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    Poesia e silêncio ecumênicos

    DANIEL LOBO

    14/02/2016 02h07

    Desde que estreei a primeira versão da "Trilogia do Inconsciente", percebo o forte poder curativo que tem a obra da dra. Nise da Silveira. Mais que um espetáculo, "Nise da Silveira - Guerreira da Paz" é um evento espiritual. Sim, falo de religião, do latim "religare". Acredito na "vida como obra de arte", como diria Antonin Artaud. Arte consagrada no altar do coração, como um canal para a evocação do plano sutil, etéreo, curativo. O artista como um xamã.

    Desde muito cedo trago flores nas mãos. Estreei como ator em 19 de maio de 1984 fazendo "O Menino do Dedo Verde", de Maurice Druon. Na peça, Tistu, filho de um rico empresário, dono de uma fábrica de armas, descobre que tem o poder de transformar em flor tudo que seu dedo toca. Tistu parte com o seu polegar verde rumo à fábrica de canhões de seu pai. Assim começa minha história.

    Em 2007 criei "O Amante do Girassol", CD com poemas e canções de minha autoria, interpretados por diversas personalidades. Um dos poemas, "O Caminhante", parafraseava Drummond e apontava a espiritualidade e a lei budista de causa e efeito como um mantra a ser trilhado no caminho da vida e da arte.

    Projeto "O Amante do Girassol"
    Monja Coen e dra. Zilda Arns na sede da Pastoral da Criança, em Curitiba, em 2007
    Monja Coen e dra. Zilda Arns na sede da Pastoral da Criança, em Curitiba, em 2007

    "(...) Então vais pelo sombreado de teus vultos/ Concede-te o direito à escolha/ De teus pulsares erguerás digno./ De teus agires verterás o rio./ O rio em vinho./ E beberás o Sim da tua colheita, o Sim do teu destino."

    Foi com fé que procurei pela monja Coen e pela dra. Zilda Arns (1934-2010), desejando que as vozes e corações semeadores de amor e paz pudessem evocar o poema. Tive que ter coragem para procurá-las com essa proposta bastante inusitada. Falei-lhes do encontro ecumênico que desejávamos ao uni-las com arte. E que elas eram a poesia, que não precisariam interpretá-la, apenas senti-la, fazê-la pulsar naturalmente em suas vozes.

    Com monja Coen consegui falar diretamente. Ela me ouviu com silêncio doce e pediu que enviasse o poema. Da mesma forma procedi com a equipe à frente da Pastoral da Criança, iniciativa humanitária conduzida pela dra. Zilda Arns, à época em viagem.

    Dias depois, a surpresa: elas acolhiam e aceitavam partilhar. Com agendas tão intensas, restava saber como uni-las para a gravação. Mas a sincronicidade junguiana costurou aquilo que muitos chamam de acaso.

    Justamente na data sugerida pela dra. Zilda Arns, monja Coen estaria em retiro espiritual em Curitiba, sede da Pastoral da Criança.

    E ali estávamos nós, caminhando e plantando as sementes do bem até chegarmos ao estúdio dentro da instituição. Tínhamos criado uma trilha sonora original com a orquestra Camerata Florianópolis e com o grupo de taikô –tambores típicos japoneses– Shimadaiko, da Sociedade Nipo-Catarinense.

    Porém, ao iniciar a gravação, percebemos que aquelas vozes tinham melodia própria, pungente e serena. E que o silêncio durante o poema era preciosa oração.

    Decidimos ali, na emoção da gravação, que os tambores abririam os caminhos para aquelas vozes sagradas. E a orquestra acompanharia as vozes na segunda parte do poema.

    Agora, em janeiro de 2016, recrio meu voo de Ícaro para tocar o sol mais uma vez com poesia e paixão. "Nise da Silveira - Guerreira da Paz" estreia no teatro do Masp. É preciso navegar, enfrentar temporais e icebergs com o coração tropical. Monja Coen nos honra mais uma vez, agora sendo A Voz do Inconsciente (ou a de Jung), enquanto índios guaranis evocam seus cantos saudando a nossa "cacica da natureza" e grande-mãe Nise da Silveira. Evoé!

    DANIEL LOBO, 43, é ator e diretor. "Nise da Silveira - Guerreira da Paz", que dirige e no qual atua, fica em cartaz no teatro do Masp até 28/2.

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