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    PONTO CRÍTICO

    A distância entre jornalista e história no podcast "Serial"

    JULIANA GRAGNANI

    31/01/2016 02h02

    Às vezes, a história por trás da história é sua melhor parte. A combinação entre a história real e a apuração jornalística para destrinchá-la compõe a estratégia perspicaz do podcast americano "Serial", a mais bem-sucedida série em áudio da história. O programa foi baixado 68 milhões de vezes, um recorde para o gênero.

    Na primeira temporada, que foi ao ar em 2014, ouvimos Sarah Koenig, a jornalista-narradora do programa, refazer uma investigação já encerrada sobre um assassinato praticado em 1999 nos EUA. Foram 15 meses de apuração, e o trabalho foi editado em 12 episódios de 42 minutos, em média. O programa, todo em inglês, é gratuito e está disponível em serialpodcast.org e em aplicativos voltados para o gênero em smartphones e tablets.

    Elise Bergerson/The New York Times
    A jornalista Sarah Koenig, durante gravação de um espisódio de "Serial", em Nova York (EUA)
    A jornalista Sarah Koenig, durante gravação de um espisódio de "Serial", em Nova York (EUA)

    O caso é daquelas histórias com potencial de causar indignação: há um jovem preso, condenado pela morte por estrangulamento da ex-namorada. As provas revistas por Koenig, no entanto, mostram que o rapaz –que cumpre pena perpétua na cadeia– pode ser inocente.

    Mas o interesse pela narrativa só se acentua porque Koenig demonstra, propositalmente, seu envolvimento com a história: diz estar obcecada com o crime, revela frustrações, dúvidas e até hipóteses que surgem de seu instinto, e não de apuração. Sua locução é informal, e ela parece ser sincera com o público (mesmo que até suas hesitações sejam roteirizadas). Mais do que uma jornalista distante da história, ela é personagem.

    Do gênero "crime real" da primeira temporada –onda na qual surfam também as séries de TV "The Jinx" (HBO) e a mais recente "Making a Murderer", do Netflix–, passamos agora a esta segunda temporada, um thriller político.

    Mais árida, a segunda fase de "Serial" esmiúça a história real do soldado americano Bowe Bergdahl, capturado pelo Taleban no Afeganistão após ter abandonado seu posto. Cinco anos mais tarde, em 2014, ele seria libertado em troca de integrantes da organização presos na base de Guantánamo, em Cuba.

    Como na primeira temporada, a investigação de Koenig é minuciosa: ela entrevista militares que trabalharam com Bergdahl, escuta especialistas ligados ao Exército e consegue até falar com membros do Taleban, por intermediários.

    Desta vez, não sabemos aonde o seriado quer chegar –o que causa certo estranhamento–, mas há algumas perguntas que propõe responder. A principal delas: por que Bergdahl, que será julgado pela corte marcial dos EUA, abandonou seu posto? Acusado de deserção e mau comportamento diante do inimigo, pode acabar condenado até à prisão perpétua, ainda que tenha sofrido durante cinco anos nas mãos de terroristas.

    O acesso da jornalista a Bergdahl, porém, é mediado: há 25 horas de gravações de entrevistas que ele deu por telefone –só que ao produtor de cinema americano Mark Boal. Isso porque Boal, que produziu filmes como "A Hora Mais Escura" e "Guerra ao Terror", ambos de Kathryn Bigelow, pretende fazer um longa baseado na história de Bergdahl e cedeu o material de pesquisa a "Serial".

    Refém das perguntas feitas por outra pessoa, Koenig se distancia da história (que, apesar disso, continua intrigante: Bergdahl conta como foi viver em um quarto escuro, em pé, durante meses; como, ao ser resgatado, pediu para tirarem um relógio de um quarto onde permaneceu –a noção de tempo, cinco anos depois, o assustava).

    O que poderia derrubar um trabalho jornalístico, o entrevistado inacessível, acaba afastando as paixões de Koenig, e, de quebra, o voyeurismo do público –na primeira temporada, podcasts foram criados só para discutir "Serial", uma obsessão agravada pela publicação dos episódios enquanto a apuração estava em andamento.

    A distância entre jornalista e história e entre público e bastidores é pior para o entretenimento, mas melhor para o jornalismo. Às vezes, é preciso reconhecer que a história em si, e não aquela por trás dela, é a melhor parte.

    JULIANA GRAGNANI, 24, é jornalista da Folha.

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