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    Um trecho do novo livro de Tati Bernardi

    TATI BERNARDI

    31/01/2016 02h08

    RESUMO O trecho a seguir, inédito, é um dos capítulos do livro "Depois a Louca Sou Eu", que sai pela Companhia das Letras no final de fevereiro. A escritora, roteirista e colunista da Folha reúne textos em primeira pessoa, repletos de humor, sobre sua ansiedade, crises de pânico, mania de organização e remédios tarja preta.

    *

    Eu estava com a Júlia no parque Ibirapuera. Júlia, cerca de sete anos depois, se mudaria para Berlim e me ligaria um dia, "estou com câncer, estou com medo, vem me ver". Não fui ver a Júlia porque ensaiei inúmeras vezes comprar as passagens e não consegui. Na hora de "finalizar a compra", eu sentia o baço, os pulmões, os rins, os ossos da nuca, o dedão. Uma conjunção de pedacinhos latejando a palavra "não". Um estado hipervigilante por (e de) todo o corpo traduzia o que o sangue dizia ao passar pelas veias: "Não. Não saia de casa!".

    Avião mais viagem mais amiga doente soaram como um tri­dente demoníaco e eu travei. Não era apenas o problema de ter que me dopar (o que também gera um medo absoluto: vai que me dá um AVC ou uma trombose? Misturar Dramin e Rivotril no avião não deve ser bom, tem toda uma questão da pressão lá dentro e esses remédios mexem com a pressão arterial e tudo isso só piora porque também sofro de enxaquecas e já tomei muito anticoncepcional, mas só faço viagens longas se puder me dopar com Dramin e Rivotril, e de tentar equacionar esses dois lados já me sinto ofegante e já estou passando muito mal e nem comprei a passagem). Cheguei mesmo a discutir na terapia quanto eu amava a minha amiga numa escala de zero a cem. Sendo zero "quem é Júlia?" e cem "eu gerei esse bebê e dou minha vida por ele".

    Júlia marcou 83 pontos. O suficiente para classificá-la como "amiga pra cacete, quase irmã e estou profundamente triste e preocupada", mas um número muito pequeno para que eu conseguisse largar por míseros cinco dias todos os meus trabalhos e minha cachorra e meu namorado e meu computador e minha TV e meu pilates e minha terapia.

    O fóbico é um "tadinho" arrogante, o fóbico é um amigo de merda. O fóbico é cheio de "meu isso e meu aquilo" porque essa certezinha fantasiosa maluca de "possuir objetos e humanos e animais e afazeres" lhe dá alguma garantia de que ele ainda existe, de que não se desintegrou na última crise de pânico (apesar de sua personalidade ter se dissolvido em milhares de bolinhas de gude).

    Mas, enfim, voltemos ao parque Ibirapuera. Eu estava lá com a Júlia. Era sábado e fazia sol e nós caminhávamos felizes. Eu sempre caminhava feliz com a Júlia porque, apesar de a pontuação não ter batido os pontos da irmandade consanguínea, gosto mais dela que de 99% dos meus parentes. Foi quando uma criança passou de bicicleta e gritou para outra criança em outra bicicleta: "Tá, mas em qual portão? Esse parque é enorme!". Qual portão, hein? Não adiantava marcar "te encontro no portão" porque a criança A se perderia da criança B, pois tratava-se de um parque enorme.

    "A gente estava perto de qual portão?", automaticamente pensei, e para esse pensamento tão velho conhecido bastam alguns milésimos de segundo tão primitivos que são como bisavós do raciocínio: se o parque é enorme e não se sabe ao certo qual o portão mais próximo"¦ se eu passar mal, demorarei muito para conseguir sair daqui. E essa demora me levará a passar muito mal de fato e morrer de vergonha antes de, talvez, vir a, de fato, falecer.

    E por que eu passaria mal numa linda manhã de sábado? Não sei, mas já estava passando supermal. Motivo do óbito: de pensar que morreria, morreu. Motivo do óbito: parque muito grande. Motivo do óbito: não sabia qual era o portão mais próximo.

    Deito na grama, esparramada como uma bêbada em coma, mais branca que a meia de Júlia. De onde estou agora, só vejo a meia dela. Ela continua em pé, procurando ajuda. Levei uma porrada na nuca, um soco na boca do estômago, um elefante sentou em meu peito, amarraram um saco em minha cabeça. E nada disso de fato aconteceu. O corpo está tão eletricamente preparado para correr uma maratona no deserto que só consigo ficar deitada, tanto estímulo derruba minha pressão a níveis "falo enrolado e os dedos endurecem". Eu gostaria de dançar cancã no gelo e de voltar para o útero, ao mesmo tempo.

    "Que foi, que foi, que foi?", pergunta Júlia, entre o querer rir, a vergonha profunda dos carinhas gatos que passam e nada fazem e o medo de ter que me carregar mesmo sendo magrinha e tímida.

    XIXI

    Dois anos depois, Júlia terminaria um namoro e ficaria muito deprimida. A tristeza culminaria em sua primeira crise de pânico no trabalho, numa reunião. Ela me ligaria à noite para explicar: "Eu já tinha feito xixi, mas tive a certeza de que poderia fazer xixi de novo e que não conseguiria conter mais nada em mim". Mas, deitada ali na grama do Ibirapuera, dois anos antes dessa conversa com Júlia, só me restava explicar a ela: "Sei que parece frescura, sei que você não entende, mas é mais forte do que eu. Eu preciso de água, mas não tenho um centavo".

    Júlia também não tinha um centavo. Tínhamos resolvido dar uma caminhada sem levar a bolsa. Hoje em dia não saio de casa sem dinheiro (suficiente para que eu pague um taxista para me levar correndo a um bom hospital –apesar de nunca ter precisado ir a um hospital por causa disso), sem sal (pressão baixa), sem algum doce (hipoglicemia), sem Rivotril (ando com uma cartela cheia para o caso de precisar de vários para "me desligar da tomada em situação bizarramente angustiante como ter que ficar sobrevoando minha casa por horas porque a merda do avião estava sem 'pouso confirmado' devido ao tráfego intenso do horário"), sem Dramin (enjoo), sem Dramin B6 (para quando não quero ficar com muito sono), sem Vonau (enjoos mais intensos, "fodeu, acho que comi algo definitivamente estragado e esse enjoo não é aquele de 'se sentir mareado pela vida', é um enjoo sênior"), sem Dorflex (dores no pescoço me dão enxaqueca que me dá enjoo que me dá pânico porque tenho medo de vomitar), sem Magnésia Bisurada (acidez estomacal me faz pensar em endoscopia e, tirando a parte em que a injeção da endoscopia é a única diversão para quem tem medo de drogas festivas, endoscopia me dá muito medo) e sem Luftal (já fui internada para operar apendicite e descobriram que eram gases, então não gostaria de ficar nessa dúvida nunca mais), mas, naquela calma, bucólica e fraternal manhã de sábado, eu ainda não havia aprendido a levar minha bolsa com todas as coisas que me acalmam para todos os lugares, ainda que seja o térreo para pegar e pagar a pizza.

    Sem dinheiro, sem bolsa e sem condições de me mover, vi um carrinho vendendo água de coco e desejei morar dentro de um coco. Ele me refrescaria, reporia meus sais minerais, meu açúcar. Ele era o soro que algum ator global ensinava a fazer na TV, quando eu era criança, para combater não lembro que doença tropical. Me soou caseiro, me soou a mamãe, me soou a Jesus.

    Ordenei (a pessoa em pânico está cagando para convenções sociais) que o homem do carrinho de água de coco me desse um coco. Ele se negou. "Fiado só amanhã." Mas eu estava morrendo e não tinha dinheiro. Ele foi se afastando. Pensei em mostrar o mamilo esquerdo, pedi a Júlia que mostrasse o direito. Seriam dois peitos por uma água de coco. Júlia segurou no braço do homem e disse, calma, feminina, doce: "Então fica parado aqui, alguém vai vir comprar água de coco, e eu vou pedir pra esse alguém dar um pouquinho pra ela". E apontou para a minha carcaça, agora sentada na grama, pensando se os mendigos espalhados pelo país não eram pessoas que jamais voltaram de suas crises de pânico.

    Depois A Louca Sou Eu
    Tati Bernardi
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    Comprar

    O bom homem desistiu de nos negar aquele néctar que custava dois reais e nos ofereceu um copinho com um pouco da benfazeja água. Júlia veio toda feliz me trazer o copo, pensando que eu tomaria a água de coco e em segundos retornaria ao estado "a amiga que ela chamou pra passear no parque, e não essa maluca chafurdando numa grama mijada por uma imensa matilha de criaturas peludas de todas as classes sociais", mas, para sua ojeriza e impaciência, eu derramei a água sobre minha cabeça. Até hoje não entendi direito o motivo, mas estava tremendo tanto e com tanto calor no cérebro, que a coisa toda aconteceu, de novo, mais rápido e mais forte que a razão.

    Meia hora depois eu andava qual um bailarino maltrapilho do clipe de zumbis do Michael Jackson. Ainda sentia náuseas e medo, mas o pior já tinha passado. Minha testa e bochechas e queixo estavam cobertos de mini-insetos mortos e mini-insetos que lutavam pela vida. Todos devidamente colados na água de coco que havia banhado meu vexame e depois secado grudenta em minha pele.

    Júlia, que só dois anos depois entenderia que "nem sempre uma vontade de mijar é real", me apressava e reclamava, "você precisa ver isso, aumentar as consultas ao psiquiatra, não dá pra ficar assim passando mal do nada".

    Como assim, do nada? Fazia calor, aquele parque estava lotado, aquele parque era enorme. Se essas não são coisas terríveis, eu devo pertencer a outro planeta. Por isso o fóbico é também um melancólico, um filho sem pátria. Marte nos expulsou sem nem sequer termos conseguido fazer as malas.

    Ela está curada do câncer. Mesmo quando ainda estava doente, veio duas vezes ao Brasil, ver os amigos. Mesmo quando ainda estava doente conheceu a Tailândia, a Índia, a Rússia. Eu ainda não conheço Berlim.

    TATI BERNARDI, 36, escritora e roteirista de cinema e televisão, é colunista da Folha.

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