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    Thursday, 21-Nov-2024 13:09:43 -03

    Leia trecho de 'Butcher's Crossing', romance de John Williams

    JOHN WILLIAMS
    tradução ALEXANDRE BARBOSA DE SOUZA
    ilustração MARCELO COMPARINI

    06/03/2016 02h09

    SOBRE O TEXTO "Butcher's Crossing", espécie de romance antiwestern do mesmo autor do aclamado "Stoner", sai pela Rádio Londres no fim deste mês.

    *

    Aos poucos, a manada, em seus rodeios, foi-se afastando deles. Os animais se moveram, e os dois homens rastejaram atrás, alguns metros a cada avanço, mantendo a mesma posição em relação ao círculo dos búfalos. Por alguns minutos, fora da grande nuvem de fumaça de pólvora queimada, conseguiram respirar normalmente, mas logo outra bruma se formou e eles tornaram a arfar e tossir.

    Depois de um tempo, Andrews começou a perceber que havia um ritmo naquela matança. Primeiro, com um movimento calculadamente lento de contração dos músculos do braço, equilíbrio da cabeça e um lento aperto da mão, Miller disparava. Então, rapidamente ejetava o cartucho fumegante e recarregava. Analisava o animal atingido e, quando via que estava realmente atingido, seus olhos procuravam em meio à manada circundante um búfalo que parecesse particularmente irrequieto. Após alguns segundos, o animal ferido cambaleava e desabava no chão, e Miller atirava outra vez. A coisa toda pareceu a Andrews uma dança, um estrondoso minueto criado pela vida selvagem à sua volta.

    Marcelo Comparini

    A certa altura durante a matança, várias horas depois de Miller ter abatido o primeiro búfalo, Schneider rastejou por trás deles e chamou pelo nome de Miller. Miller não fez menção de ter ouvido. Schneider tornou a chamar, mais alto dessa vez, e Miller virou um pouco a cabeça, mas continuou sem responder.

    "Já chega", disse Schneider. "Você já matou setenta ou oitenta. É mais que o bastante para o senhor Andrews e eu trabalharmos até a meia-noite."

    "Nada disso", retrucou Miller.

    "Você já matou muito por hoje", insistiu Schneider. "Está bom. Não precisa..."

    A mão de Miller se contraiu, e um tiro soou como estrondo acima das palavras de Schneider.

    "O senhor Andrews aqui não será de muita utilidade, você sabe disso", argumentou Schneider depois de os ecos do disparo haverem passado. "Não adianta continuar atirando se não conseguirmos dar conta de tirar a pele."

    "Vamos esfolar tudo que for baleado, Fred", disse Miller. "Mesmo que eu fique aqui atirando até amanhã."

    "Inferno!", bravejou Schneider. "Eu é que não vou esfolar búfalo duro."

    Miller recarregou o rifle e voltou a posicioná-lo na forquilha. "Se for necessário, eu ajudo a esfolar. Mas, com ou sem ajuda, você vai esfolar todos esses búfalos, Fred. Quente ou frio, mole ou duro. Inchados ou congelados. Nem que você tenha que usar um pé de cabra para soltar a pele. Agora, cale essa boca e vá embora daqui; você vai me fazer errar o tiro."

    "Inferno!", repetiu Schneider. Socou a terra com o punho cerrado. "Está bem", concordou ele, levantando-se até ficar somente agachado. "Fique aí o tempo que quiser. Mas eu não vou..."

    "Fred", chamou Miller baixinho, "quando rastejar para longe daqui, rasteje calado. Se você espantar esses búfalos, eu atiro em você".

    Por um momento, Schneider continuou agachado. Então, balançou a cabeça, ajoelhou-se e rastejou para longe dos dois homens em linha reta, resmungando para si mesmo. A mão de Miller se contraiu, o dedo apertou o gatilho e um tiro explodiu naquela quietude retumbante.

    Só no meio da tarde a matança foi interrompida.

    Marcelo Comparini

    A manada original havia sido reduzida em dois terços ou mais. Por um longo trecho irregular que se estendia por mais um quilômetro além da manada, o chão estava juncado de montes escuros de búfalos mortos.

    Os joelhos de Andrews ralaram de tanto rastejar atrás de Miller, que continuava avançando, metro após metro, lentamente, em direção ao sul, perseguindo a manada, que se movia em círculos. Seus olhos ardiam de tanto piscar na fumaça de pólvora, e seus pulmões doíam de tanto respirá-la; sua cabeça latejava com o estrondo dos tiros e, na palma de uma mão, começavam a se formar bolhas do contato com os canos fumegantes dos rifles. Na última hora, cerrara os dentes para não expressar a dor que seu corpo sentia.

    Mas, enquanto a dor do corpo crescia, sua mente parecia ignorá-la, erguendo-se acima dela, de modo que ele conseguiu enxergar a si mesmo e a Miller com mais clareza do que antes. Na última hora da matança, passara a ver Miller como um mecanismo, um autômato, movido pelos movimentos da manada, e a interpretar sua fúria destrutiva não como desejo de sangue ou cobiça pelas peles ou por aquilo que pudessem trazer, nem mesmo como expressão da raiva que ele trazia no fundo do coração, mas como uma reação fria e desmesurada à vida na qual Miller estava imerso. E ele olhou para si mesmo, rastejando como um tolo atrás de Miller no leito plano do vale, recolhendo os cartuchos vazios que ele gastava, levando o tonel de água, cuidando do rifle, limpando, oferecendo-o a Miller quando ele precisava –ele olhou para si mesmo e não soube mais quem era nem para onde estava indo.

    O rifle de Miller disparou novamente. Uma búfala nova, pouco mais que uma novilha, tombou, tornou a se levantar e correu erraticamente para fora do círculo da manada.

    "Maldita", disse Miller sem emoção. "Na pata. É o que basta."

    Enquanto falava, recarregou e atirou outra vez nessa búfala ferida, mas já era tarde demais. No segundo tiro, a búfala fugiu para junto dos búfalos que rodeavam a manada. Rompido o círculo, a manada inteira parou e ficou assim por um instante. Então, um macho jovem saiu correndo, e a manada correu atrás, a massa de animais em disparada brotou de dentro do próprio círculo, como se fosse água da fonte, até que Miller e Andrews só conseguiam ver o fluxo da linha escura das gibas corcoveando para longe deles pelo leito serpenteante do vale.

    Os dois homens se aprumaram. Andrews alongou seus músculos encurtados e quase gritou de dor ao alongar as costas.

    "Foi só eu pensar", murmurou Miller, não se dirigindo a Andrews, mas à manada que se dispersava. "Foi só eu pensar no que faria se errasse um tiro. E em seguida errei o tiro. Quebrei uma pata. Se eu não tivesse pensado nisso, teria matado a manada inteirinha." Ele se virou para Andrews, seus olhos esgazeados e vazios, as pupilas sem foco e dançando no fundo dos brancos. A pele do rosto estava negra das cinzas de pólvora queimada, e a barba estava grossa, emplastrada do mesmo negror. "A manada inteirinha", repetiu ele. Seus olhos se concentraram em Andrews e ele sorriu brevemente com os cantos da boca.

    "Foi uma grande matança?", perguntou Will Andrews.

    "Nunca tive maior", respondeu Miller. "Vamos contar."

    JOHN WILLIAMS (1922-94) escritor americano, ganhou o National Book Award por "Augustus" (1972)

    ALEXANDRE BARBOSA DE SOUZA, 43, editor, tradutor e poeta, é autor de "Livro Geral" (Companhia das Letras).

    MARCELO COMPARINI, 35, é pintor.

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