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    A linguagem como matéria em Luci Collin

    LUIZ COSTA LIMA

    17/01/2016 03h38

    RESUMO Crítico literário se debruça sobre aspectos da poesia de Luci Collin, finalista, com "Querer Falar", do Prêmio Oceanos 2015, de cujo júri o autor fez parte. O ensaio fala da busca pelo dizível e pelo significável tematizada na poesia de Collin, a partir da leitura de seu livro mais recente e de "Trato de Silêncios", de 2012.

    *

    Costuma-se considerar o crítico literário um mediador entre a autoria e o leitor. Ainda que assim muitas vezes suceda, é mais justo tê-lo como o que medeia entre o dito conhecido e o dizível. Embora vantajosa, a formulação ainda é insuficiente. É evidente que o dito é o produto de um enunciado. "Bom dia", "como tem passado" ou o "homem de letras/ necessita de alfabetos áridos" são igualmente ditos. Mas os versos citados, de Luci Collin em "Cerimônia da Composição", mostram a diferença. O poema transtorna o dizer pragmático.

    Não por acaso um de nossos raros críticos atuantes, Sérgio Alcides, escreve que a ficção moderna é marcada pela desestabilização das certezas e das identidades. Por essas razões será preferível dizer que o crítico literário medeia entre o dizível antes desconhecido e suas consequências enunciativas. E, no entanto, a formulação ainda permanece rala, pois dá a entender que o dizível alcançado pelo poema atinge e põe sempre em um mesmo plano. Ou seja, que o verso, desde que de qualidade, tem a propriedade do mesmo rasgar de horizontes. É evidente que não é assim. O dizível, enquanto formulação antes ignorada, seja ele claro ou esotérico, tanto pode atingir sua meta como ficar na metade do caminho, ou seja, não alcançar a significância possível.

    É claro que a distinção não pode ser assegurada por fita métrica ou, como gostaria um adepto das quantidades, por uma estatística da reação dos leitores. "No meio do caminho tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho/ tinha uma pedra/ no meio do caminho tinha uma pedra" pode ser tomado como uma permutação brincalhona, uma alusão satírica ou dramática ao verso de Dante. O reconhecimento do nível do dizível no poema requer a qualidade de seu leitor. E, entre respostas distintas, uma não será a correta, em preferência de outras.

    As breves considerações acima foram motivadas por uma poeta que até há poucos meses eu desconhecia.

    Segundo sua ficha de identificação no livro "Querer Falar" (7Letras), Luci Collin é uma curitibana nascida em 1964, que, na data do informe, 2014, já publicara mais de dez livros! Como deles só tive acesso a "Trato de Silêncios" (7Letras, 2012) e a "Querer Falar", é bastante provável que a apresentação que se segue seja bastante incompleta.

    Se, apesar do risco, me atrevo a escrever sobre o que li da autora, é porque seu desconhecimento chega a me parecer criminoso. De todo modo, esteja o leitor prevenido de que a anatomia a seguir pode não passar de um borrão. Começo por tomar a primeira estrofe do primeiro poema do livro de 2012:

    "desse discurso

    ler só mesmo

    ausências

    da palavra

    o sentido

    sem arquitetura"

    Reforço o que tenho a dizer por passagem menor do "Se":

    "se for poesia isso que escrevo

    remonta à ausência do não significado"

    A propósito de ambos, direi que nos dois casos se acentua a escavação do não significado; algo semelhante a quem cavasse a terra seca na esperança de encontrar um filão de água. Ou seja, a busca de tornar audível o que até agora não se escutara. Fácil de ser a posteriori formulada, essa busca, contudo, é não só incerta e árdua como supõe a complexidade da experiência humana.

    NEODIZÍVEL

    Por experiência humana deverá se entender a formada pelo que se passa, se vê, se toca e nos toca, de longe ou de perto. Isso significa que a experiência do mundo é sempre mais ampla e mais variada do que a experiência verbal previamente conhecida admitia. Se a poesia é o campo do neodizível, do que se abre para vir a ser dito é porque, sendo linguagem, está além dos limites da língua, algo codificável nos dicionários e nos usos correntes.

    Porque poesia é linguagem, frustra os que a tomam como expressão da personalidade autoral, quando seria uma espécie de propriedade imaterial. O dizível poético olha de esguelha para as confissões, as declarações de como o poeta se vê a si mesmo –o que a banalidade contemporânea chama de "autoficção".

    Posto entre parênteses, o eu não é por isso excluído, senão que, com seus feixes de sensações e experiências, se inclui nas mais abrangentes de seu tempo e sua gente. O neodizível do poético exige pois a relação extrema entre a riqueza caótica do mundo e a habilidade de um tecelão de palavras e frases. É justamente no entrelaçamento de tal riqueza e tal tecelagem que se estabelece a variedade dos graus de êxito da expressão.

    Considero uns mínimos exemplos. O começo e o fim de "Insondável" (de "Trato de Silêncios"):

    "da pedra e da dor

    qualquer palavra redunda

    portanto silêncio

    (............................)

    rolando no verde os dados

    ecoam

    segredos não serenados"

    Em seis versos, que oscilam entre cinco e sete sílabas, combinam-se causas e efeitos similares e, ao mesmo tempo, antagônicos. O material (a pedra) e o afetivo (a dor) provocam o mesmo efeito: a palavra e sua "sombra" oposta, o silêncio. A complexidade do diverso efetiva a consequência paradoxal do que, ao se dizer, também se cala. A atuação dos contrastes, no quarto verso, começa em plano fônico, onde a forma gerundial ("rolando") inicia a linha mais longa –o único setessílabo– que exprime uma dupla situação: o verde em que rolam os dados é tanto do tapete das casas de jogo de azar quanto do mundo dos vegetais. Ou seja, o sujeito da frase contém a duplicidade da pedra e da dor, do primeiro verso.

    Do mesmo modo que do duplo rolar decorre o eco de algo que não se comunica, o segredo, sem que por isso se contente com este seu estado –"segredos não serenados". Potencialmente, pois, a estrofe final apresenta a situação invertida da primeira estrofe. Nesta, da palavra redunda o silêncio. Já no final, o silêncio do segredo não se contenta em isentar-se, busca deixar de ser sigilo.

    O segundo exemplo (em "Solar", de "Trato de Silêncios") pode ser transcrito sem comentários, pela evidência do caos domado:

    "Aranhas vazam de frestas e de [breviários.

    Alguém toma um trago de [garrafa clandestina.

    Alguém chupa a pastilha pra [dor de garganta.

    Livre de anágua e liga, alguém [deixa os dentes no copo.

    Sob o oratório esconde-se a [chave da despensa"

    Um mínimo comentário para o último exemplo ("Lavor", de "Querer Falar")

    "um chapéu envelhece sobre

    as razões vazias

    e eu dançarino enquanto as [montanhas

    multiplicam as silhuetas dos [pinheiros"

    Embora a repetição implícita de envelhecer, na segunda estrofe, referindo-se a "dançarino" diminua a quantidade de planos, pois é sempre o tempo que age sobre o chapéu e o dançarino, "as razões vazias" são autônomas quanto à relação das montanhas com os pinheiros, pois, no segundo caso, ao tempo se acrescentam as sombras que, projetadas pelas montanhas, multiplicam as silhuetas das árvores. Embora o comentário tenha sido rápido, ele era indispensável por que se põe no limite da complexidade exitosa.

    Se não for por deficiência deste leitor, outras tantas vezes, esse limite não é alcançado. Apenas aponto como exemplo "Semiânime", em "Querer Falar". Sua análise correria o risco de ultrapassar o limite de que disponho. Opto por isso por duas últimas observações.

    Se a matéria-prima do poeta experimental, no sentido pleno da palavra, é a infinita variedade de situações do mundo, duas delas são mais frequentes em nossa poeta: a casa e a figura do cão de rua. Lamento que "Solar", em "Trato de Silêncios" seja demasiado extenso para que possa apresentá-lo em sua inteireza. Limito-me a recordar a magnífica estrofe do submundo das criadas:

    "Nas tinas se alvejam lençóis [enodoados de desuso,

    (noites subtraídas do enxoval),

    Tácitas criadas na lavanderia

    Curtem seus ventres que [crescem e marcham

    Pensando em nomes bons pro [filho sem sobrenome

    À beira de tanques, fantasiam [galãs radiofônicos.

    Mãos calosas transportam [baldes de zinco."

    Os retratos de família de Drummond aqui perdem sua contensão patriarcal. Do mesmo modo, a figura do cão de rua ressalta a figura sem trejeitos de um autor que se desatavia das solenidades do eu. Tento ver se aqui ainda cabe a excelente "enumeração caótica" (Leo Spitzer) da abertura do "Querer Falar":

    "este cão que me segue

    na noite insignificada

    desconhece meu desalinho

    este estar parado em esquinas

    os goles de café ruinados

    a doutrina dos ácidos

    este encarar salgueiros retóricos

    de gestos calcificados

    que vazam exílios e fidalguices

    e os sóis de madeira

    desta cidade imediata

    que nos habita"

    LUIZ COSTA LIMA, 78, professor emérito de história da PUC-RJ e autor de "Frestas: a Teorização em um País Periférico" (Contraponto), pelo qual recebeu o prêmio de ensaio da Biblioteca Nacional.

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