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    Raízes do Brasil político: Os caminhos de um projeto iliberal

    MARCUS ANDRÉ MELO
    ilustração ANA PRATA

    31/01/2016 02h05

    RESUMO O texto rebate afirmação do sociólogo Jessé Souza, que destacou, em entrevista à "Ilustríssima", a suposta "demonização" do Estado na sociedade brasileira. O autor argumenta que, pelo contrário, na história do Brasil o poder e o papel do Estado têm sido exaltados, em contraste com a tradição da democracia liberal.

    Foto Danilo Verpa/Folhapress

    Instigante debate tem sido gerado pela assertiva de Jessé Souza, na "Ilustríssima" (10/1), de que o Estado tem sido, no Brasil, "demonizado como corrupto e ineficiente e o mercado visto como o reino de todas as virtudes". Na realidade, as raízes do Brasil político e institucional passam longe de Sérgio Buarque de Holanda: elas se assentam em solo diverso, na santificação do Estado.

    As instituições políticas brasileiras foram moldadas por essa visão iliberal. Ela foi o princípio organizador da ordem social de acesso limitado, para usar o conceito de Douglass C. North e coautores, que caracteriza o Brasil do século 20.

    O Brasil monárquico, centralizador e escravagista do século 19 é por excelência o Brasil "Saquarema". Esse Brasil é produto da imaginação política do Visconde do Uruguai e dos líderes do Regresso Conservador: eles que forjaram as instituições fundamentais do país. Como lembra José Murilo de Carvalho, Uruguai é o pai do projeto conservador vitorioso que aposta na intervenção autoritária do Estado para redimir a nação e que marcou o Brasil do século 20.

    Esse projeto se assenta no pressuposto de que a sociedade civil e o mercado são viciosos –faccionais, particularistas, locais– e de que o Estado é o ator fundamental nesse reformismo "pelo alto". O Estado demiurgo garantiria a integridade da ordem territorial e social.

    Os discípulos diretos dessa visão no século 20 são Alberto Torres e Oliveira Vianna. Ao referir-se ao Brasil "invertebrado" criado pela República, Torres postulava um Estado forte que domasse os interesses privados regionais e patrocinasse o interesse coletivo. Em "Organização Nacional" (1910), Torres apresentou um projeto de reforma constitucional nacionalista e centralizador –e forneceu parte considerável do léxico iliberal que dominou o discurso político no século 20. Nessa chave, as instituições políticas liberais eram consideradas pouco propícias para prosperar no solo brasileiro. Vem de Torres e de pequeno círculo de publicistas com quem mantinha afinidades eletivas a fantasia do espelho de Próspero: a noção de que a democracia era coisa alienígena porque anglo-saxônica.

    O nosso "Ocidente" seria outro: Ibérico. Iberismo e democracia, autogoverno, ou governo limitado, seriam incompatíveis. Vem também desse círculo de publicistas o horror aos partidos políticos e à competição política. O "locus" da política eram os Estados –todos os partidos eram estaduais–, daí o horror à federação.

    Quando finalmente escreveram uma constituição –para um Estado Novo em folha–, celebraram-na com uma tenebrosa queima de bandeiras estaduais.

    Torres também forneceu a chave para a fórmula da disjunção "país legal versus país real". Não adiantava insistir, como seu adversário Rui Barbosa, em fazer cumprir a letra da lei, mas reconhecer o "idealismo da constituição", e superá-lo. Em livro com esse título, Oliveira Vianna sustentou que o remédio para essa disjunção era um Estado forte que asseguraria seus interesses contra os interesses mesquinhos, porque privados, dos clãs familiares. Para isso seria necessário passar por cima da Constituição artificial, porque liberal, ou elaborar uma carta constitucional em que o império da lei fosse uma ficção.

    CORPORATIVISMO

    Barbosa Lima Sobrinho, em sua biografia de Torres, mostra a influência decisiva dessa agenda na criação das instituições da Era Vargas –cujos principais atores políticos reuniam-se na Sociedade dos Amigos de Alberto Torres, fundada em 1932. Um dos seus membros, Oliveira Vianna, foi artífice de instituições com as quais convivemos até hoje, as estruturas corporativistas que regulam o mercado de trabalho no Brasil: a Justiça do Trabalho, o imposto sindical, a unicidade sindical, o IAA (Instituto do Açúcar e do Álcool), o IBC (Instituto Brasileiro do Café) e outros órgãos do intervencionismo econômico, como o Código de Águas e de Minas –a lista é longa.

    Vianna flertou abertamente com o racismo e o fascismo, mas a maioria dos arquitetos do Brasil contemporâneo não aderiu abertamente a projetos totalitários. A historiografia brasileira criou uma expressão própria para identificar o conteúdo substantivo do programa desses publicistas: "liberais autoritários", por buscarem fortalecer direitos individuais a partir de instrumentos autoritários. Na balança, na realidade, esses direitos pesavam muito menos do que a razão de Estado.

    Foto Danilo Verpa/Folhapress

    É fundamental enfatizar que Uruguai, Torres e Oliveira Vianna não eram literatos. Não moldaram apenas a visão de mundo dos brasileiros, tal como Sérgio Buarque de Holanda. Uruguai, Torres e Oliveira foram todos membros de cortes superiores e presidentes de província e Estados –além de ministros. Foram homens de Estado, construtores de instituições. Influenciaram gerações de militares golpistas e a esquerda brasileira.

    A rejeição ao liberalismo naquele contexto não foi um fenômeno brasileiro –só que no Brasil deitou raízes que permanecem até hoje. As democracias maduras fortaleceram o Poder Executivo e aprofundaram a democracia, extirpando a dimensão iliberal; no Brasil só fizeram a primeira tarefa, não a segunda. Muitas instituições (do mercado de trabalho etc.) continuam intactas até hoje e apresentam patologias desconhecidas no resto do mundo (como a existência de 38 mil sindicatos inorgânicos).

    O denominador comum do programa conservador, à esquerda e à direita, era o caráter subordinado que questões relativas à regra da lei, a responsabilização e controle democrático do Estado ocupavam na agenda de mudança. As instituições de controle e os direitos civis e políticos mereceram apenas notas de rodapé.

    A emancipação individual via educação não entrou na agenda. A democracia era valor não universal: o ditador foi aclamado pelo queremismo como grande líder. Afinal, matava, mas redistribuía. Não importava se as lideranças de esquerda tivessem apodrecido no calabouço do Estado Novo. Um novo "xibolete" fornecia a defesa contra a denúncia do abuso de poder e da corrupção: a desqualificação como udenismo.

    A perda da eficácia simbólica dessa arma retórica no Brasil na atual conjuntura é sinal de mudança na cultura política.

    Fortalecer o Poder Executivo na nova era industrial era imperativo, mas, ao mesmo tempo, seria necessário fortalecer os controles democráticos, como insistia Afonso Arinos. Essa agenda só foi enfrentada na Constituição de 1988, quando houve delegação significativa de poder ao Ministério Público, ao Judiciário, aos tribunais de contas. As reformas dos anos 1990 também eliminaram parte do legado varguista.

    A República Velha viveu a maior parte do tempo sob estado de sítio e poucas vozes se insurgiam contra o militarismo, o abuso de poder, a falta de competição política, a corrupção. O único a se levantar contra o estado de coisas vigente foi Rui Barbosa. Para ele, o presidente brasileiro havia se convertido no "poder dos poderes, o grande eleitor, o grande nomeador, o grande contratador, o poder da bolsa, o poder dos negócios, e o poder da força. Quanto mais poder tiver menos lhe devemos cogitar na ditadura [...] por todos reconhecida mas tolerada, sustentada, colaborada por todos".

    Rui e poucos outros buscaram seis vezes aprovar a Lei de Responsabilidade, sem sucesso: "Ainda não houve presidente nesta democracia republicana que respondesse por nenhum dos seus atos. Ainda nenhum foi achado a cometer um só desses delitos, que tão às escâncaras cometem. A jurisprudência do Congresso Nacional está, pois, mostrando que a Lei de Responsabilidade, nos crimes do chefe do Poder Executivo, não se adotou, senão para não se aplicar absolutamente nunca".

    E concluía: " O presidencialismo brasileiro não é senão a ditadura em estado crônico, a irresponsabilidade geral, a irresponsabilidade consolidada, a irresponsabilidade sistemática do Poder Executivo". A lei pedida por Rui só foi aprovada 40 anos depois, e debatida seriamente apenas na atual conjuntura de crise do país.

    GRANDE ELEITOR

    O monopólio do poder pelos incumbentes e o abuso do cargo estão patentes na falta de competição política: presidentes eleitos com 90% (Rodrigues Alves) ou 99,7% (Washington Luís) dos votos.

    Na denúncia de Rui, em 1914, estão apontadas as principais mazelas do Brasil, que surpreendem por sua atualidade: o presidente orwellianamente denominado por Rui de "O Grande Eleitor" exercia e continua a exercer papel decisivo na sobrevivência política dos deputados e senadores na barganha por emendas ao Orçamento e distribuição de cargos na base aliada.

    Na República Velha, as eleições eram uma disputa para selecionar quem desfrutaria "o privilégio de ser o aliado do poder central" (Nunes Leal) –padrão que foi decerto muito mitigado com a introdução do multipartidarismo. Como Rui afirmou, os governos eram "pais e senhores das maiorias legislativas". Hoje essas maiorias continuam sendo construídas à sombra do Executivo, mas não ancoradas em arranjos programáticos –e sim em fundos públicos.

    O presidente era e continua sendo em graus distintos "O Grande Nomeador", detendo o poder de nomear e demitir milhares de servidores. O presidente também é "O Grande Contratador". Usa e abusa do orçamento público em relações incestuosas com o setor privado. Modernamente manipula o crédito de bancos públicos sob seu controle direto e maneja politicamente os investimentos de fundos de pensão. O presidente encarna, e continua a fazê-lo, o poder da Bolsa, o poder dos negócios. Na ordem social de acesso limitado não há distinção entre empresa e Estado: essas esferas se amalgamam intimamente. A falta de instituições que representem compromissos críveis eleva os custos de transação e cria uma estrutura de incentivos danosa ao desenvolvimento endógeno.

    As instituições são a chave para o desenvolvimento, para o chamado novo institucionalismo econômico de North e da nova economia política do desenvolvimento de Daron Acemoglu e coautores. A natureza e a qualidade das instituições explicam em grande medida o sucesso e fracasso das nações.

    As "raízes do Brasil"–a chave para a compreensão do dilema brasileiro– são as instituições políticas e econômicas extrativas que foram implantadas ou a ordem social de acesso limitado que caracterizou a sociedade brasileira, para utilizar conceitos dessa literatura. Historicamente o traço distintivo foi a exclusão política e social: do escravo, do analfabeto e das mulheres.

    A extensão do sufrágio para as mulheres e a criação da Justiça Eleitoral em 1932 (reduzindo as fraudes) aumentou a inclusão. A introdução da representação proporcional permitiu pela primeira vez na história que incumbentes fossem derrotados, revigorando a participação política e o pluralismo. Mas a exclusão do analfabeto perdurou até a Emenda Constitucional 25 de 1985. Só com a recente redemocratização a participação política se universalizou.

    Os três pré-requisitos ("doorstep conditions") –império da lei, controle da violência e instituições impessoais– para a transição à sociedade de acesso aberto, segundo North, só agora parecem ter adquirido alguma materialidade.

    Podemos dizer gramscianamente que, enquanto "a velha ordem morre e a nova não nasce, ainda surge uma grande variedade de sintomas mórbidos": sua manifestação é o desfile de descalabros a que os brasileiros têm assistido com perplexidade.

    O Brasil de grande parte do século 20 é uma ordem social de acesso limitado. Em contraste com o que North denomina estados naturais frágeis e básicos, a violência aberta, produto da competição interelites, foi em grande parte contida. O império da lei é limitado e emerge em virtude do reconhecimento pelas elites de que permite ganhos recíprocos: surge do conluio rentista. O império da lei para Acemoglu resulta da contenda redistributiva; para North ele é produto de um arranjo intraelite, de seu autointeresse (esta é a principal controvérsia entre eles).

    Essa interpretação é mais persuasiva: o império da lei só tem tido alguma efetividade na contenda entre as elites políticas e econômicas. O regramento das disputas entre elites e não elites foi marcado pela impunidade. A teoria prevê que o império da lei expanda o seu escopo do círculo das elites para a sociedade como um todo. A identidade dos atores tem importado cada vez menos, como se pode observar nas decisões da instituições judiciais brasileiras.

    Quanto à violência política, ela marcou o século 20, pelo menos até a redemocratização. O início da República foi um episódio militar, e eles foram atores fundamentais em 1922, 1926, 1930, 1937, 1945, 1954, 1964-85. Pela primeira vez na história, a violência parece domada.

    Nas sociedades de acesso aberto, a "destruição criadora" leva permanentemente à criação e, pela competição, dissipação de rendas geradas pela inovação. Nas sociedades de acesso limitado, as rendas tendem a ser mais duradouras, embora possa ocorrer volatilidade e circulação nos setores das elites. As rendas são politicamente distribuídas, desencorajando a inovação e engendrando ciclos de "stop and go". Não há componente endógeno no desenvolvimento. As rendas se manifestam das mais variadas formas: crédito subsidiado, direcionado, acesso a contratos governamentais, regras de conteúdo, desonerações. E, para o Estado, a captura do imposto inflacionário.

    O abuso de poder e o risco permanente de expropriação de contratos têm sido o traço distintivo no Brasil, e só na quadra atual observa-se pela primeira vez a efetiva punição das elites. Mas, se o chefe do Executivo é iliberal, a mudança sofre retrocessos.

    MAJESTADE

    Assim, as raízes do Brasil econômico são políticas. A essa mesma conclusão chegou, em 1932, Ernest Hambloch, cônsul britânico no Rio de Janeiro. Para ele o problema do atraso econômico do país resultava de suas instituições políticas e, particularmente, do abuso de poder presidencial. Em seu livro sugestivamente intitulado "Sua Majestade o Presidente do Brasil" (1936), sua crítica centrava-se no poder despótico exercido pelo Executivo e a ausência de "rule of law", o império da lei:

    "Quando as coisas continuamente não estão bem em um país com os recursos formidáveis que o Brasil possui, deve haver uma constante que explique o fenômeno. Altas tarifas de importação, impostos de exportação, políticas de valorização com endividamento excessivo, falta de continuidade nas políticas de administração pública, distúrbios sociais e revoluções –todos esses fatores podem ser apontados para explicar as atribulações do comércio e das finanças públicas. Mas esse fatores não são as causas fundamentais e eles próprios não explicam nada!"

    E conclui: "As raízes dos problemas brasileiros devem ser buscadas nas deficiências do regime político".

    A forte tradição iliberal é a grande vencedora no processo histórico de construção do Estado no país. Sustentar o contrário é perder de vista o essencial: as instituições políticas brasileiras foram forjadas a partir de uma profunda rejeição de uma visão liberal "latu senso". As raízes do Brasil político e econômico não estão fincadas na demonização do Estado: pelo contrário, estão profundamente imbricadas na sua santificação. A transição começou, embora a grande variedade de sintomas mórbidos cause perplexidade.

    MARCUS ANDRÉ MELO é professor titular de ciência política da Universidade Federal de Pernambuco e foi professor visitante nas universidades Yale e MIT.

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