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    John Freeman analisa a persistência de velhos mitos do Oeste americano

    JOHN FREEMAN
    tradução CLARA ALLAIN
    ilustração MARCELO COMPARINI

    06/03/2016 02h05

    RESUMO A concepção de que o Oeste dos EUA foi uma terra conquistada por homens bravos que a ela tinham direito divino deixou uma marca indelével na cultura americana. Lançamento no Brasil de "Butcher's Crossing" (leia trecho ), romance que buscou desfazer tais mitos, enseja texto em que escritor analisa a persistência desse ideário.

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    Alguém que cresce no Oeste americano herda um legado de mitos tão sombrio e rarefeito que só pode ser transmitido em meios-tons; em sons entreouvidos, na trama meio esquecida de um filme ruim. Na pose de um publicitário vendendo seu peixe, ou na de um homem quando armado.

    Você poderia pensar que dá para evadir essa herança, até notar que ela está em toda parte e que viver no Oeste é montar o tempo todo, inconscientemente, uma história na cabeça a partir de suas partes. Os mitos sobre o Oeste são tão inevitáveis quanto o tamanho do céu, o calor, a escassez de água. Submetê-los ao escrutínio do real estilhaçaria a nostalgia que neles projetamos e da qual dependem. Então não falamos deles; nós os encenamos e lhes servimos de cenário.

    Marcelo Comparini

    Aprendi tudo isso num rancho ao sul de Sacramento, onde meu tio Karl vivia. Karl não cultivava a terra, apenas era dono dela e de boa parte do que se via em volta. Ele tinha um Cadillac comprido e branco com chifres de vaca sobre o capô e um minúsculo conversível MG verde que engasgava e vazava óleo –atravessar o deserto à toda nesse carrinho era como voar sobre uma plantação num avião pulverizador. Areia e ar quente fustigavam meu rosto, e o motor parecia perigosamente perto.

    Um dos contrastes na volta à sua casa depois de um passeio desses era cruzar o portão e chegar a uma piscina que refletia perfeitamente o azul do céu. Karl tinha a pele cor de couro, fumava charutos e passava muito tempo de calção de banho. Ele era gentil comigo e meus irmãos e sempre nos mandava buscar mais uma cerveja lá dentro. Uma das recordações mais intensas de minha infância é correr da luz branca do deserto à beira da piscina para o interior sombreado da casa fresca, atravessar pela sala onde estavam as armas e o televisor revestido de madeira, no qual algum faroeste passava no mudo, e gelar minha mão com a cerveja tirada da geladeira cheia de carne.

    Assim, muito do que sei sobre o Oeste eu aprendi naquele breve caminho do deserto até o frescor artificial de um rancho artificial. Só duas décadas mais tarde eu perceberia que boa parte do que fazíamos naqueles fins de semana era impossível –que a terra que pisávamos era praticamente incultivável, que colocar uma piscina com temperatura controlada no meio dela era um desvario indizível, que o acesso aparentemente inesgotável a água e comida numa casa repleta de objetos domesticados do Oeste, ferramentas, armas, cabeças de animais empalhados olhando-nos em protesto mudo– era uma forma de consagrar e conservar uma vitória sobre o passado.

    É desse flerte com o passado que é, ao mesmo tempo, vitória sobre o passado que nascem os mitos sobre o Oeste. Se eu tivesse de descrevê-los, começaria dizendo que eles têm a ver com poder, paisagem e autossuficiência.

    Alguém que cresce no Oeste aprende que, antes de nossa chegada, a terra era vazia de tudo que não fosse selvagem. Você pode perguntar quem foi mesmo que chegou, e a resposta é "nós", é claro. Eu poderia acrescentar que éramos corajosos e domamos a paisagem e a tornamos útil, o que equivale a dizer que ela deixou de ser paisagem para ser pano de fundo de nossas ambições. Não era nossa meta levar justiça e ordem à terra, mas essas coisas aconteceram porque estávamos lá e éramos bons. Tínhamos honra e dignidade. Fomos enobrecidos pela beleza terrível da terra, por suas violências repentinas –mas continuamos a ser seus senhores.

    IMPÉRIO

    Embora parte dessa história fosse verdadeira, seus exageros e falsidades escondiam fatos bem mais cruéis e menos lisonjeiros. A expansão para o Oeste nos Estados Unidos, desde a expedição de Lewis e Clark, que informou ao governo que havia terra –imensas extensões de terra– até a Guerra de 1812 e a Lei de Remoção dos Indígenas, de 1830, foi uma marcha rumo ao império que dependeu da violência e do derramamento de sangue sancionados.

    O conceito de "destino manifesto", cunhado pelo advogado e jornalista John L. O'Sullivan, proponente da anexação do Texas, convocava os primeiros cidadãos e colonos americanos a reivindicarem seu direito sobre a terra de costa a costa. Esse conceito dependia da noção de que os americanos eram moralmente superiores, de que nos cabia estender nossas instituições sobre o máximo possível do continente e que fazê-lo era um direito concedido por Deus.

    Essa ideia de honra e direito divino, somada à liberdade de ação, criou as condições para um dos piores genocídios da história humana. Civilizações milenares foram exterminadas ou subjugadas em um período brutal de 40 anos. Mesmo que os colonos viessem em paz, o governo acabava vindo com a força e removia ou massacrava os americanos indígenas.

    Os ganhos eram reforçados pela chegada do trem e pelo Homestead Act, a lei da propriedade rural promulgada por Abraham Lincoln em 1862, que prometeu 160 acres de terra a qualquer pessoa que pudesse provar que havia vivido cinco anos em um lugar e feito melhorias. Em muitos casos, isso colocava os colonos em contato direto com nativos que já haviam sido arrancados de seus locais de origem –uma vizinhança desastrosa.

    Não é por acaso, portanto, que muitos westerns acontecem no período entre 1860 e 1930, a janela de tempo entre o Homestead Act e a Grande Depressão e o "Dust Bowl", a tempestade de areia, gerada pela seca e por métodos agrícolas impróprios, que por quase dez anos devastou as pradarias e o Oeste.

    Esse período de 70 anos é o tempo em que o homem comum estava na fronteira, e é o comportamento daquele homem que o western, como gênero, procura mitificar e, em última análise, expiar.

    Desde o cinema mudo havia westerns, mas eram muito diferentes de um filme que passasse na "Sessão da Tarde". Um curta como "O Grande Roubo do Trem" (1903), de Edwin S. Porter, em que quatro pistoleiros assaltam um trem e explodem seus vagões matando qualquer um que tentasse fugir, escapando ilesos depois, prenunciava um gênero tão violento e letal quanto a história do Oeste.

    Em vez disso, no entanto, o western se configurou como um gênero notável pela maneira como domou a violência do Oeste, fez dela entretenimento e, de quebra, dispersou ideais de decência, justiça e honra aqui e ali.

    O auge do western foi 1959, ano em que cerca de 26 faroestes eram exibidos ao dia na TV. Isso foi pouco depois de Dwight Eisenhower ter assinado o Federal-Aid Highway Act, que autorizava uma injeção bilionária em melhorias de rodovias, encerrando assim a corrida pelas fronteiras americanas. Afinal, o que é uma fronteira quando você pode simplesmente entrar no seu carro e dirigir até ela, sobre asfalto novinho, em poucos dias?

    Nessa época, porém, uma nova fronteira se formava: a do resto do mundo, à medida que os EUA consolidavam os direitos a bases militares no exterior conquistadas na Segunda Guerra Mundial, avançando num combate, contínuo e travado em boa parte através de terceiros, contra o comunismo.

    Mais ou menos por esses tempos, um ator chamado Ronald Reagan apresentava uma série de TV chamada "Death Valley Days" (nos dias do Vale da Morte), com supostas histórias verídicas do Velho Oeste. O programa era patrocinado pela General Electric, maior fornecedora de equipamentos para as Forças Armadas americanas.

    EXPANSÃO

    A colisão entre Hollywood e seus mitos, por um lado, e a expansão imperial dos EUA, por outro, teve consequências duradouras para a cultura americana. Ela deu lugar a uma era de poder e autocelebração tão prolongada que conseguiu manter o país alheio à morte de seu império, apesar de os sinais estarem por toda parte.

    Essa era de poder e celebração não foi sem resistência. A literatura beat nasceu entre o fim dos anos 1940 e início dos anos 1950 como resposta política à expansão imperial interna e externa. E, no final da década de 50, começamos a assistir à ascensão do antiwestern –filmes de John Ford ("Rastros de Ódio"), John Sturges ("Sete Homens e um Destino") e John Huston ("Os Desajustados") que examinaram com olhar muito mais frio o que aconteceu durante a expansão para o Oeste, que legado isso deixou e qual era o clima do Oeste contemporâneo.

    Dois escritores americanos, em especial, trabalharam muito para desmistificar o Oeste e sua conquista. Um deles é Cormac McCarthy, que, em "Meridiano de Sangue", conta a história de um garoto que foge de casa e entra para uma infame gangue de escalpeladores que perseguiram, torturaram e mataram índios, limpando o terreno para colonos escoceses-irlandeses. O outro é um escritor nascido no Texas e que, até 2007, tinha em grande medida sido esquecido: John Williams (1922-94).

    Nos últimos anos, graças em parte ao relançamento de seu romance "Stoner" (1965) pela série de clássicos da "New York Review of Books", Williams recebeu um abraço póstumo espantosamente caloroso. O romance tomou de assalto as listas de mais vendidos em todo o mundo, e a pergunta geral era como tal obra-prima havia ficado esquecida sob nossos olhos por tanto tempo. "Um dos maiores romances do século 20"–assim Bret Easton Ellis o descreveu. "É bom", disse Julian Barnes, mais comedido. "Tem substância considerável, e peso, e fica na mente."

    ENCANTO

    Seja somente bom ou magnífico, "Stoner", publicado no Brasil pela Rádio Londres [trad. Marcos Maffei, 320 págs., R$ 57,50] tem um encanto inegável. "William Stoner entrou na Universidade do Missouri como calouro no ano de 1910, com a idade de 19 anos", começa o livro –e a partir daí se desenrola uma história de trivialidade devastadora. Mas quanto "páthos" e drama Williams arranca dessa vida banal.

    "Stoner" é a história da dor, da tristeza e do acúmulo de humilhações que formam um homem. Essas humilhações começam cedo, disfarçadas de dádivas. O herói vem de uma família de agricultores pobres. A única esperança que a família tem de prosperar é mandar William à escola agrícola da Universidade do Missouri.

    Nessa época, as escolas normais americanas, faculdades às quais se ia para aprender profissões práticas, começavam a ensinar artes liberais. Lá vai William Stoner, muito consciente do investimento de sua família –e imediatamente se apaixona pela literatura.

    Ele sai da faculdade como literato e professor, divorciado de suas raízes essenciais. Casa-se com uma mulher frágil e infeliz, de status superior ao seu, e dá início a uma vida que, pouco a pouco, o transforma em outra pessoa. E então é despido de todas as seguranças dessa nova identidade.

    A genialidade de "Stoner" vem do tom sóbrio e observador de Williams e de como o romance pacientemente traça a destruição do herói que, por certo tempo, pensamos que Stoner pode se tornar. Ele é cercado por veteranos de guerra e heróis autodeclarados; homens que correram o risco de não voltar. Stoner evita o serviço militar e se torna um burocrata universitário perfeitamente funcional, com ligeiro viés sonhador. Ele constrói essa vida com a eficiência de um fazendeiro que planeja a colheita.

    Em um trecho, ao voltar para casa após a morte do pai, usando roupas novas e mais disposta a viver, sua mulher o expulsa de seu escritório, que converte em estúdio, e ele se muda para a varanda, onde começa a refazer seu espaço.

    "Enquanto trabalhava no escritório, que lentamente começava a tomar forma, deu-se conta de que por muitos anos, sem perceber, ele guardara em algum lugar dentro de si uma imagem, como um segredo inconfessável. Uma imagem que na realidade era de si mesmo. Era, portanto, a si mesmo que estava tentando definir ao trabalhar em seu escritório, enquanto lixava as tábuas velhas para suas estantes e via a aspereza da superfície desaparecer, a pátina cinza dar lugar à madeira essencial e finalmente a uma rica pureza de veio e textura. Enquanto consertava sua mobília e a arrumava no escritório, era a si mesmo que ele estava lentamente dando forma, era em si mesmo que estava pondo alguma espécie de ordem, era a si mesmo que estava dando uma chance."

    ZELADOR

    Se essa passagem ainda ecoa em nós, é porque vem de uma realidade que o autor conheceu bem. John Williams nasceu em Clarksville, Texas, em 1922, e foi criado em Wichita Falls, neto de agricultores pobres que quase foram arruinados pelas condições ásperas da América de então. Sua família se mudou várias vezes durante a Grande Depressão, até seu pai encontrar trabalho como zelador de uma agência dos correios.

    Apenas aos oito anos Williams descobriu que seu verdadeiro pai não era aquele e tinha sido assassinado por caroneiros. Adolescente, foi um estudante mediano que gostava de escrever. Foi reprovado na faculdade profissionalizante, casou-se cedo e então partiu para a Segunda Guerra, pilotando missões de abastecimento na China, Índia e Birmânia (hoje Mianmar).

    Em dado momento seu avião foi derrubado na selva birmanesa. Metade dos passageiros morreu. Williams e três outros sobreviventes amarraram suprimentos às costas, usaram uma bússola para encontrar a estrada e caminharam até se salvarem.

    Na volta, Williams escreveu um romance de guerra, "Nothing but the Night". O romance foi escrito rapidamente, mas levou anos para ser publicado –o manuscrito foi enviado reiteradas vezes, da Califórnia e da Flórida, segundo onde o autor estivesse vivendo, a editoras de Nova York, num movimento que se repetiria ao longo de sua vida. O livro acabou sendo aceito por um homem chamado John Swallow, que publicaria também uma coletânea dos poemas de Williams em sua pequena gráfica em Denver, Colorado.

    Williams se mudou para Denver, concluiu a faculdade, obteve um mestrado e então foi para a Universidade do Missouri, onde recebeu um Ph.D. com uma dissertação sobre o poeta elizabetano Fulke Greville. Nesse período, escreveu outro romance –sobre boêmios no México– rejeitado por 22 editoras.

    Ao encerrar os estudos, aceitou o único trabalho que lhe foi oferecido, dar aulas na universidade na qual se formara em Denver e onde ajudou a fomentar o programa de redação. Foi lá que ele começou a ler sobre o Oeste, encontrando apenas histórias improváveis, invencionices e lorota pura.

    "O Oeste, enquanto tema, passou por um processo de estereotipagem absurda", escreveu Williams na revista "The Nation", "nas mãos de uma linhagem de escroques literários [...] homens que menosprezam as histórias que têm para contar, as pessoas que lhes dão vida e os cenários contra os quais elas se desenrolam."

    ENCRUZILHADA

    Calcado em pesquisa meticulosa e narrado sem rodeios, "Butcher's Crossing" é a resposta de Williams ao misto de baboseira e mentira que encontrou a respeito do Oeste. O livro, que sai no Brasil no fim de março, também pela Rádio Londres, começa na localidade que lhe dá seu título, uma encruzilhada empoeirada no Kansas. O lugarejo, cujo nome quer dizer "encruzilhada do açougueiro", tem pouco mais que um açougue, um bar, um prostíbulo e poços de salmoura para limpar as peles de búfalos que caçadores trazem para vender ali.

    É a década de 1870, e William Andrews, estudante de 23 anos de teologia em Harvard, acaba de abandonar sua vida sossegada em Boston para tentar se encontrar no grande e selvagem Oeste. Pouco após chegar a Butcher's Crossing de diligência, ele conhece um guia chamado Miller que o convence de que há uma oportunidade valiosa, desde que tenham coragem de sair a sua procura. Ele sabe que um rebanho raro de búfalos que passará pelo Colorado antes do inverno.

    O guia e caçador convence Andrews a financiar a viagem para achar e matar esses animais –serão precisos US$ 600, ou metade do que Andrews leva consigo. A ideia de Miller é um terço aventura e dois terços perda de tempo e recursos. Eles vão viajar e entrar em contato com a natureza e com sua própria masculinidade; de quebra, ganharão algum dinheiro pelos couros de búfalo.

    Miller parte para adquirir suprimentos com o dinheiro de Andrews. Enquanto espera, em vez de contemplar uma vida na natureza, Andrews passa suas horas em um hotel barato, flertando com uma prostituta chamada Francine. À medida que a ausência de Miller se prolonga, o jovem tece fantasias sobre a natureza que, mesmo em um ponto tão precoce do romance, podemos pressentir que vão ser jogadas por terra.

    "Sempre que seu olhar se elevava para fora da cidade, contemplava o oeste, na direção do rio e além. [...] Ele pensava no tempo em que, menino, parava na costa rochosa da baía de Massachusetts e olhava para o leste, por sobre o Atlântico cinzento, até que sua mente sufocasse de vertigem diante da imensidão contemplada. Agora, mais velho, ele olhava, por sobre outra imensidão, outro horizonte."

    Miller acaba retornando e, com dois outros homens, ele e Andrews partem para as Montanhas Rochosas em busca dos búfalos. Williams faz questão de não romantizar a viagem, que está longe de ser emocionante: os homens acordam, tomam café amargo, comem feijão salgado, cavalgam por 10 ou 12 horas, então se deitam, acordam e fazem tudo de novo. As repetições os entorpecem –não os levam ao transe que Andrews previra, mas a um estado de simples desfrute das sensações físicas que encerra seus próprios prazeres.

    A prosa de Williams lança uma lente sem filtros sobre a paisagem, cuja simples descrição deve bastar; a vaidade do homem não precisa ter lugar. Lendo como descreve as ravinas, os desfiladeiros, as pradarias altas com capim, é difícil deixar de pensar nas paisagens pintadas por Albert Bierstadt no final dos anos 1860 –os magníficos picos montanhosos vistos das margens de lagos, os céus estranhamente azuis iluminados por feixes de luz quase divina, como a recordar aos espectadores onde estava a glória verdadeira.

    Para cada descrição de paisagem a simular tal visão idealizada da natureza, Williams retrocede um pouco, retratando a realidade árdua da viagem. O grupo não se programa bem e, em pouco tempo, vê a água escassear. Andrews mal possui a força para o trabalho requerido; ele é superado até pelo assistente alcoólatra e maneta de Miller, que zomba dele e o julga.

    Eles finalmente encontram um rebanho que vale a empreitada e, ao longo de 40 páginas, o título "Butcher's Crossing" ganha novo sentido. Carnificina é o único termo para definir o que os homens fazem. Os búfalos são grandes, lentos e estúpidos; uma vez cercado o rebanho, basta atirar em um animal, no seguinte e no seguinte.

    A matança se torna monótona; então começa o trabalho mecânico e sanguinário de arrancar o couro dos búfalos, com direito à repulsa que cabe quando se vê um rebanho de animais majestosos ser reduzido a uma pilha que nem sequer é de carne, mas de moedas.

    Essa é uma das passagens mais verdadeiras de toda a literatura americana. Pelo simples fato de se ater aos detalhes de como o Oeste foi esvaziado –não conquistado–, Williams derruba a pátina de mitologia ainda hoje grudada no para-lama de todas as picapes desnecessariamente grandes do Oeste.

    Andrews retorna da viagem mudado, não enobrecido, pela noção de desperdício sem sentido do sublime. Ele toma súbita consciência de que tudo aquilo em que costumava ver símbolos do Oeste havia vindo de um animal vivo.

    Algo semelhante me ocorreu na infância. Quando o comprido capô do Cadillac de meu tio Karl abria caminho pelas estradinhas do deserto, eu olhava para os chifres de vaca lá na frente e tentava imaginar se ele andaria naquele carro caso o adorno fosse feito com o resto de um crânio.

    JOHN FREEMAN, 41, jornalista e poeta, ex-editor da revista "Granta".

    CLARA ALLAIN é tradutora.

    MARCELO COMPARINI, 35, é pintor.

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