Às cinco da manhã de segunda ele aterrissa do paraíso de seus sonhos no colchão de uma cama. Sua cama; um colchão insuficiente. Um céu rachado de estrelas adesivas fosforescentes é a primeira coisa que vê. O alarme de seu celular toca a nova do Bowie.
Na frente do espelho, lava o rosto, escova os dentes, buscando restos de maquiagem da noite de ontem. Quanto mais fabuloso é seu fim de semana, mais necessário se certificar de ficar invisível na segunda seguinte. Camiseta larga sobre o corpo esguio. Boné escondendo o cabelo platina. Óculos escuros para não denunciar o olhar. Rosto fechado de menino negro, agressivo, masculino, que ele deveria ser.
A semana sempre chega socando-lhe o sorriso, se ele sorrir.
Fones no ouvido. Rápido e cabisbaixo a caminho do ponto de ônibus. Cruza com os noias que restaram de um domingo infinito. Balbuciam rindo algo que ele escuta como o "você confunde até a mãe, ela não sabe se você é homem ou mulher" ressoando em inglês de sua playlist. Tenta acreditar que aquilo poderia ser, quem sabe, atravessado, um elogio. Que a beleza pode ser indefinição. Que o que tenta esconder é o melhor que tem a mostrar. Aqui não é América, não é Londres nem Berlim, mas ele passa pelo mesmo que passam tantos outros meninos, pelo que passaram tantos ídolos. Um dia melhora. Itaim Paulista, afinal, não é tão diferente de Brixton.
No fundão do ônibus ele segue em sua odisseia espacial. O caminho para a firma às vezes é mais longo do que o para a Lua. Um grupo de pivetes batuca outro compasso, fora do compasso, ele aumenta o volume e silencia os pivetes. Pela janela tenta imaginar a Terra como azul, vendo o cinza que há de concreto. Deve ser mais bonita vista de longe. De longe, deve ser mais bonita. Não há nada que ele possa fazer, a não ser esperar.
Dois ônibus e um metrô. Quatro estações até a Paulista. Um labirinto que ele já faz no automático, deixando a voz do rei dos duendes guiá-lo. Seu dia será de filas e recepções. Decepções e poucas conquistas. E ele agradecerá pela música. São mais sete dias para viver sua vida, ou sete formas de morrer.
"Quando vi a notícia lembrei na hora de ti", recebe uma mensagem do amigo Everton aos cinco para meio-dia. Não tem créditos para perguntar de volta qual é a notícia. Dá uma espiada no jornal do dia. O jornal do dia não lhe diz nada. Tem uma Lua em Júpiter, repara no horóscopo, um sol em São Paulo. São Paulo nublado.
Espera encontrar o Cassiano, da Criação, na hora do almoço, para perguntar o que ele achou do clipe novo. Cassiano não veio hoje. Há dias em que ele consegue trocar boas ideias no almoxarifado. Mas nessa segunda estão todos fechados. Ele também se fecha em si, num mundo de cães de diamante, onde ele pode ser o herói, e garotos amam garotos insanos.
"Ei, tá no mundo da lua?", a recepcionista lhe pergunta.
"Não, já passei por lá. Agora estava pensando se há vida em Marte."
"Ai, menino, só você... Viu que a Lady Gaga ganhou um prêmio ontem?"
"Não!"
"Um Grammy, ou Emmy, um desses prêmios por atuação."
"Globo de Ouro?"
"Pode ser. Trouxe o recibo?"
Da firma seguirá para o supletivo. Só tem tempo de passar na padaria para comprar uma coxinha, de jantar. É frango e catupiry. Na televisão ligada vê o rosto do "camaleão" no noticiário. Uau, ele voltou mesmo para ficar. Quase sente certo ciúme, certo despeito pelo mundo compartilhar do ídolo que toca só em seus ouvidos, alienígena que habita seu mundo. Achou que ele fosse só seu. Tome jeito, diferentona, #everybody- loveshim.
Estuda ainda não sabe para quê. Não sabe ainda se presta. Pensa se um dia fará diferença. Termina o ensino médio. Aprende inglês com as músicas. Quem sabe se pode mudar de vida com uma faculdade. Por enquanto, para afastar a miséria basta um pouco de maquiagem.
Volta para casa tarde da noite, o mesmo metrô, os mesmos ônibus, na direção contrária. No caminho percebe que seu starman está de fato pop demais, está muito popular. Três meninos com camiseta dele no mesmo vagão. Uma mochila cheia de bottons. Uma menina até ostenta um raio na cara. Seu shuffle passa para uma faixa obscura, um B-side exclusivo, "é difícil ser um santo na cidade", o astronauta que é só seu.
É ainda o que ele escuta subindo a rua, passando em frente ao bar. O convite à dança ganha por instantes batuques de pagode, de uma mesa regada a cerveja. Ele cumprimenta o tio, acena para o padrinho, chega em casa em seu próprio ritmo. "Oi, filho. Tem um prato de comida no forno."
Come em frente ao PC do irmão, que ainda não voltou da batalha. Entra no Facebook e checa as mensagens, sua timeline: todos trazem a mesma notícia. Márcio, da loja de discos; Nicolas, produtor de TV; Alisson, performer em Oakland; Matheus, moleque do Sul. Amigos, conhecidos, desconhecidos, interessados, todos contam a mesma história de um ídolo que se foi. Todos tão diferentes e tão distantes, seguindo a mesma trilha, no ônibus para o trabalho, malhando na academia, dirigindo para buscar o filho na escola, recuperando-se de uma cirurgia.
"Escutando aquela música que você me mandou. Fiquei triste por você. Todo mundo só falando nisso."
"Pois é, fiquei sabendo há pouco."
"Sério? Bom, ele já estava velho..."
"Porra, Davidson."
"Desculpa. Gostei do som. Depois você me mostra mais. Vai lá domingo que vem?"
"Acho que sim."
"Então tá, te espero, que preciso dormir. Fique bem."
"Você também."
E ele desconecta pela nova terça que está por vir. Árida, áspera, ríspida, mas ainda poética em playlists, em fones de ouvido, para quem quiser ouvir. Ele fará sua jornada para a firma e sabe que não estará sozinho. Quebrando vidro, beirando o suicídio, o dia a dia é só um ensaio para uma tragédia maior, um futuro melhor, no que de mais grandioso reserva sua vida.
Ele tira a roupa. Deita na cama. Avista as estrelas de um horóscopo improvisado de starfix. É, não é fácil. Nem sempre é bonito. Mas, se ele não é especial e exclusivo, ao menos hoje ele sabe. Ele não é o único. Ele não está sozinho.
SANTIAGO NAZARIAN, 38, tradutor e escritor, é autor de, entre outros, "Mastigando Humanos" e "Biofobia" (ambos pela Record). A convite da "Ilustríssima", escreveu uma ficção inspirada em David Bowie, morto no último dia 10.
MANUELA EICHNER, 31, é artista plástica e designer.