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    O narrador dubitativo do cinema de François Ozon

    MARÍLIA LIMA

    14/02/2016 02h03

    RESUMO Com inspiração na literatura e no teatro, o cineasta francês François Ozon se firmou como um autor que provoca no espectador não a identificação, mas a dúvida diante do que vê e se conta na tela. Ele é tema de mostra, sob curadoria da autora deste texto, no cinema Caixa Belas Artes, em São Paulo, de quinta (18) a 2/3.

    Divulgação
    A atriz Marine Vacth em cena de "Jovem e Bela"
    A atriz Marine Vacth em cena de "Jovem e Bela"

    Uma família burguesa, como tantas outras, um casal, uma filha e um filho. Um ratinho de laboratório visita o lar e desperta neles comportamentos controversos, impulsivos, nunca imaginados antes –ou será que sim? É com esse ratinho, em "Sitcom" (1998), que o diretor francês François Ozon inicia sua carreira em longas-metragens. Seu filme é o roedor que invade as entranhas do inconsciente da família burguesa, do cinema, do espectador. Burgueses que não conseguem deixar uma sala, burgueses que não conseguem finalizar um jantar, burguesa que realiza suas fantasias em um bordel.

    Ainda há desejos inconscientes a serem libertados, fuxicados ou remexidos pelo cinema contemporâneo. O que Buñuel fez, o diretor francês atualiza, mas suas referências não se esgotam aí.

    Além de vir de cineastas como Éric Rohmer, Pasolini e Chabrol, sua inspiração se encontra no teatro, na literatura e nos gêneros cinematográficos. Segue assim a tradição de um cinema autoral, o estilo do diretor que, mesmo mudando a atmosfera, diversificando os atores e a tipologia da narrativa, mantém um olhar que questiona o espectador sobre aquilo que vê.

    Seu cinema é de aparências, esconde algo por trás da superfície do tecnicolor em "Angel" (2007), uma jovem que realiza o sonho de ser uma escritora famosa e vive uma vida de ilusão, ou ainda esconde algo sobre o garoto que cria uma ficção baseada em uma família comum francesa em "Dentro da Casa" (2012); ou por entre as passagens das estações da vida dupla de uma adolescente que se prostitui em "Jovem e Bela" (2013).

    Em "8 Mulheres" (2002), a aparência construída é mais radical: a referência aos musicais nas performances das personagens cria o universo superficial que, ao mesmo tempo, dissimula a busca pela assassina do patriarca da família e revela os desejos mais densos daquelas mulheres.

    As respostas que o espectador busca nesses filmes, no entanto, não são dadas pelo narrador, mas encontram-se na camada mais profunda da celuloide ou dos pixels, esperando pelo espectador que será tocado pela imagem, pelo afeto que perturbará seu olhar e despertará o pensamento.

    A rarefação em outros filmes insere o espectador em imagens que não informam elementos importantes para entender a narrativa, não apresentam códigos a decifrar.

    Assim, em "Sob a Areia" (2000), o marido desaparece, e é como se fosse simplesmente levado pelas próprias mãos do narrador para ver as reações de sua mulher, Marie. E o que se espera dela fica apenas na expectativa do espectador, sem drama aparente no qual ele logo se identificaria e sofreria com ela.

    CHAVES

    O cinema dominante, o que está presente em nossas tardes desde que nascemos, cria-nos um universo de acontecimentos, de conflitos que precisam ser solucionados e explicados dentro dos limites da verossimilhança. Em filmes fora do padrão de Hollywood, ou continuamos na busca em cada imagem dos porquês e ficamos sem entender, ou ligamos a chave do "este-é-um-filme-cult".

    No entanto, Ozon fica no limite, dá-nos a linha da história, mas a rompe todo o tempo, seja com os próprios caminhos da narrativa, seja por uma música, pela morte prematura de um personagem ("O Tempo que Resta", 2005), pelas estações do ano, ou pela ficção criada pelos personagens dentro do filme ("Swimming Pool", 2003).

    Seguimos um homem no metrô até um apartamento onde um casal se entorpece. Ele é o traficante que os mantém. Um deles sofre overdose e a outra, grávida dele, se refugia em uma casa de praia. O traficante, como o marido de Marie, foi colocado para despertar a narrativa que surgiria do drama da família, da grávida solitária.

    "O Refúgio" (2009), contudo, caminha na própria atmosfera sem peso e densidade da praia, dos encontros. O narrador provoca as ações, mas o que vemos não será o seu desencadear num ritmo linear que faria com que, no final, saíssemos sem dúvidas do cinema.

    As interrogações são postas, mas a questão principal colocada é por que tantas interrogações. Onde está o prazer visual do filme? O que faço com ele? Estas são questões iniciais colocadas por esse cinema dominante. O prazer do "voyeur" que espia uma janela do mundo, protegido na poltrona. Então prepare-se para outras experiências, pois nenhuma culpa por seus desejos reprimidos será aliviada nos filmes de Ozon.

    Entramos em seu universo como em "Dentro da Casa", mas ficamos na superfície do imaginário do personagem que não nos é dado por completo. Como este próprio texto fica na superfície das palavras escritas que atiram ideias, sugerem formas de olhar o cinema de Ozon, mas esconde algo. Esse algo ficou na imagem vista, não lida, portanto, ainda não pronunciável.

    Algo fantástico como a história de "Ricky" (2009), um bebê que tem asas. A criança alada, sem explicação, nasceu com o dom de voar. E o que esperar da família e da sociedade midiática e espectacular que procura à exaustão explorar a história? A mãe, o pai e a irmã não sabem como lidar com Ricky, assim como o espectador diante do filme.

    E, nesse ponto, interrogamos o narrador na busca de entender o que estamos vendo. É esse questionamento que nos faz perceber que estamos diante de uma história construída, e é isso que nos tira da posição de "voyeur" e nos faz desconfiar do que vemos.

    Essa premissa narrativa circulou no cinema desde as vanguardas europeias da década de 1920 (o expressionismo alemão, o impressionismo francês, o surrealismo, a montagem russa). Cada proposta experimental articula novas maneiras de provocar o espectador a questionar a ordem natural das coisas do mundo.

    Ozon assim o faz, explorando gêneros, atores e atrizes diversas, sem (ainda) o esgotamento da forma. Sua diversidade narrativa advém das suas referências, do diálogo com as outras artes, mostrando que o cinema sobrevive por meio da pluralidade de linguagens.

    OUTRO

    "Uma Nova Amiga" (2014), seu filme mais recente, nos coloca diante da situação de que um homem que se transvista de mulher ainda nos parece estranho. David, viúvo, em sua casa cuidando de sua filha, veste-se com as roupas da mulher morta e, com esse simples gesto, nos mostra os limites da aceitação social de um outro que está além das representações de identidade.

    Romper com isso parece um tanto mais difícil do que falar sobre amantes assassinos ("Amantes Criminais", 1999), uma criança voadora, uma mulher que sai de sua bola para gerir uma fábrica ("Potiche - Esposa Troféu", 2010) ou de uma adolescente prostituta. Pois o próprio narrador não parece estar muito certo de como lidar com esse "novo/a-homem-mulher-outro" que surge. Como dizer? Como representar? É um Ozon que também se questiona, que se coloca nas máscaras sociais e na pele de David/Virginia, e que, por fim, cede às imposições externas.

    O estranhamento vem não das situações ou dos personagens, mas do universo da aceitação do outro. A ação de aceitar como questionamento, ou seja, de permitir existir. David se depara com ter de ser aceito por querer ser Virginia em tempo integral. O enredo parece ser comum a tantos outros filmes que trabalham com esses temas; no entanto, há aqui a presença do narrador transvestido do olhar social, que pode deixar, ou não, Virginia existir.

    O que esperar mais de Ozon? Para ele, há sempre novas formas de trabalhar a imagem e embaralhar as expectativas dos espectadores. É a partir dessa diversidade de modos de narrar que Ozon realizou seus 15 longas-metragens (e já está produzindo o próximo, "Frantz") e mais de 15 curtas. E é em cada filme que o diretor experimenta novas maneiras de perfurar as entranhas do espectador, como o ratinho de "Sitcom", que desconcerta a família, seus valores e seus desejos, libertando-os para outras experiências.

    São outras experiências que os filmes de Ozon nos proporcionam; somos colocados, com seus personagens, diante de situações estranhas. Assim nos distanciamos de um cinema que nos causa identificação e passamos a questionadores da imagem, das ações ou apatia dos personagens, e, principalmente, daquele que nos conta a história, o narrador.

    MARÍLIA LIMA, 30, é mestre em comunicação pela Universidade Federal de Juiz de Fora e dirigiu o curta "Minas Hotel" (2015), além de coordenar a comunicação e curar o Primeiro Plano - Festival de Cinema de Juiz de Fora.

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