Todos os principais pensamentos atuais sobre a consciência e a alma estão ligados também na fé, o que sugere algo notável: o que nós estamos vendo é uma nova religião, expressa através de uma cultura de engenharia. É paradoxal que essa 'religião expressa através de uma cultura da engenharia' seja o princípio orientador de uma tecnologia que representaria o ápice do racionalismo ocidental."
Foi contemplando esse panorama, guiado pelo pensamento profético e desmistificador de Heidegger, que lembrei que talvez nossa esperança, no plano coletivo, seja exatamente aquilo que, em outras ocasiões, qualifiquei como a grande oportunidade, desgraçadamente perdida pelo Ocidente, para sua regeneração, para sua reconquista da saúde espiritual.
Qual oportunidade? Estou, é claro, falando dos hippies e de sua ação saneadora de nossos costumes. Talvez a sua volta, em termos diferentes de sua primeira aparição no século passado, seja, "mutatis mutandis", nossa única esperança concreta de escapar dos sombrios, mas bem fundamentados, prognósticos de Heidegger.