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    Em torno de Boulez, um inventor da música contemporânea

    SIDNEY MOLINA

    31/01/2016 02h03

    RESUMO Morto no dia 5 deste mês, aos 90 anos, Pierre Boulez foi uma das grandes referências e um dos principais inventores da música contemporânea. O autor percorre neste texto a carreira do compositor, que investiu na serialização e na radicalização do método dodecafônico que fora desenvolvido por Schoenberg.

    AFP
    O compositor e regente Pierre Boulez (1925-2016), em foto do fim dos anos 1960
    O compositor e regente Pierre Boulez (1925-2016), em foto do fim dos anos 1960

    "[...] De modo que me era necessário tentar seriamente, uma vez em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões a que até então dera crédito, e começar tudo novamente desde os fundamentos."
    René Descartes, "Meditação Primeira" (1641).

    Como Descartes, Pierre Boulez, morto no último dia 5 de janeiro, aos 90 anos, tentou ser Adão de manhã cedo. Sua violenta "Structures I" (1951-2) para dois pianos, precedida e seguida por manifestos igualmente violentos, buscava, na hora zero do pós-Guerra, fundamentar a nova música com radicalismo e pureza.

    "Structures I & II"

    Ele estudou com Olivier Messiaen (1908-92) e René Leibowitz (1913-72), que lhe forneceram subsídios respectivamente para a serialização do ritmo e das alturas sonoras –a radicalização do método dodecafônico que havia sido desenvolvido por Schoenberg (1874-1951) 30 anos antes.

    Schoenberg passara a organizar tanto a sucessão melódica como a verticalidade harmônica a partir de séries com uma ordem de notas preestabelecida, o que emancipava as dissonâncias e liberava a composição contemporânea dos acordes maiores e menores típicos da sintaxe tonal clássica.

    As estruturas de Boulez levaram ao limite o projeto serial, fazendo com ritmos, intensidades e articulações o que Schoenberg e seu discípulo Anton Webern (1883-1945) haviam realizado com as frequências.

    O serialismo integral –também praticado desde cedo pelo alemão Karlheinz Stockhausen (1928-2007) e, do outro lado do Atlântico, pelo norte-americano Milton Babbitt (1916-2011)– produziu um pontilhismo sonoro que recusava igualmente a linguagem motívico-temática das formas tradicionais. A tentativa era afastar do artesanato composicional qualquer traço de subjetividade, e o automatismo altamente matematizado da técnica parecia ser o caminho para que a arte da música fosse aceita como um modo da ciência.

    Em "O Resto É Ruído" (Companhia das Letras, 2007), o crítico Alex Ross afirma que "o advento da mentalidade pseudocientífica fica evidente nos títulos de alguns trabalhos apresentados em Darmstadt", a cidade alemã que foi o ponto de encontro da vanguarda musical dos anos 1950-60. "Os compositores se vestiam como cientistas, usando grandes óculos escuros e camisas de mangas curtas com canetas nos bolsos".

    Esse automatismo atingido por cálculos e permutações era, contudo, carregado de escolhas pré-composicionais arbitrárias. A peça do serialismo integral surgia a partir de um conjunto detalhado de axiomas, de regras a priori, como as "Regras para a Direção do Espírito" de Descartes. A ânsia por objetividade era sintoma de vida interior.

    QUEM LIGA?

    "Who Cares if You Listen?" –quem liga se você escuta?– é o título de um artigo publicado em 1957 por Milton Babbitt, o pioneiro dos programas de PhD em composição nas universidades de ponta americanas. É um exemplo da postura agressiva de um grupo de músicos que idealizou a história da música a fim de que ela desaguasse exatamente neles mesmos. Esse exclusivismo foi institucionalizado, o que gerou exageros e lacunas críticas que ainda se fazem sentir, inclusive no Brasil.

    O ódio de Boulez à tradição não poupou nem seus precursores imediatos. No célebre ensaio "Schoenberg Morreu" (1952), publicado poucos meses após a morte do músico vienense (aqui, o texto saiu em seu livro "Apontamentos de Aprendiz", lançado pela Perspectiva em 1995, hoje fora de catálogo), ele escreve: "Pode-se censurar amargamente Schoenberg por essa exploração do domínio dodecafônico, pois ela foi conduzida [...] com tal persistência que dificilmente se pode encontrar na história da música ótica tão errada."

    Para o jovem Boulez, só haveria música no contexto do serialismo integral: "Todo músico que não sentiu –e não digo compreendeu, mas efetivamente sentiu– a necessidade da linguagem serial é INÚTIL." A frase é transcrita por quase todos os críticos e musicólogos que se debruçaram sobre o período, de Paul Griffiths em "A Música Moderna" (Jorge Zahar, 1987) ao já citado Alex Ross.

    Em "Music in the Late Twentieth Century" (Oxford University Press, 2005), por outro lado, Richard Taruskin analisa o programa da vanguarda de Darmstadt no contexto da Guerra Fria como um movimento de praticar exatamente o que fora proibido pelo nazifascismo (o atonalismo) e, ao mesmo tempo, se opor ao realismo socialista do bloco soviético.

    Acusar a obra de um artista de mostrar aspectos contraditórios, até mesmo inconciliáveis –como fez Boulez com Schoenberg– é reconhecer a consequência como instância suprema. Não deixa de ser uma proposta estética estranha, até mesmo cômoda depois de um século de romantismo. De todo modo, o serialismo também teve de enfrentar as suas próprias (enriquecedoras) contradições.

    Ademais, para nós, hoje, o século 20 não deveria seguir forçado a ser o que não foi: a partir da herança de Bach, Beethoven e Brahms –para ficarmos arbitrariamente em uma única letra do alfabeto–a arte musical ocidental dos últimos 70 anos certamente passa por Boulez e Berio, mas também por Britten e Beatles, por Bird, Bowie e Björk. O século passado não cabe na narrativa de Darmstadt.

    REVISÕES

    A obra composicional de Boulez ocupa 13 CDs –a caixa da Deutsche Grammophon "Pierre Boulez Complete Works", com interpretações supervisionadas por ele mesmo, sai por pouco mais de U$60 no site amazon.com. São aproximadamente 40 obras, uma quantidade pequena, que se explica pela intensidade de sua carreira como regente –foi titular da Filarmônica de Nova York de 1971 a 1977, para mencionarmos apenas uma de suas atividades paralelas– e pelo número de revisões e ampliações a que submeteu quase todas as suas peças, além das inúmeras páginas inconclusas e retiradas de catálogo.

    Escutar cada uma das composições na sequência é uma experiência extraordinária: Boulez é a apoteose da inteligência e do perfeccionismo artesanal na arte contemporânea.

    Como intuiu Jean-Jacques Nattiez em "O Combate entre Cronos e Orfeu" (Via Lettera, 2005), há em sua arte uma sorte de classicismo –no sentido hegeliano da identificação plena entre conteúdo e forma–, mas isso é só metade do jogo: o classicismo de Boulez, que abarca a busca por equilíbrio e homogeneidade em suas interpretações como regente, é permanentemente autossabotado por uma força hiperbólica que mina a transparência. A frieza da superfície apenas disfarça um curto-circuito interno cuja raiz ele não permite entrever.

    Esse classicismo sabotado emerge –independentemente de qualquer polêmica– de uma relação velada com o próprio Schoenberg (e não com o seu ídolo, Webern). Há momentos na "Sonata n. 2 para Piano" (1948) em que a peça parece querer se desviar da tentação das figuras expressionistas, como se o experimentalismo fosse a traição de um destino.

    Piano Sonata no.2

    Boulez encontra sua voz poética com "Le Marteau sans Maître" (1955), obra para contralto e conjunto instrumental que se coloca em uma relação de sinédoque com "Pierrot Lunaire" (1912), de Schoenberg. A desleitura do antecessor está consumada pela maestria do timbre e por uma fluidez temporal que remete também a Debussy (1862-1918).

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    "Pli selon Pli" para soprano e orquestra –que começou a ser composta em 1957 com as duas "Improvisations sur Mallarmé" e só foi plenamente concluída em 1989– talvez seja o real passo adiante de "Jeux", de Debussy, assim como o misterioso pulsar de "Rituel in Memoriam Bruno Maderna" (1975) é um raro diálogo de dupla mão com Stravinsky e Stockhausen.

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    "Rituel in Memoriam Bruno Maderna"

    Com "...Explosante-Fixe..." (1972-93) e, sobretudo, "Répons" (1980-4) –esta para dois pianos, harpa, vibrafone, glockenspiel, címbalo, orquestra e eletrônica– o compositor enfim atinge a maturidade total. São obras sem disfarces técnicos, distantes da falsa violência das polêmicas. Elas permitem que as minúcias sigam o seu rumo sem medo de deixar pistas.

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    Essas pistas são quase melodias, quase seções formais, quase contrapontos. Aceitam que não possa mais haver recomeço edênico, nem mesmo para um Descartes pós-Hiroshima. Generosas, as pistas dispersas em "Répons" são as respostas de um compositor que, enfim, se colocou profundamente à escuta de si mesmo.

    SIDNEY MOLINA, 51, violonista do Quaternaglia e crítico de música da Folha, é doutor em semiótica e autor de "Música Clássica Brasileira Hoje" (Publifolha).

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