• Ilustríssima

    Friday, 19-Apr-2024 07:04:44 -03

    Dois fragmentos sobre o tempo

    CARLA KINZO
    ELIDIA NOVAES
    ilustração ADAMS CARVALHO

    10/01/2016 02h08

    "Dou-lhe este relógio, não para que você se lembre do tempo, mas para que possa esquecê-lo por um momento de vez em quando, e não gaste todo o seu fôlego tentando conquistá-lo." William Faulkner

    SOBRE O TEXTO Os textos aqui apresentados são fragmentos de contos desenvolvidos no Coletivo Literário, grupo de escritores coordenado por Noemi Jaffe. "Hora Certa" e "De Pulso e Antichoque" decorreram de uma proposta em que, partindo da epígrafe de Faulkner acima, cada autor deveria narrar uma história passada em 1º de abril de 1964. Cada participante tinha, também, de adotar um ponto de vista diferente –no caso de Elidia Novaes, o de um mendigo; no de Carla Kinzo, o de um estrangeiro que se encontrava no Brasil.

    De pulso e antichoque
    ELIDIA NOVAES

    - Tá de bem comigo, amigão?

    Rua São Bento logo cedo, fervilhando de pedestres em frente à Botica Ao Veado d'Ouro. O homem segue sem reação com sua mala de caixeiro.

    Agora sorri para uma jovem de uniforme do Caetano de Campos. Levanta o polegar em sinal de positivo.

    - Tá de bem comigo, mocinha?

    Talvez ela o tenha ignorado. Talvez só não tenha ouvido. Desta vez são dois cavalheiros descendo a rua com olhos fixos no prédio da Bolsa de Valores. Sorriem vagamente em resposta e passam ansiosos pelo dia.

    Um casal vem do Mercado Central com uma sacola de lona que cheira a manjericão e orégano. Rapazes de calças jeans boca de sino carregando livros de capa dura a caminho do largo de São Francisco. Músicos da orquestra, funcionários do Banco do Brasil, soldados do Exército. Dois homens-placa conversam: um anuncia ouro, o outro, uma liquidação. Um trio toca Luiz Gonzaga na Quintino Bocaiúva.

    _Com a força dos meus braços
    Pego a enxada e cavo o chão
    Quando cai uma chuvada
    Pranto arroz, mio e feijão_

    Ele fala com todos.

    - Tá de bem comigo, amigão?

    As pessoas que trabalham por ali já estão acostumadas. Às vezes, alguém lhe responde o cumprimento.

    - Tô de bem. E você?

    - Tudo bem, amigão. Seu relógio! Eska Automático -"traga no pulso esta obra-prima de precisão e técnica".

    A pessoa fita o próprio pulso, sorri e segue adiante. Ele sempre acerta.

    - Tá de bem comigo, mocinha?

    Ela espera o ônibus e venta frio. Resmunga algo.

    - Hmm. Omega -"algum dia, alguém que muito a quer ofertar-lhe-á o relógio com que você sonha".

    E quando alguém elogia sua memória? Ao menos sorri. Ele imediatamente avança para a próxima fase.

    - Quer trocar? O meu é Lincoln. "Lincoln define o bom gosto de seu possuidor."

    O diálogo costuma terminar por aí, alguns puxando o punho da camisa até cobrir o relógio e tomando o primeiro ônibus ou buscando a segurança do vendedor de churrasco grego ali na rua Direita. Mas quem trabalha naquela parte do centro entrega para ele seus relógios definitivamente sem conserto. Ele guarda todos e os alterna o tempo inteiro -às vezes usa até dois no mesmo pulso.

    Hoje ele não me viu; agora segue em direção ao viaduto do Chá. Mas aqui termina meu percurso. Trabalho no Cine Alhambra. Vendo balas ali no hall. Apareça! Temos um faroeste ótimo em cartaz. "Quando um Homem É Homem". John Wayne e Maureen O'Hara. Sabe como é com os faroestes: tem diversão, aventura, tiro pra todo lado. Além do mais, o mocinho sempre ganha no final. Conquista a garota, encontra o dinheiro roubado, prende o bandido, mata o índio. E ainda tem aquelas pistolas que a gente não vê por aí. Com um tiro, o caubói mata três fora da lei e ainda derruba um do telhado. A gente brinca que tem uns que acertam até na poltrona da fileira G.

    Adams Carvalho

    Hora certa
    CARLA KINZO

    Olho a máquina de escrever sobre a mesa e, depois, o livro que você me deu. Não para que você se lembre do tempo. Agora, Ana, e aqui: esse tempo. Você escrevendo o verbo dos dias que me prenderiam para sempre no dia em que parti –esquecer. (O livro me diz para não lembrar, você me diz para não esquecer; eu não te escrevo, mas fico à sua volta como um besouro.) (Você sob o sol: minha lâmpada.)

    Três e quinze da manhã. Sento à máquina, sem café. A mala feita ao lado da cama é pequena, como deve ser. Tento organizar um texto que me dê um álibi em volta do mecanismo das teclas. Se não tivessem me avisado tão em cima da hora, tão sem tempo pra pensar direito, esse texto já estaria escrito. Abro meus cadernos com anotações de um ano atrás, feitas no Brasil; cinema, literatura e, de repente, você: "Como se diz amanhã em changana?", "você me distrai"; "Diz!" "Por que, Ana?" "Porque sim" –e eu me rendo às suas respostas curtas, porque sim, era sempre assim. "Mundzuku". "Então mundzuku você não vai estar mais aqui." "Vem comigo." "Eu? Em Moçambique? Vou fazer o que em Moçambique?" Você ri. Eu finjo que rio; será que você se dá conta do que acontece em mim quando você ri e eu finjo?

    Volto para o quarto: agora e aqui. Três e quarenta cinco. Você em algum lugar em São Paulo e eu ainda aqui, neste lugar, em Maputo. Ainda. Por mais uma hora e quinze nesse quarto. De frente para o papel, penso se algum dia conseguirei ler o livro que você me deu de presente, a caminho do aeroporto, no dia em que voltei. "Faulkner?". Para que você não se esqueça.

    Lembro: deixar um artigo inacabado na máquina, como se estivesse me esperando. "Maputo, primeiro de abril de sessenta e quatro", digito. Quase quatro da manhã. "Os Cafajestes, primeiro longa de Ruy Guerra". Certo, Ruy Guerra. "O filme não se propõe a fazer um diagnóstico do Brasil, ainda que construa uma crítica contundente à classe média", repito o que escrevi em algum lugar, algum tempo atrás. "A atriz Norma Bengell faz uma aparição memorável". De repente, me dou conta, "a câmera é agressiva ao redor de sua nudez", é para você que escrevo, "no longo plano-sequência", como se conversássemos depois de uma aula, "são quatro profundos minutos", aquelas nossas conversas sérias sobre nossos países, "que ressoam por muito tempo", em que eu te revelava algo meu, "no deslocamento sem rumo", querendo te confessar, "daquelas personagens", de forma cifrada:

    "Nilava wena".

    CARLA KINZO, 35, é poeta e autora de "Cinematógrafo" (7Letras).

    ELIDIA NOVAES, 57, é contista, dramaturga, tradutora e professora.

    ADAMS CARVALHO, 36, é ilustrador.

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