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    PONTO CRÍTICO

    Pó de estrelas: As escavações de Patricio Guzmán

    FRANCESCA ANGIOLILLO

    17/01/2016 03h34

    Uma roda que se desloca num trilho. Mecanismos que deslizam em sequência mecânica para perfazer um movimento esperado. Fosse a história assim maquinalmente regular, parece dizer essa primeira cena de "Nostalgia da Luz" [Instituto Moreira Salles, R$ 44,90], seria fácil contá-la.

    Mas, sabemos, a teleologia é uma invenção humana para dar sentido aos fatos, e o caminho que Patricio Guzmán tece nesse documentário é bem menos liso e evidente do que o mecanismo do velho telescópio alemão de Santiago do Chile a preencher a tela.

    Afinal, não parece imediato unir na mesma narrativa o trabalho dos astrônomos que perscrutam o céu no deserto de Atacama e o dos arqueólogos que estudam seu solo e suas rochas, descobrindo múmias e desenhos ancestrais.

    Os vínculos se tornam ainda mais complexos quando se somam às atividades anteriores um terceiro labor, o das mulheres que, com pás de jardinagem, fazem no deserto o contrário de um plantio, escavando o solo seco em busca de restos de pessoas desaparecidas pelo regime de Pinochet (1973-90).

    As pequenas sementes que desenterram –um pedaço de crânio ou de pé– trazem de volta mais um passado escondido naquelas areias, o dos resistentes que foram feitos prisioneiros em campos de concentração ali erguidos, no lugar de antigas minas, e ali mortos.

    Divulgação
    Cena do filme "Nostalgia da Luz"
    Cena do filme "Nostalgia da Luz"

    O passado é, entendemos, o elo comum entre tudo o que a câmera de Guzmán acompanha e amarra nesse belíssimo filme.

    É passado o rastro luminoso das estrelas, emitido há anos para chegar até nós nesse impalpável agora –agora que, como nos recorda um dos cientistas entrevistados, a rigor não existe nem no ato da fala, pois tudo o que dizemos já é passado no microssegundo seguinte.

    É passado, remoto, o tempo das múmias de outras civilizações, que nos parecem tão enigmáticas e distantes quanto o brilho que os astros enviam do céu.

    Mas, nessa região sem qualquer umidade, que através do ar transparentíssimo e da areia fina permite observar esses vestígios do tempo, se esconde o mais opaco dos passados, que é também o mais recente, tão recente que, como as estrelas sobre o Atacama, parece se poder tocar com a mão.

    Para dar conta desses encontros no deserto, somam-se a narração em off pelo próprio Guzmán e os depoimentos recolhidos –técnicos mas também poéticos, de astrônomos e arqueólogos; dolorosos e cheios de persistência, de sobreviventes e descendentes da ditadura, sobretudo o da filha de desaparecidos que, num elo surpreendente e bem-vindo à inusitada trama, acabou se tornando astrônoma.

    A força do filme vem justamente de conjugar elementos que à primeira vista pareciam tão distantes quanto o céu e a terra, mas que têm em comum o pó, o tempo e o cálcio (dos ossos, das estrelas).

    Com "Nostalgia da Luz", o autor de "A Batalha do Chile" (feita entre 1975 e 1979) inaugurou em 2010 uma nova trilogia sobre seu país. É verdade que a beleza de suas imagens, que na tela grande e na sala escura saltava e envolvia o espectador, se diminui muito no DVD.

    Por outro lado, o disco vem acompanhado de dois livretos, um com textos de Guzmán e do crítico José Carlos Avellar e outro de fotos que o cineasta Jorge Bodanzky tomou no Chile, em 1973, pouco antes do golpe contra Allende e que, à luz dos acontecimentos posteriores, causa potente desconcerto.

    Seja como for, com cada vez menos salas de cinema fora da agenda multiplex e com as locadoras sucumbindo ao conforto sempre à mão do "streaming", é grato que o filme possa ser visto e revisto.

    Os que quiserem seguir o persistente trabalho de Guzmán, poderão ver o segundo filme da série, "O Botão de Pérola", ganhador do prêmio de melhor roteiro no Festival de Berlim em 2015, ainda neste semestre. O longa, distribuído pela Filmes da Mostra, se volta para o mar, outro túmulo para os mortos insepultos da ditadura chilena.

    FRANCESCA ANGIOLILLO, 43, é editora-adjunta da "Ilustríssima".

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