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    Os black blocs de agora não são os mesmos daquele junho

    FERNANDA MENA

    21/02/2016 02h03

    RESUMO O termo "black blocs" se vulgarizou a partir dos protestos de junho de 2013 como sinônimo de "vândalos". Ele porém não designa um grupo definido, mas uma tática de manifestação iniciada na Alemanha nos anos 1980, que adquiriu contornos particulares no Brasil nos últimos anos, como explicam estudiosos à Folha.

    Fabio Braga - 13.dez.13/Folhapress
    Black blocs durante protesto contra o governador Geraldo Alckmin no centro de São Paulo, em 2013
    Black blocs durante protesto contra o governador Geraldo Alckmin no centro de São Paulo, em 2013

    Os recentes protestos contra o aumento da tarifa do transporte em São Paulo trouxeram de volta um termo que, em 2013, povoou jornais e revistas, intrigando os comentaristas e a população. Os black blocs de agora, no entanto, não são os mesmos daquele junho.

    Menos numerosos e de perfil mais homogêneo, os mascarados atuais são, em sua maioria, jovens das periferias, em geral menos politizados que aqueles que, então, protagonizaram quebra-quebras. De acordo com os poucos pesquisadores que acompanham o fenômeno em sua versão paulistana, trata-se de um grupo de "20 ou 25 jovens, no máximo".

    Podem parecer, no entanto, mais numerosos nas ruas.

    "Uma coisa é alguém usar a máscara porque se identifica com a proposta. Outra coisa é fazer ação direta contra bancos, por exemplo. Esses são muito poucos", explica Esther Solano, professora da Unifesp e coautora de "Mascarados: A Verdadeira História da Tática Black Bloc" (Geração Editorial, 2014), única pesquisa etnográfica feita sobre o tema no país.

    Solano frisa que black bloc é um modo de se manifestar e, portanto, não existe nele a ideia de filiação. Em tese, qualquer um pode se juntar ao "bloco preto".

    A tática –uma vez que não estamos falando de um grupo, e sim de uma estratégia– surgiu na Alemanha Ocidental, nos anos 1980, no seio de um movimento derivado do marxismo, do ambientalismo e do anarquismo chamado Autonomen, ou "autonomista".

    Esse movimento praticava uma política horizontal, sem lideranças ou representantes, muito próxima da cultura punk e baseada na ideia de que a autonomia individual e a coletiva eram igualmente importantes. Criavam acampamentos ou ocupavam edifícios, que transformavam em casa e local de atividades políticas, os "squats".

    Nesses grupos, a estratégia de protesto black bloc surgiu aliada a protestos contra energia nuclear, a ações antinazistas e antifascistas e à defesa de suas ocupações da reintegração de posse pretendida pelas forças policiais.

    Eles se vestiam todos de preto, com capacetes ou gorros e bandanas negras amarradas como máscaras, de forma a diluírem suas identidades numa massa uniforme que enfrentava a polícia.

    A tática "é algo fluido", define Solano. Tão fluido, que, de acordo com o estudo "Black Bloc" (Veneta, 2014), do cientista político Francis Dupuis-Déri, "chegou a haver uma ação jurídica contra a organização criminosa" chamada de "o Black Bloc", na Alemanha, nos anos 1980, mas a procuradoria perdeu a causa e foi admitido que essa organização não existia.

    No livro, o professor da Universidade de Québec em Montréal conta ainda que, em 1981, um panfleto intitulado "Schwarzer Block" (bloco preto, em alemão) descrevia que "não existem programas, estatutos ou membros do Black Bloc. Existem, porém, ideias e utopias políticas, que determinam nossas vidas e nossa resistência. Essa resistência tem muitos nomes, um deles é Black Bloc".

    POPULAR

    Para Pablo Ortellado, professor de políticas públicas da USP, "em 2013, quando black bloc se tornou algo popular, era possível encontrar todo tipo de gente envolvida: funcionários públicos, bancários e universitários". De acordo com o pesquisador, os jovens que aderiram à tática depois da onda de protestos de 2013 seriam mais novos, menos politizados e majoritariamente oriundos da classe média baixa.

    Trata-se de uma diferença significativa em relação aos black blocs europeus e americanos que, segundo o canadense AK Thompson, autor de "Black Bloc, White Riot" (algo como "bloco preto, revolta branca", publicado pela AK Press em 2010, sem tradução no Brasil), são majoritariamente de classe média –e, como sugere o título do livro, quase todos brancos.

    Na América do Norte, a estratégia foi introduzida no âmbito dos movimentos antiglobalização.

    Em Seattle, nos anos 1990, anarquistas e ambientalistas radicais valiam-se de uma atitude que pode ser definida como espetacular: acorrentavam-se a caminhões para denunciar a derrubada de árvores, e eram repelidos por spray de pimenta, cassetetes e prisões.

    Essa atitude, recorda Ortellado, descende de uma linhagem que se desenvolvia desde os anos 1960 entre os movimentos sociais norte-americanos. Seu paradigma de protesto era o consagrado por Martin Luther King (1929-68) e pelos grupos que lutaram pelos direitos civis dos negros: o da desobediência civil não violenta.

    Sua estratégia era a de atrair a opinião pública para a causa por meio do choque –decorrente não do que faziam, exatamente, mas da forma como eram reprimidos. Num ato clássico, os ativistas iriam a um local público, digamos um restaurante, vedado a negros, sendo violentamente retirados dali pela polícia. As imagens veiculadas pela mídia angariavam a atenção para a questão, gerando pressão para mudanças nas leis.

    Os ativistas contra a globalização, porém, compreenderiam que esse tipo de ação havia perdido sua eficácia –no decorrer do tempo, a violência policial contra manifestantes pacíficos havia se naturalizado aos olhos do público.

    "Ativistas adeptos dos protestos não violentos desenvolveram então a tática de destruir a propriedade privada de grandes empresas, o que capturaria a cobertura da imprensa", explica Ortellado.

    Segundo o professor, o objetivo das ações não era causar dano econômico grave, mas "promover um espetáculo, quase na chave estética da performance". Essas ações seguiriam sempre determinadas regras, como não atacar pessoas nem pequenos comércios.

    Na opinião de Francis Dupuis-Déri, "o que tornou os black blocs tão populares foi justamente o espetáculo de suas ações".

    A estratégia de destruir a propriedade privada integra o repertório de movimentos sociais em várias partes do Ocidente. Foi essa vertente já popularizada da tática black bloc a que aportou no Brasil em 2001, durante protestos antiglobalização ocorridos em São Paulo. À época, os manifestantes eram frequentemente identificados sob o rótulo de "punks" pelos veículos de imprensa.

    Antes de retornar ao Brasil em 2013, a tática foi amplamente empregada em 2008, durante os movimentos europeus antiausteridade, em especial na Grécia e na Espanha, além de ter marcado os chamados movimentos contrários a cortes na educação do Reino Unido em 2012. Black blocs estiveram presentes também em protestos na praça Tahrir, no Cairo, em 2013.

    POLÍCIA

    Esther Solano relata que, em suas falas, os mascarados brasileiros destacam a origem pobre como fator de engajamento. "Desafiar a polícia é o principal motor desses jovens de hoje porque a relação com a corporação é muito tensa", avalia.

    Para o coronel reformado da PM José Vicente da Silva, consultor em segurança pública, "a polícia personifica uma série de asperezas que esses jovens enfrentam na vida, por isso se torna uma espécie de Judas para eles".

    Solano, no entanto, argumenta que a motivação que os black blocs locais têm para o enfrentamento com a polícia vai além do simbólico. "Esses jovens dizem que o poder público pouco se importa se eles são esculachados ou mortos pela polícia nas periferias, mas que a resposta é imediata quando se vestem de preto e fazem ações contra lojas e bancos."

    Dupuis-Déri destaca que, em qualquer lugar do mundo, na ação desses jovens, "o alvo é a mensagem". "Dizem ser violência aleatória, sem ideologia política ou social. Dizem que são apenas encrenqueiros e que representam um problema para os movimentos legítimos. Mas é fato que, quando se observa seus alvos, são quase sempre significativos."

    Para ele, é por isso que, no caso brasileiro, o aumento da tarifa de transporte público tornou alvos ônibus, estações de metrô, e a violência policial cotidiana promoveu confrontos abertos com as tropas.

    "É claro que é possível condenar o que eles fazem como crime ou vandalismo. Mas é preciso ter em mente que quebrar vidraças, revirar lixeiras e enfrentar a polícia, tendo em vista a história da humanidade, não é algo tão violento assim", avalia o pesquisador. "Em 30 anos, os black blocs nunca mataram ninguém."

    Em 2014, no entanto, o cinegrafista da Band Santiago Andrade foi atingido por um rojão no Rio e morreu. O acidente foi creditado a adeptos da tática. À época, o grupo Black Bloc Rio em sua página no Facebook lamentou a morte do cinegrafista e apontou falta de investigação em "outras mortes" provocadas pelas ações policiais.

    Em desacordo com as diretrizes já mencionadas, que pregam que a depredação se limite à propriedade privada de grandes corporações, sem ameaça à integridade física de pessoas, em São Paulo e no Rio houve casos de policiais espancados por jovens mascarados nos protestos de 2013 e 2014. Além disso, pequenos comércios, bancas de jornal e até orelhões foram depredados.

    VIOLÊNCIA

    Apesar dos episódios, Esther Solano diz que a violência promovida pela tática black bloc é "mínima em termos quantitativos e qualitativos". "No entanto, eles são frequentemente apontados como criminosos que ameaçam o país, e a ação da polícia é desproporcional", critica ela, que vê nas detenções e nos ferimentos decorrentes de confrontos com a polícia fatores de desmobilização daquele grupo de 2013.

    Segundo José Vicente da Silva, a polícia está menos preocupada com uma vitrine quebrada do que com a desordem que pode derivar de um ataque semelhante. O coronel reformado da PM defende que "é preciso presença policial para a coisa não desandar, envolver a população e fugir do controle".

    Dupuis-Déri explica que a tática é criminalizada em boa parte do mundo e que os black blocs "são uma obsessão nos Estados Unidos, Canadá e França", onde frequentemente são tratados como uma organização terrorista.

    A questão se torna ainda mais sensível no Brasil se observada à luz da proposta de lei nacional que pretende definir terrorismo como atos contra pessoa, "mediante violência", com o objetivo de "criar pânico generalizado". O crime seria passível de pena de até 24 anos de prisão em regime fechado.

    O canadense recorda, em contraponto, que "a história dos movimentos sociais mostra que, em piquetes, em greves ou em lutas por direitos civis, como a das sufragistas, há algum tipo de violência ou sabotagem envolvida".

    Na opinião de Silvia Viana, professora de sociologia da Fundação Getúlio Vargas, o ponto nevrálgico da discussão sobre a ação dos black blocs é o que classificamos como violência.

    "A quebra de vidraças é sistematicamente tratada como violência, enquanto a violação sistemática de corpos pela polícia é apenas ocasionalmente tratada como tal –por exemplo, quando, um jornalista é atingido, ou quando não há como negar que aquele corpo é de um 'trabalhador'."

    FERNANDA MENA, 38, é repórter especial da Folha.

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