RESUMO Uma vez que a economia ajuda nas escolhas feitas para a implementação de políticas públicas, cabe a ela usar dos procedimentos da ciência para ajudar a garantir a efetividade das propostas. Método, argumentos precisos e bases de dados acessíveis permitem a revisão crítica de acadêmicos e a verificação.
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Economia não é literatura, em que boas histórias são suficientes. Ciência requer método: argumentos precisos que possam ser contrapostos a testes empíricos. Neste ensaio, utilizamos alguns exemplos para ilustrar como os procedimentos acadêmicos podem colaborar com a política econômica.
Como revela o caso brasileiro recente, a estratégia usual de quem fracassa na condução da economia não é reconhecer seus próprios erros e procurar corrigir o rumo, mas sim procurar culpados –seja uma crise externa, seja um interesse contrariado. O inferno são os outros.
A controvérsia na academia é de outra natureza. Como evitar que sejamos reféns das nossas crenças, atribuindo os fracassos aos demais? Como identificar eventuais falhas dos nossos argumentos ou das suas implicações empíricas, evitando a armadilha do autoengano? O inferno somos nós.
O método e os procedimentos da ciência procuram garantir critérios para identificar as fragilidades dos argumentos por meio de conjecturas precisas o suficiente para que possam ser rejeitadas pelos dados disponíveis. Procuram também reduzir a possibilidade da estratégia que procura superar o fracasso com uma história oportunista. Argumentos precisos e bases de dados acessíveis permitem o contraditório, a revisão crítica pelos demais acadêmicos.
Como argumentamos adiante, são de pouca valia tanto modelos sem suporte empírico quanto dados sem modelos que permitam identificar a causalidade entre as variáveis.
A economia procura evitar a retórica que promete muito, porém entrega pouco. Esse risco não tem filiação ideológica, contaminando tanto argumentos identificados como à esquerda no debate popular no Brasil, como diversos argumentos desenvolvimentistas, quanto os à direita, como as teses liberais extremas do pensamento austríaco.
A produção acadêmica apenas permite selecionar as conjecturas consistentes com a evidência disponível, assim como delimitar as fragilidades dos argumentos. Dessa análise resultam, frequentemente, diversas opções de políticas públicas, contudo, com implicações distintas sobre a economia e a sociedade. Cabe à política, não à economia, fazer a escolha entre essas opções.
MODELOS
Comecemos com um exemplo. Diversos modelos resultam em uma relação entre a taxa de juros fixada pelo Banco Central e a trajetória futura da taxa de inflação. A estatística permite verificar em que medida o resultado previsto pela teoria –alta do juro levando à queda da inflação– é consistente com os dados observados, dentro de uma margem de erro. Importam aqui dois aspectos: 1) a conjectura teórica pode ser rejeitada pelos dados; e 2) há sempre uma margem de erro, descrita por um intervalo de confiança.
A margem de erro é inevitável por duas razões.
Em primeiro lugar, o argumento científico não captura todos os fatores que afetam a variável analisada. Modelos em economia são, por necessidade, simplificações da realidade, capturando apenas uma parcela dos fatores que afetam as variáveis (no famoso conto de Borges, os sábios tardiamente constatam que os mapas de tamanho real são de pouca utilidade prática). O desafio é demonstrar que, apesar dessas limitações, a conjectura não pode ser rejeitada pelos dados.
Em segundo lugar, pode haver incerteza intrínseca aos fenômenos, não apenas uma medida da nossa ignorância ou de modelos simplificados.
Em ambos os casos, a conjectura deve ser analisada como probabilística. Essa não é uma peculiaridade da economia. O tratamento probabilístico ocorre em ciências como a física e a biologia e pode decorrer da nossa ignorância ou da incerteza intrínseca aos fenômenos. Na economia, houve um estéril debate sobre em que medida a probabilidade deveria estar restrita a fenômenos repetidos, o qual apenas revelou a falta de conhecimento de matemática.
VERACIDADE
A eventual consistência da conjectura com os dados observados, no entanto, não significa que se possa concluir pela veracidade da tese. O resultado pode ser fortuito. Por isso, o jargão usual é afirmar que a conjectura "não foi rejeitada" pelos testes empíricos, e não que ela "foi validada". A "verdade" pode ser defendida na religião ou em ramos da filosofia, não nas ciências.
A controvérsia sobre o que se pode inferir da análise empírica resultou na abordagem pragmática das ciências. Não se pode afirmar a verdade das conjecturas, mas apenas a sua possibilidade, uma vez que não rejeitadas pelos dados disponíveis, podem vir a ser desmentidas por novas evidências. Deve-se manter a húbris sobre controle.
Diversos trabalhos em história da ciência mostram como alguns acadêmicos utilizaram artifícios para evitar reconhecer os equívocos dos seus argumentos. Os procedimentos da ciência, no entanto, permitiram não apenas identificar esses casos; eles também resultaram em notáveis transformações nos últimos 300 anos.
A evidência disponível indica que a renda por habitante no mundo até meados do século 17 não ultrapassava o equivalente a R$ 5 por dia, renda que, nos padrões atuais, define a extrema pobreza. E a expectativa de vida era de cerca de 40 anos de idade.
A pesquisa acadêmica indica dois fatores como os mais prováveis responsáveis por esse resultado: 1) os métodos e procedimentos para a construção de argumentos científicos; e 2) as profundas transformações institucionais ocorridas nos países desenvolvidos a partir do fim do século 17.
CONTRADITÓRIO
O debate público pode levar o acadêmico a perder um pouco do rigor e humildade científicos. Isso apenas reforça a necessidade do contraditório, na contramão dos manifestos indignados que pedem que editores de jornais censurem argumentos.
A crítica é essencial, pois o que podemos concluir, com os dados disponíveis, é um subconjunto pálido do que gostaríamos de saber. A evidência indica que graves desequilíbrios fiscais geram inflação e juros elevados; que controle cambial gera desequilíbrios nas contas externas; que desemprego baixo e inflação alta recomendam uma política monetária mais restritiva; que a ausência de direitos de propriedade prejudica o investimento; que intervenções setoriais discricionárias podem ser contraproducentes.
Por outro lado, não há evidência consolidada sobre quando a política fiscal expansionista colabora com a expansão da economia; o que o Banco Central deve fazer frente a um choque adverso de oferta; ou, ainda, como identificar os projetos que apresentam retorno social maior do que o privado e que, portanto, devem ser subsidiados. E, para a tristeza dos macroeconomistas, seguramente não entendemos os determinantes da taxa de câmbio no curto prazo.
A produção acadêmica apenas permite eliminar as políticas cujos resultados propostos são inconsistentes com a evidência disponível. Usualmente, diversas políticas superam esse filtro, com implicações distintas sobre a economia e a sociedade. Algumas, por exemplo, podem resultar em maior crescimento da produtividade e maior desigualdade de renda, enquanto outras podem proteger os grupos mais vulneráveis à custa de menor crescimento econômico.
A escolha da política a ser adotada requer um juízo de valor sobre as possíveis opções e seus custos e benefícios. E juízo de valor não cabe à economia, mas sim à deliberação da sociedade.
DISPERSÃO
Argumentos sem dados podem ser tão sedutores quanto equivocados. Ilustramos esse ponto com um exemplo conhecido dos economistas. Existe uma imensa dispersão de renda entre os países do mundo. O grupo dos mais ricos tem renda por habitante cerca de 20 vezes maior que o dos mais pobres.
Nos anos 1990, alguns economistas resgataram a conjectura de Schumpeter, devida originalmente a Karl Marx, sobre o papel da concorrência no estímulo à inovação. Nesse argumento, a produtividade decorre das decisões de investimento por parte das empresas, que obtêm lucros extraordinários enquanto a inovação não é copiada pelos demais. A conclusão, portanto, é que quem investe mais em tecnologia torna-se mais desenvolvido. O arcabouço formal é elegante e preciso; a intuição é clara. Mas... A elegante conjectura não recebeu o suporte dos dados. Inovações não explicam a diferença de renda entre os países. A tese foi rejeitada. A vida é dura.
Pode-se procurar defender a conjectura argumentando que é possível importar técnicas de produção desenvolvidas alhures. Se essa importação não está ocorrendo, ou se as empresas que usam as melhores técnicas não são capazes de expulsar as ineficientes do mercado, outra explicação é necessária. Assim evoluem as coisas no mundo acadêmico. Modelos sem suporte empírico morrem e são substituídos.
HUMILDADE
"O que os dados estão de fato dizendo?". Dados não fazem milagres. Na maioria das vezes, apenas nos ajudam a discriminar os diversos argumentos compatíveis com a evidência –mais um motivo, vê-se, para certa dose de humildade. Um exemplo numérico ajuda a ilustrar esse ponto.
Considere uma política pública voluntária de treinamento para trabalhadores que recentemente perderam seus empregos. De cada 100 desempregados, 20 escolhem fazer o curso e, desses, 14 conseguem, um ano depois, empregos melhores do que os que não fizeram o curso. Já do grupo dos 80 que não frequentaram o curso, 40 conseguiram empregos melhores.
Vale a pena gastar tempo e recursos com esse programa? O que dizem os tais dados?
O problema reside na ausência de evidência contrafactual: qual seria o desempenho dos desempregados que não participaram do programa caso eles tivessem na verdade participado? Os desempregados que escolheram fazer o curso provavelmente são diferentes dos demais; afinal, escolheram estudar depois de perder o emprego. Talvez por serem diferentes, e não por causa do curso, têm maior chance de conseguir empregos melhores do que os demais.
Isso significa duas possibilidades extremas: 1) os desempregados que não participaram do curso não se beneficiariam do programa; 2) o programa beneficiaria todos os que escolheram não participar. No meio do caminho: 3) o programa teria impacto semelhante em todos os desempregados.
As três conjecturas são possíveis, mas, na ausência de testes adicionais, os dados não permitem uma resposta precisa.
Sob 1), de 100 desempregados, 14 (grupo tratado, com melhora) + 0% vezes 80 (grupo sem contrafactual)= 14 teriam melhor desempenho se o programa se tornasse obrigatório. Mas sob 2), dos mesmos 100, 14+ 100% vezes 80 = 94 conseguiriam melhores empregos. A conjectura intermediária prevê 14+ 70% vezes 80 (grupo não tratado) = 70 beneficiados pela extensão do programa para todos os desempregados. Os dados têm poder limitado nesse caso.
Incertezas similares valem para outros tipos de estudos empíricos. Sem teoria, os dados dizem pouco. Mas, ao menos, a discussão permite distinguir as razões da divergência, além de propor novos testes para colaborar com a controvérsia. A propósito, a evidência adicional indica que os que escolheram participar do programa são, de fato, diferentes dos demais, e o impacto do programa é menor.
CETICISMO
À guisa de conclusão, vale dizer que, em economia, o santo é realmente de barro, e as incertezas são muitas. O iluminismo relevante é o escocês, dominado pelo ceticismo e o pragmatismo. Não temos acesso à verdade; temos, na melhor das hipóteses, conjecturas que não tenham sido rejeitadas pelos dados (mas que podem vir a sê-lo).
Ciência requer procedimentos formais sobre conjecturas precisas, testes empíricos e discussões detalhadas sobre modelos estatísticos, colaborando com o rigor na análise da evidência e dos argumentos propostos.
Nem todos os caminhos levam a Roma. Por maiores que sejam as suas limitações, argumentos precisamente definidos e testes empíricos que verifiquem a validade das conjecturas são preferíveis a teses de ocasião, desconexas, recheadas de retórica e latinismos, que buscam muitas vezes a simples desqualificação da divergência. A política pública se beneficiaria de maior cuidado e atenção às evidências e aos procedimentos.
CARLOS EDUARDO GONÇALVES, 43, é professor titular da USP e economista do site porque.com.br
MARCOS DE BARROS LISBOA, 51, é doutor em economia pela Universidade da Pensilvânia e presidente do Insper.