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    Leia três entrevistas com Umberto Eco já publicadas pela Folha

    DE SÃO PAULO

    20/02/2016 16h54

    Morto na sexta (19), Umberto Eco foi um intelectual de destaque. Filósofo e semiólogo, se dedicou a diversas frentes do conhecimento.

    Em março de 1991, a capa da "Ilustrada" trazia entrevista exclusiva com o escritor realizada pelo hoje editor da "Ilustríssima", Marcos Augusto Gonçalves, e que você pode ler em nosso acervo.

    Em maio de 1995, o caderno "Mais!" da Folha publicou entrevista de Umberto Eco feita pelo colunista da "Ilustrada" Contardo Calligaris em Nova York. Em 2012, quando o escritor completava 80 anos, a editora-adjunta da "Ilustríssima", Francesca Angiolillo, visitou Eco em sua casa em Milão e escreveu um perfil do intelectual que você pode ler aqui.

    Leia abaixo o texto de Contardo Calligaris, intitulado Eco-Logia. (foi mantida a grafia da época, antes da reforma ortográfica)

    *

    O telefone de Umberto Eco em Milão é de fácil acesso. E, de manhã, uma secretária eletrônica atende. Mas é uma armadilha: ele não escuta os recados. A gravação é proposta só para tranquilizar quem liga e, desta forma, convencido de ter deixado o seu recado, ele não ligar mais.

    O fax, ao contrário, funciona, mas com um detalhe: qualquer um acima de duas páginas é destruído por razões ecológicas. Mesmo assim, não foi difícil aproximar de Umberto Eco. Marshall Blonsky –companheiro de Eco de velha data e um dos pioneiros da semiótica nos EUA, no começo dos anos 50– permitiu o contato; a simpatia de Eco pelo Brasil (lembre-se a parte de "O Pêndulo de Foucault" que acontece no Rio e na Bahia) fez o resto.

    Depois da entrevista –feita no final de abril, no dia seguinte à palestra que fez na Columbia University, nos EUA– acompanhei Eco até seu "pied-à-terre" nova-iorquino, onde mora seu filho Stefano, na 12th Street. Num dia de sol, atravessando Union Square, a entrevista terminada, a conversa foi para onde devia: a paixão bibliofílica, os melhores lugares para caçar livros em Nova York, as pérolas de sua biblioteca.

    É esta a lembrança de Eco com a qual fico: no meio de Manhattan, um "organizer" eletrônico no bolso, bem no seu tempo, o ouvido e o olhar atento ao variado desfile da vida, um bibliófilo leitor, apaixonado pelos saberes que fazem nossa história e o que somos.

    Folha - Seu último romance, "A Ilha do Dia Anterior, esteve em fevereiro e março em primeiro lugar na lista dos best sellers no Brasil, segundo pesquisa da Folha*, e em abril na sétima posição. É um evento, pois esta lista costuma compreender livros que se situam entre a auto-ajuda e o ocultismo.
    Quem sabe sua palestra de ontem ajude a mudar as coisas: o sr. dizia que um dos traços do fascismo eterno é o sincretismo, encontrar Santo Agostinho na mesma estante com Stonehenge. Além disso, a questão do sincretismo no Brasil é delicada...*

    Umberto Eco - Um esclarecimento. Cada forma de fascismo é sincretista, mas isso não significa que cada forma de sincretismo seja fascista. Como você sabe, em "O Pêndulo de Foucault há um episódio brasileiro, onde descobri que sou um filho de Oxalá. Mas, por mais que tenha simpatia pelas religiões afro-brasileiras, trata-se de sincretismo, ou seja, da mesma coisa da qual eu falava ontem.

    Nossa cultura e a educação em nossa cultura são fundadas na capacidade de se fazer distinções. Esta coisa é diferente daquela. Em certas situações, pode-se decidir que as duas coincidem ou se equivalem, por exemplo, ao fazer uma metáfora. Mas, fundamentalmente, trata-se de saber dizer que isto não é aquilo.

    Nós marcamos um encontro às 10h e, de fato, nos encontramos às 10h porque compartilhamos esta imperfeita subdivisão do tempo dada pelos relógios. Sabemos que o tempo é um fenômeno mais complicado do que isso, mas, se não partimos do tempo dos relógios, não podemos interagir.

    O ocultismo pode pensar que o tempo seja um mistério que vai muito além dos cronômetros. Por que não? Talvez tenha até razão. O problema não é o ocultismo, mas o sincretismo, que confunde os dois tempos: acaba-se tão convencido que o tempo é mais do que isso, que se joga fora o relógio.

    Folha - Então nos encontraríamos com certeza quando a distância, conjunções astrais e telepáticas nos reunisse. Quem sabe estas observações encorajem a organizar melhor a estante dos best sellers. Mas, considerando a trilogia de seus romances até agora, "O Nome da Rosa -romance medieval- concerne à procura de um pedaço faltante da tradição e os outros dois são romances modernos: ``A Ilha do Dia Anterior" acontece no século 17 e "O Pêndulo de Foucault é contemporâneo...

    Eco -...contemporâneo, mas histórico, de uma certa forma.

    *Folha - Certo, mas ambos pertencem ao mundo moderno. Nestes últimos dois, então, o pedaço faltante não é um fragmento da tradição. É um ponto fixo que precisa ser procurado ou mesmo construído: quer seja a verdade sobre o tempo e o espaço (em "A Ilha do Dia Anterior), quer seja a verdade sobre a significação (em "O Pêndulo).
    A tradição não é mais, para nós modernos -como ainda podia ser na Idade Média-, a referência suficiente para viver. Como o sr. observava a propósito do tempo, hoje interagimos por convenção, não por referência comum à tradição. Por consequência, procuramos "pontos fixos tanto mais dramaticamente quanto eles são incertos, bem mais arbitrários, de certa forma, do que um ditado tradicional.*

    Eco - Minha atitude frente à tradição é a seguinte: estudei muito Aristóteles e a Idade Média e fui sempre fascinado pela história da filosofia. Nunca fui contra a tradição. Sou contra o tradicionalismo, que é algo diferente. Posso estudar e respeitar a religião muçulmana, sem ser um fundamentalista muçulmano. O tradicionalismo é um fundamentalismo da tradição, onde a tradição deve ser aceita como um todo, sem fazer distinções, sem discutir.

    E há uma maneira de propriamente respeitar a tradição, embora fazendo distinções. Por exemplo, minha tese de doutorado, meu primeiro livro sobre a estética de Tomás de Aquino, era certamente um ato de amor pela maneira medieval de ver a beleza e a arte, mas sem deixar de fazer distinções.

    Por exemplo: não acreditem que Aquino disse coisas parecidas com o pensamento contemporâneo, também não pensem que Aquino dizia a mesma coisa que Alberto Magno -eles diziam coisas diferentes. Esta é uma relação respeitosa com a tradição, sem sugá-la para beber seu sangue. A tradição pode ser respeitada sem cair no tradicionalismo, que é um fundamentalismo.

    Meus romances têm algo em comum, à parte o fato de que foram escritos pela mesma pessoa, o que já é muito. Eles são os três "Bildungsroman, romances de formação, como em Goethe, em Thomas Mann.

    Fui um educador toda a minha vida. Ainda me fascina o processo de educação, o jovem que descobre algo na sua relação com um mestre. Provavelmente, se escrever um outro romance, ele será um outro "Bildungsroman, porque, parece, sou incapaz de pensar narrativamente de uma outra maneira. Se é que há outra maneira. Pois, talvez cada romance seja de fato um "Bildungsroman, a história de uma formação. Mesmo o "Chapeuzinho Vermelho é um "Bildungsroman: no fim a menina entende mais sobre a vida, os passeios nos bosques, os lobos e as avós.

    O romance pode sublinhar mais tal ou tal aspecto da "Bildung, pode insistir sobre a "Bildung sexual ou outra. Eu, evidentemente, concentro-me sempre na "Bildung intelectual.

    Folha - Isto é, acredito, uma resposta indireta à minha pergunta. Pois a própria idéia da vida como "Bildung, como formação, é uma idéia moderna, bem distinta da idéia da vida como iniciação em uma tradição. Mas gostaria de falar agora sobre o atentado de Oklahoma, ocorrido no dia 19 de abril. Como o sr. sabe, nestes dias, os Estados Unidos estão em luto...

    Eco - Organizei minha fala de ontem na Columbia University também pensando nisso. O público deve ter entendido.

    Folha - A primeira reação da opinião foi pensar que o inimigo fosse islâmico, ou seja, o fundamentalista, o tradicionalista como inimigo da democracia. Desta vez o inimigo é interno.

    Eco - Mas este inimigo interno é uma forma americana de tradicionalismo, com tudo o que precisa: uma teoria do complô, etc.

    *Folha - É bem possível, mas é um tradicionalismo paradoxal, ou, pelo menos, que produz um paradoxo. Se as suspeitas se mantêm -e já são, ao que parece, mais que suspeitas- os acusados, simpatizantes das milícias, inimigos do governo central, representam de uma certa forma o espírito do individualismo ocidental e americano. Na milícia do Michigan há sem dúvida uma série de elementos do que o sr. chamava ontem de "ur-fascismo.
    Mas, ao mesmo tempo, a milícia levanta e torna agudo um debate que, não só nos EUA, espreita as democracias contemporâneas: mais ou menos governo? É a contradição da democracia desde Rousseau até hoje: feita para responder aos anseios do indivíduo, por ser governo, ela limita necessariamente a liberdade individual. Não é por acaso, aliás, que a contradição toma sua forma violenta logo aqui nos EUA, na ponta do individualismo da cultura ocidental contemporânea.*

    Eco - Pensava justamente em Rousseau quando ele dizia que, se a "pólis não é pequena, não pode haver uma democracia por assembléia popular. Se a "pólis é pequena, os cidadãos vão para a praça e todos sabem do que estão falando. Quando o corpo social é maior, não há possibilidade de verificar diretamente a opinião dos cidadãos, é preciso recorrer a um sistema representativo.

    Isso, por si só, não seria um problema de tão difícil solução. Mais grave é a dificuldade, para os cidadãos, de chegar a uma vontade e, sobretudo, a uma idéia comum do bem. Pense no nascimento dos grandes Estados nacionais europeus. Foram e só podiam ser, no começo, Estados absolutos. Os cidadãos do Languedoc mal podiam saber qual era o bem para a ×le de France, ainda menos imaginar um bem comum a eles e à ×le de France. Nesta época, aliás, nem compartilhavam uma língua comum.

    Então, a primeira solução foi o absolutismo. Logo, as democracias parlamentares, por um lado, tentaram testar a opinião dos cidadãos pelas eleições representativas. Por outro lado, tentaram fazer com que os cidadãos fossem mais e melhor informados sobre o bem comum: inventaram jornais e gazetas. Mas é um equilíbrio difícil.

    Você tem aqui, nos EUA, por exemplo, um estado multirracial, multicultural, e uma enorme quantidade de informação, mas, por isso mesmo, difícil de ser filtrada, selecionada. Sempre digo que não há diferença substancial entre o "The New York Times de domingo e o "Pravda.

    O antigo "Pravda não carregava nenhuma informação. O "The New York Times de domingo carrega todo tipo de informação, mas é de tal tamanho que uma semana não é suficiente para lê-lo inteiramente. Entre nenhuma informação e informação demais, o risco é ficar não informado. Ou de selecionar as informações ao acaso -o que dá no mesmo.

    O problema da democracia, então, é que os cidadãos não conseguem mais compartilhar uma noção do bem comum. Qual é o possível bem comum entre o dono de loja paquistanês aqui na esquina e os pequenos burgueses do Michigan? Os pequenos burgueses do Michigan não são absolutamente antigovernamentais, eles são contra o governo cada vez que uma decisão dele contrasta com seus interesses particulares e eles não conseguem compreender como esta decisão poderia servir a algum bem comum. É difícil o percurso racional para entender que um hospital para porto-riquenhos pode ser uma vantagem também para eles.

    Assim, vivemos em um período no qual a própria noção de democracia talvez arrisque ser profundamente transformada. E não sabemos de que jeito. Talvez nossa concepção de democracia fosse possível desde o século 17 até ontem, e hoje esteja em crise.

    *Folha - Estaríamos, então, na necessidade de dar consistência a uma opinião pública, em dois sentidos: permitir que ela se manifeste como fonte de autoridade -medida quantitativamente - e permitir que se constitua, por ela, um bem comum necessário.
    Há uma certa contradição entre estas duas tarefas, a não ser que a gente acredite nos poderes ilimitados do diálogo. No mínimo, pode-se constatar que o pretenso debate entre quantidades diferentes na opinião pública está sempre exposto ao que o sr. chamava ontem de "populismo qualitativo.*

    Eco - É a retórica ou técnica do "exemplum. Toma-se um caso singular e se sugere que representa a generalidade. Usa-se o exemplo como indicador e, imediatamente, ele se torna representativo da opinião geral. É um erro do melhor jornalismo.

    Nós nos queixamos, na Itália, do fato de que nossos jornais encorajam exageradamente a dar a opinião do jornalista mais do que a opinião das pessoas. Ao contrário, o artigo ``standard" em um jornal americano prefere apresentar opiniões divergentes: "Sobre esta questão não concordo, nos confiou Fulano; mas "Oh, não, eu concordo, disse Sicrano. A impressão assim produzida é de oferecer ao leitor uma visão balanceada de duas diferentes opiniões.

    Isto é correto, mas frequentemente não é verdadeiro, pois imagine que Fulano represente 80% dos cidadãos e Sicrano 20%. O fato de propor as duas opiniões como duas citações objetivas não dá nenhuma imagem da situação real. Uma vez mais é a técnica do "exemplum".

    Apesar deste inconveniente, aceitamos mais ou menos esta técnica nos jornais, pois sabemos -é uma espécie de convenção- que os jornalistas nos dão um espectro aproximativo das posições existentes. Sabemos também que o jornalista não fez nem pretendeu fazer uma verdadeira sondagem, nos contentamos com ele mostrar pelo menos algumas opiniões sobre o tema. Na televisão a força do exemplo é muito maior. Quando você vê alguém dizer de cara: "É assim, fica difícil não pegar isso como expressão de verdade e opinião públicas.

    Folha - A imagem tem um poder diferente...

    Eco - Talvez tenhamos elaborado com o tempo uma atitude mais crítica em relação à coisa escrita. Ou, então, as pessoas que lêem a imprensa são uma minoria cultural, mais crítica do que as pessoas que vêem televisão. Mas há, em ambos os casos, uma passagem contínua entre tipos e casos (exemplos): a televisão nos apresenta continuamente casos como se fossem tipos. Nos mostra um cavalo como se fosse "o cavalo.

    Folha - O problema é que "o cavalo" não existe.

    Eco - Existe, em um certo sentido, na cabeça de cada um, sem ser uma idéia platônica; por exemplo, Karl Popper diria que existe no que ele chama de terceiro mundo (epistemológico). É por isso que sabemos reconhecer dois cavalos como sendo cavalos, embora de cores e raças diferentes.

    Folha - Sim, certo, mas não dá para apresentá-lo.

    Eco - Certo, não se pode apresentá-lo. Mas, com o "exemplum, é esta a impressão que é dada. A etimologia de idéia, aliás, é algo que está sendo visto. É a idéia da mitologia grega: te mostro a imagem de deus. O fato de que fosse meu amiguinho, com quem trepo todos os dias, não importa; no momento, eu, Policleto, esculpo a idéia.

    Folha - Mas como poderia ser diferente? A opinião pública é uma suposição que necessariamente todos invocam e nada e ninguém encarna. Ela é também um campo de conflito, de debate, onde cada um, para prevalecer, se atribuirá inevitavelmente a qualidade de representante da opinião geral.

    Eco - A única solução é tomar a opinião quantitativamente. Uma maioria de piemonteses decidiram votar no Polo (coalisão de forças políticas que elegeu Silvio Berlusconi, na Itália). Não é o ideal, mas, pelo menos quantitativamente, você pode contá-los.

    Quem invoca a maioria diz: esta é a vontade geral. Contanto, sabemos que se trata só de 50% dos piemonteses mais um. Ora, nenhuma quantidade tem o poder de uma qualidade comum, de uma vontade comum. O recurso à qualidade é sempre perigoso. A quantidade é sem retórica, é uma matemática.

    A matemática da quantidade diz que a maioria dos italianos quis, há um ano atrás, que Berlusconi fosse eleito. Respeitar o direito da maioria não significa pensar que a maioria escolheu direito. Eu acho que escolheu mal. Parece que, nos EUA, a maioria é favorável à pena de morte, embora saibamos que eles estão errados. De qualquer forma, com o sistema democrático (que, como dizia Churchill, é muito imperfeito, mas não temos nada melhor), reconhecemos o direito de uma maioria com a qual não concordamos, sem nos iludirmos que estejamos assim obedecendo a uma mítica ``vontade geral".

    Além disso, é sempre possível pegar a calculadora e refazer a conta. Dobrar-se à vontade de uma maioria quantitativa é aparentemente o único jeito de encontrar um acordo, sem que seja preciso impor ou fingir uma vontade de todos.

    Folha - Mas, ao mesmo tempo, esta possibilidade de apresentar um exemplo com força qualitativa é também o caminho pelo qual a opinião pública pode vir a mudar. Pois a opinião é um teatro, onde cada um pode eventualmente se bater, tentar fazer prevalecer suas idéias. Se se vai à televisão, ou mesmo à imprensa, e declara o que o sr. acaba de declarar, isto também é um "exemplum.

    Eco - Ok, certo, podemos dizer que, de fato, não há nada de novo. Mesmo nas democracias antigas havia a retórica, que era a arte de convencer, de produzir opinião pública. A democracia é a ditadura da maioria e o uso da retórica para transformar a opinião pública.

    Hoje, nossa retórica é diferente. A retórica da televisão é provavelmente mais perniciosa que a retórica falada, a causa da facilidade, como disse, de transformação de casos em tipos, e também pela quantidade de pessoas que podem ser convencidas. Por isso mesmo, por esta novidade retórica que altera o debate na opinião pública, pode estar acontecendo que o sistema democrático inteiro entre em colapso. Por outro lado, quando, por exemplo, vota menos da metade da população, e para candidatos que foram previamente escolhidos por grupos de poder, que democracia é esta? É uma ficção, já do ponto de vista quantitativo.

    Folha - Sim, mas o que salva a democracia neste caso é que, no final das contas, de qualquer forma, o candidato eleito não pode fazer tudo o que quer. Justamente, não só os grupos de poder, mas a própria opinião pública, por incertas que sejam suas manifestações, ainda controla o exercício do poder.

    Eco - Sim, a fonte da autoridade não é mais tão democrática, mas o "output" é democrático.

    Folha - Voltando e confirmando o que o sr. dizia antes, mesmo em uma sociedade individualista não poderia haver democracia sem alguma forma de comunidade, alguma noção do bem.

    Eco -Em uma grande democracia, como os EUA, a Rússia hoje, ou mesmo a Europa amanhã, torna-se difícil encontrar um bem comum. Há uma confederação de bens comuns. Alguns são reconhecidos por todos, mas não está dito que sejam bens comuns. O tamanho e a complexidade do sistema nos torna incapazes de avaliar o bem comum.

    A preservação da Amazônia parece poder ser um bem comum, mas para alguns -aqueles, aliás, que estão justamente mais perto da floresta- é difícil entender a necessidade de preservar o ambiente. Dirão que há árvores suficientes para continuar cortando ainda durante 10 mil anos, ou então dirão que não se importam, que querem seu bem agora. Não se importam com as pessoas do próximo milênio. É difícil elaborar a idéia de um bem comum.

    Folha - E, ao mesmo tempo, a retórica das mídias criaria, a seu ver, falsas convergências. Pessoalmente, não sou tão pessimista quanto aos efeitos desta retórica. Me preocupa mais o recurso à tradição como possível terreno atávico comunitário.

    Eco - Este é um dos recursos fascistas. Outro é a teoria do complô. Encontra-se um bem comum facilmente, por exemplo, quando se isola um inimigo comum.

    Folha - Recentemente, o sr. disse ao jornalista francês Roger Pol Droit -e eu me manifestei por escrito contra esta idéia-, que o corpo podia servir de fundamento de valores universais. Não é um pouco triste e de qualquer forma problemático que deleguemos à fisiologia a tarefa de fundar nossos valores?

    Eco - Mas o corpo concerne também à alma das pessoas.

    Folha - A liberdade de palavra não é a mesma coisa que a possibilidade fisiológica de fonação.

    Eco - Tomo o corpo como ponto de referência.

    Folha - Sim, mas os valores de nossa cultura não são derivados da fisiologia, não derivam do corpo enquanto tal.

    Eco - Se não tenho a língua, não posso falar. Então, não devem me cortar a língua.

    Folha - Está bem.

    Eco - Do mesmo jeito, não devem me cortar a mão etc. Uma vez que me deixaram tudo isso, devem me deixar usá-lo, na medida em que se chegue a um acordo. Porque não devem me impedir de cagar, mas se eu venho cagar em sua casa, não está certo. Então, fazemos um acordo, eu não cago em sua casa, você não caga em minha casa e nenhum de nós caga no meio da rua. Também sobre o uso da língua. Eu não devo ir contando por aí que sua irmã é uma puta e reciprocamente.

    Folha - E também não podemos dizer os dois, de uma mulher que passa pela rua, que é uma puta.

    Eco - Um acordo procurando garantir aos dois e a todos o máximo uso possível da língua.

    Folha - Isto é o legado básico da filosofia contratualista ocidental moderna. Minha crítica não é com estes valores. Só não acredito que sejamos capazes de derivá-los e justificá-los por algo real, como o corpo. O direito não é natural, e não é mais divino. Portanto, é necessariamente contratual; e não se tem como deduzir da fisiologia do corpo uma universalidade do direito.

    Eco - Eu sempre fui contra a idéia dos universais semânticos. Embora, ultimamente, comece a acreditar que existam universais semânticos, com referência ao corpo no espaço.

    Folha - O sr. nunca foi chomskiano.

    Eco - Não. Mas não sei se há um desacordo. Minha posição é: começamos pelo corpo. Posso demonstrar que, começando pelo corpo, chegaremos às mais altas expressões da espiritualidade, como a liberdade de palavra. A referência ao corpo é importante porque nenhuma ditadura pode paralisar nossa possibilidade de pensar, mas eles podem impedir nossa possibilidade de expressar este pensamento com a língua. O controle físico afeta os valores espirituais.

    *Folha - Sem dúvida, o controle sobre o corpo afeta os valores morais. Mas minha questão é outra. A procura de um ponto fixo ético é certamente um dos problemas centrais da modernidade. Digo da modernidade porque, antes disso, a tradição se encarregava de resolver esta questão. Para o homem pré-moderno, o fundamento ético é geralmente divino. Nós, modernos, não sabemos mais de onde vêm os valores.
    Uma das tentações de nosso século é procurar fundá-los no mundo físico e, por exemplo -é a resposta que você sugere-, no corpo como universal. Meu sentimento é que não há como passar da fisiologia à ética. A fisiologia -assim como a biologia, por exemplo- certamente introduz um número de questões éticas, mas não por isso é possível deduzir princípios éticos a partir do corpo.*

    Eco - Nenhuma ditadura pode controlar meu coração. A tradição judaico-cristã tentou controlar isso também, com o nono mandamento -que é bem diferente do sexto ("não cometer atos impuros) e diz: "Não desejar a mulher do outro.

    Há a piada do homem que vai se confessar e conta ao padre: "Devo lhe dizer que ainda faço amor com minha mulher, agora ela passou dos 60 e eu também não sou mais um garoto... Sabe como é, nos momentos decisivos, sonho sempre com Marilyn Monroe. E o padre lhe responde: "Viu como ajuda?

    O sonho interno, a fantasia, são permitidos porque não podem ser coibidos. Ao contrário, se amo Maria, deve ser um direito universal poder casar com ela; isso é universal e depende do corpo. Naturalmente, meu direito pode ser controlado por uma espécie de contrato, por exemplo, de fidelidade mútua entre Maria e eu.

    Mas não pode ser controlado o fato que, durante a noite com Maria, eu comece a sonhar com Jane. Assim, não tem sentido dizer que tenho o direito universal de sonhar com Jane, o que importa é que meu corpo seja livre para casar com Maria, se ela consente e quer. O que também não pode ser feito é pegar sua mulher e vendê-la no mercado de escravos de Damasco.

    Folha - Resta que poderia haver culturas onde é autorizado vender Maria no mercado de Damasco ou em outro. Não por isso eu concordaria, só quero dizer que os direitos em questão não são "deduzidos do corpo. Eles são, isso sim, direitos de liberdade física, do corpo, mas necessariamente inspirados culturalmente, são os direitos de nossa cultura. Eles não são biologicamente deduzidos.

    Eco - Esta história, de qualquer forma, é um mal menor, como a democracia. Não pretendo que todos os valores possam ser deduzidos do corpo. Há muitos outros que não podem, mas, para chegar a um acordo entre eu e um esquimó ou um argelino, provavelmente, se começarmos por nosso direito de usar o corpo, encontraremos alguns valores universais. "Não cometer estupro", porque seria usar o corpo do outro sem sua permissão. "Não mentir já não é universal; por exemplo, para escrever um romance, você deve mentir, é encorajado a mentir. Então, a sinceridade não é um valor universal. Você pode ser também encorajado a mentir a um paciente terminal de câncer. Não cometer atos impuros, uma vez que você definiu os atos impuros, pode ser um valor universal. Não desejar a mulher dos outros não é um valor universal.

    Folha - Como dizíamos, isso é algo que o sujeito mesmo não pode controlar.

    Eco - Além do mais, ele pode ser elogiado por desejar a mulher do outro. Se você for um poeta, Petrarca por exemplo, será elogiado porque desejou a mulher do outro. Ah, que bonito, congratulações -à condição que não tenha cometido atos impuros com ela.

    Folha - Há muito tempo atrás, em 1974, nós nos encontramos em um congresso de semiótica, em Milão.

    Eco - Tinha seu nome na cabeça, mas não a sua cara. Mas as nossas duas caras mudaram sem dúvida bastante.

    *Folha - Nesta época, e ainda mais nos anos seguintes, quando o sr. publicou o "Tratado Geral de Semiótica, para a parte do grupo francês do qual eu me aproximava (frequentava Roland Barthes e o grupo Tel Quel), o seu nome era associado a uma semiótica ``linha dura", que na verdade não gostávamos.
    A semiótica constituída no fim dos anos 70, reconhecida como disciplina, que acabou entrando nas melhores universidades, o que é ela hoje para o sr.? Pergunto isso, considerando que se fala bastante do fim do estruturalismo, da volta da hermenêutica, da narrativa, de um retorno à problemática do sujeito.*

    Eco -... a desconstrução, a nova pragmática...

    Folha - Há um clima de fim de ciclo: o estruturalismo foi uma bela aventura, mas não resolveu as múltiplas questões da subjetividade. No meio de tudo isso, Umberto Eco passa a escrever romances. Não deve ser por acaso. O que é, o que sobra da semiótica como disciplina hoje?

    Eco - Primeiro, na época pensávamos que a semiótica pudesse ser ou vir a ser uma ciência.

    Folha - Engraçado, na época pensava-se a mesma coisa da psicanálise.

    Eco - Minha opinião, hoje, é que a semiótica não é uma ciência. É um departamento, o nome de um departamento. Como a medicina. A medicina não é uma ciência, é um departamento onde há biologistas, geneticistas, cirurgiões etc.

    Trata-se de aceitar esta variedade de enfoques e de mantê-los juntos, porque todos pertencem, todos participam da mesma "virada linguística, mas sem por isso acreditar que constituam uma mesma ciência.

    Em segundo lugar, há um "trompe l'oeil. Não é suficiente que um francês diga que a semiótica está morta para que a semiótica esteja morta. E acontece frequentemente que as bolsas de cultura são estabelecidas pela declaração inspirada de um "scholar francês.

    Folha - Pensa em alguém em particular?

    Eco - Não, no caso sou genericamente racista. Estou brincando, mas é uma posição justificada em relação a este país que, por outro lado, adoro. Tome o exemplo da lógica medieval. Segundo todos os manuais que estudamos na escola, no fim do século 14 a lógica medieval está acabada, chega o neoplatonismo da Renascença e o panorama mudou. Ora, nos séculos 15 e 16 as escolas de lógica continuaram. E nossos lógicos, hoje, ainda seguem esta tradição que nunca morreu.

    Cada vez que, nesta confederação de interesses que chamo a escola semiótica, alguém encontra algo novo, parece que acaba pensando que os outros caminhos estão, por isso mesmo, abolidos. Se tivesse que reescrever hoje o "Tratado, colocaria em dia a primeira parte, retomaria a segunda tal qual e -mudança principal- acrescentaria uma terceira.

    Elaborei, desde então, uma idéia da estrutura narrativa da representação semântica, pela qual cada tipo de saber é organizado narrativamente. Gostaria também de explicar por que, sobre certos problemas, decidi falar narrativamente e não filosoficamente.

    Folha - Neste caso, imagino que o sr. pense agora, que "a língua -no sentido de Saussure-, é uma ficção, e só existe a palavra... Certamente, junto com a fé no conceito de "língua, vai-se embora também a idéia da semiologia como ciência.

    Eco - Até o átomo é uma ficção, é uma invenção de Niehls Bohr. Não estamos certos que o átomo exista. Quem sabe, descobrindo novas línguas polinésias, descobriremos não sei o quê, que tal outra noção crucial deveria ser corrigida. Agora, o conceito de "língua, todavia, é um bom instrumento para entender as funções básicas de uma língua. Se você tem que analisar a estrutura interna de uma língua, Hjelmslev é ainda um bom instrumento.

    Folha - Mas é um instrumento...

    Eco - Se algo é universal é a necessidade de narrar, uma necessidade biológica. Psicólogos e historiadores já estão mostrando que a narratividade talvez seja a maneira como o próprio mundo mental se constitui.

    Folha - Qual é a extensão deste departamento, a semiótica?

    Eco - Não gostaria de estabelecer suas fronteiras. Considero a semiótica um espaço aberto. O avanço das ciências cognitivas ampliou também o espaço da semiótica. O erro de muitos consiste em identificar o espaço semiótico com uma semiótica particular. Por exemplo, Sperber e Wilson, em seu belíssimo livro sobre inferência, acusam a semiótica de não ter suficientemente levado em conta os processos de inferência. Eles estão pensando só em uma certa semiótica estrutural francesa; mas a semiótica de Peirce (sobre a qual está fundada a minha) é toda baseada no conceito de inferência.

    Folha - Por aberto que seja este espaço, existe no mínimo uma certa tensão entre, por exemplo, de um lado a semiótica de Greimas e do outro o desconstrucionismo....

    Eco - Eis o caso de dois excessos. A semiótica greimasiana (talvez mais aquela dos greimasianos do que aquela de Greimas) é muito sistemática, deixa pouco espaço a outras possibilidades. Na França, aconteceu assim o caso curioso de pessoas como Tzvetan Todorov, que a um dado momento é como se tivesse abandonado a semiótica (ou não é mais considerado um semiótico), quando de fato as coisas belíssimas que ele escreve dependem muito de sua formação semiótica.

    O outro excesso é desconstrucionista. Aqui também a responsabilidade está mais com os derridianos americanos do que com o próprio Jacques Derrida (sempre digo brincando que a "deconstruction" é um produto americano sob licença francesa). O desconstrucionismo convenceu os americanos que a única arte semiótica consiste em fazer dizer aos textos o que sugerem nossos desejos. Perdeu-se o respeito ao texto, ao seu fundo cultural, à sua estrutura. O desconstrucionismo produziu muitos outros excessos, entre os quais os do multiculturalismo.

    Folha - Não é atribuir muito ao desconstrucionismo?

    Eco - Quando se diz que é preciso fazer uma leitura feminista ou africana de Homero e que é ruim um africano entender o mundo de Homero (quero dizer, os códigos culturais da Grécia daqueles tempos), isto não é um bom negócio para o estudante afro-americano.

    Ao contrário, ele é privado, assim, de uma parte da consciência crítica. Nós, ocidentais, estaríamos errados se lêssemos o Alcorão sem tentar entender o código islâmico. Esta atitude não garante forma de liberdade alguma ao jovem africano: ao contrário, é uma maneira de não ajudá-lo a compreender o espírito desta civilização ocidental com a qual ele tem justamente que lidar.

    Folha - A psicanálise provavelmente ambicionaria ser uma disciplina ou um departamento em si. Mas, se não fosse, me parece que encontraria lugar num departamento ideal de semiótica. No Brasil, há grupos bastante significativos de psicanalistas -digamos pós-lacanianos- reformulando a experiência e a teoria psicanalítica pela pragmática e a teoria da narratividade.

    Eco - Isto é muito interessante. O diálogo com a psicanálise de fato aconteceu pouco. Embora eu tivesse uma relação bem amigável com Jacques Lacan. Em 1972 ou 1971, fui escutar em Milão uma palestra de Lacan. Ao fim, coloquei uma pergunta. E alguém lhe murmurou no ouvido: ``É Umberto Eco". Parece que ele queria me encontrar porque sabia que, em "A Estrutura Ausente, meu último livro na época, eu o criticara.

    Lacan, no fim da reunião, veio até mim, me apostrofando: "Meu caro Eco, quero ver você. Ele insistiu para que almoçássemos juntos no dia seguinte. Quando ele voltou a Milão, ofereci um ``party" para ele. Foram encontros deliciosos, mas sem nenhuma troca propriamente científica.

    No congresso de Milão de 1974, Lacan, que ninguém tinha pensado em convidar, veio por sua conta, e para nós foi uma coisa importante, uma forma de reconhecimento em um momento delicado para nossa disciplina.

    Folha - Não é de estranhar. Imagino que o interesse de Lacan nem fosse tanto discutir as críticas que o sr. lhe dirigia. De fato, ele sempre foi circundado por tantas pessoas que o amavam com a cega e estafante fidelidade de cachorros, que devia ser um verdadeiro descanso falar com alguém que não estivesse na mesma.

    Eco - Certamente, por isso só podia estar interessado em uma crítica.

    Folha - Tornou-se uma tradição lhe perguntar algo sobre as mídias modernas e a informática, desde a paixão pelo computador que apareceu em "O Pêndulo de Foucault. Sobre este tema, aliás, sua distinção entre apocalípticos e integrados parece valer ainda. Para evitar as questões clássicas e um pouco insípidas, só uma pergunta: o sr. acha que todo o barulho contemporâneo sobre novas mídias é mais do que uma recente versão da eterna questão sobre as "ameaçadoras e "alienantes transformações produzidas pela técnica?

    Eco - Ninguém pode escrever hoje uma teoria das mídias, porque é como fazer uma teoria da semana que vem. Não dá para escrever uma teoria do futuro, mesmo que você seja futurologista...

    Folha -... dá para vendê-la...

    Eco - Mas não dá para fazê-la. Uma teoria da Internet feita hoje, será ultrapassada daqui a três meses. Só dá para elaborar, considerar criticamente, mas não se pode fazer profecias.
    Em Bolonha, no curso de ciência da comunicação, profiro cada ano uma palestra inicial e, nesta ocasião, digo aos estudantes: não podemos lhes ensinar propriamente nenhuma técnica ou disciplina, pois no fim do curso cada técnica estará ultrapassada. Podemos lhes ensinar só o tipo de atitude kantianamente transcendental para entender, no fim de seus cinco anos, o que então acontecerá.

    Não se pode fazer profecias. Por exemplo, é preciso achar novas técnicas para selecionar a informação. Não há como dizer: amanhã, a informação será assim e assado, porque não sei qual será a resposta -quero dizer, quais serão os atos- das pessoas que vou justamente encorajando a elaborar técnicas para selecionar a informação. Em relação ao futuro, posso identificar uma tendência, mas, sobretudo, trata-se de estabelecer uma prática.

    Posso e devo intervir e, se minha prática tiver sucesso, ela produzirá ou contribuirá para produzir uma nova geração que poderá fazer escolhas, talvez contrárias à tendência que podemos constatar e eventualmente recear.

    Folha - No próximo século, o sr. não acha que poderá ser escrito um romance no estilo de Umberto Eco, uma espécie de "Bildung policial, onde o protagonista procurará seu caminho no labirinto de todas as teorias semióticas deste século, de Saussure a Lacan, via Quine e Ogden-Richards, assim como o sr. usou o ocultismo rosa-cruz ou as teorias seiscentistas do tempo e espaço?

    Eco - É uma boa idéia, vou pensar nisto.

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