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    O golpe e a batalha da Maria Antônia revisitados

    ALESSANDRA AFFORTUNATI MARTINS PARENTE

    01/04/2016 12h00

    RESUMO A autora do texto compara episódio recente de violência durante protesto na PUC-SP com a chamada batalha da Maria Antônia, de 1968. A psicanalista analisa a repetição compulsiva, decorrente de trauma da ditadura, de atitudes tomadas pela esquerda. Para Parente, Dilma errou ao empregar um modelo de governo com o que há de mais retrógrado.

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    Uma das coisas escancaradas pela atual crise do país é que política é lugar de intensas cargas afetivas. Campo fértil para a psicanálise. O conflito ocorrido no dia 21 de março na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo pode ser uma boa alegoria para compreender tais afetos no interior do território psicanalítico. Espécie de "revival" de aspectos vividos na batalha da Maria Antônia em outubro de 1968, o episódio na PUC-SP aparece como palco de cenas que se cruzam e se distanciam no tempo e no espaço.

    Foi em uma breve passagem de "O 18 de Brumário de Luís Bonaparte" que Marx corrigiu a sentença de Hegel, segundo a qual todos os grandes fatos e todos os grandes personagens da história são encenados no mínimo duas vezes. Segundo Marx, é verdade que a história se repete; no entanto, é preciso acrescentar algo decisivo a esse axioma: a primeira encenação da história é trágica, e a segunda, farsesca. O que ilustra tal pensamento é um diagnóstico em relação ao "ancien régime" alemão.

    A cultura alemã, ao manter intacta a ordem de seu "ancien régime" muito depois da Revolução Francesa, representa um teatro que denota a mimese jocosa de um modelo há muito desmascarado. Enquanto o "ancien régime" francês viveu como verdadeiras a legitimidade de um poder monárquico e a tragédia de sua queda, os alemães interpretam a derrocada de seu império como algo inédito, mas as lamúrias, copiadas dos franceses, ecoam de forma pouco convincente. Os gritos revoltosos já não têm fervor e ressoam como manifestações amadoras de atores na hora do ensaio.

    Considerando a afirmação feita por Marx, seria interessante perguntar aqui como os dois embates –PUC e Maria Antônia– foram vividos e, além disso, se estamos vivendo em 2016 uma paródia de 1964.

    É Freud quem ensina a razão pela qual histórias se repetem. Em um jogo infantil do neto, ele observa uma espécie de escrita que esboça as dores da separação. Sempre que a criança via sua mãe se afastar, lançava um carretel e segurava a linha que dele se desenrolava, emitindo o som "óóóóóó". Freud deduziu ser esse gesto a tentativa de expressar a palavra "fooort" (lááááá), associada à saída da mãe que já não estava em seu campo de visão. Como o fato de a mãe se afastar provocava angústia, Freud tentava entender a razão pela qual o neto insistentemente repetia a dolorosa separação na brincadeira.

    O trauma é uma inscrição psíquica destituída de qualquer tipo de forma linguística e que, por isso, opera apenas por repetição, numa compulsão inesgotável. É necessário que advenha alguma espécie de escrita, de narrativa para que o traço traumático, despido de linguagem, ganhe forma.

    O jogo do carretel é bonito, pois mostra justamente as sutilezas da passagem desse estado de inglória repetição para outro, em que o sujeito ensaia sua liberdade e autonomia. Depois de repetir inúmeras vezes o gesto de lançar o carretel, o neto de Freud percebe que pode puxar o fio para que ele volte e emite o som "daaaa" (aqui). A lacuna deixada pelo objeto amado, que amiúde se afasta da criança, dá chance a ela de arriscar seus primeiros registros.

    PASSADO SOTERRADO

    Se transposta para o campo sócio-histórico, a lógica temporal da vida anímica é muito próxima daquela concebida por Walter Benjamin em suas teses de "Sobre o Conceito de História". Lá o filósofo alemão escreve: "A história é objeto de uma construção, cujo lugar não é formado pelo tempo homogêneo e vazio, mas por aquele saturado pelo tempo-de-agora ('Jetztzeit'). Assim, a antiga Roma era, para Robespierre, um passado carregado de tempo-de-agora, passado que ele fazia explodir do contínuo da história. A Revolução Francesa compreendia-se como uma Roma retomada".

    A ideia não poderia ser mais clara: a repetição ocorre quando faíscas do passado soterrado podem ser identificadas nas malhas do presente. Nesse lampejo do passado sobreposto ao presente é que estaria contida a promessa da revolução. Tarefa do historiador materialista seria a de escovar a história a contrapelo, trazendo à luz o que havia sido oprimido pela versão narrativa dos vencedores da história.

    É no interior desse quadro que valeria retomar a pergunta acerca de repetições e diferenças ocorridas nos dias atuais em relação a alguns aspectos dos anos de chumbo. Os traumas inscritos em 1964 e a violência arbitrária vivida no regime se mantiveram até bem pouco tempo calados, repetindo-se compulsiva e silenciosamente na violência da PM, nos modelos oligárquicos da politicagem, na tendência de resolver as coisas de forma autoritária, sem que houvessem debates públicos e decisões que partissem deles.

    Em 2013 o MPL defendeu o passe livre e tornou possível, com esse significante e com sua luta, abrir as portas do recalque. Importante lembrar que, se o recalque é capaz de manter veladas as dores do trauma, também é ele que impede a cicatrização das velhas feridas e o ato de escrever novas histórias. Desfeito o nó do recalque, surgiram em 2013 várias tentativas de passar o recado de que queríamos a vida pública de outra forma. Ficou claro que não aceitaríamos mais o órgão institucional que traz para o presente vestígios da ditadura: a Polícia Militar.

    Manifestações intensas e grandiosas, realmente cheias de promessas, pediam também por melhores serviços públicos e por mais igualdade social. Paralelamente a isso, tínhamos os resultados parciais da Comissão da Verdade sendo divulgados, até que em 2014 tivemos acesso aos documentos, além de alguns eventos que rememoravam o golpe por conta de seus 50 anos. Na campanha de 2014, João Santana intuiu o apelo dessa linha e fez de Dilma Rousseff a Coração Valente, justamente por ela ter enfrentado com coragem o período da ditadura.

    CANSAÇO

    Hoje, diante do arbítrio do juiz Sergio Moro, renasce um espírito de luta, de não rendição ao que foge das regras democráticas. Valeria a pena, porém, pensar se os símbolos do PT são aqueles que melhor representam a resistência à repetição traumática. Muitas vezes parece que grudar indiscriminadamente a esses símbolos exaltados pelo marketing é gesto também repetitivo de uma esquerda cansada que precisa se repensar.

    Vale lembrar que em 2013 foi encontrado o que ficou conhecido como Relatório Figueiredo –7.000 páginas nas quais o terror do programa da ditadura em relação aos índios e terras preservadas fica absolutamente claro. Mais assustador é perceber como o programa do PT é exatamente o mesmo após todos esses anos –e não por simplesmente fechar os olhos para a questão indígena, mas principalmente por estimular setores da economia que são os mais condizentes com o horror.

    A coragem que Dilma Rousseff tem apresentado é a de compor o governo com o que há de mais retrógrado na política. É cenário de zumbis que arrepia qualquer pessoa que se intitula "de esquerda". Pouco hábil para conversar com o que se apresentou de novo em 2013 e que tem mostrado força em pequenos eixos, a presidenta optou por se fechar em seu palácio enquanto o circo ia aos poucos pegando fogo.

    Disso decorre a pergunta sobre os tempos e espaços que se cruzam. Devemos reconhecer que, com Jango, vivíamos o ano de 1964 marcado pelas questões dos trabalhadores e da reforma agrária, ao contrário de 2016 em que vemos um PT não só vendido para o terror, mas partícipe de tal política atrasada.

    Se queremos de fato reescrever a história, é necessário também olhar para esse aspecto. Não basta escondermos as sombras do PT em todos os episódios em que uma ameaça da direita se coloca para o partido e ficarmos agarrados aos símbolos já esvaziados, sustentados apenas pelas estratégias de marketing. Também não estamos em momento próximo da instauração de um AI-5 para que alunos se vejam perseguidos. É certo que a PM é órgão a ser extinto –teríamos que perguntar, contudo, onde esteve a ousadia de um governo de esquerda para rever essa questão após infindáveis debates e manifestações contra esse órgão.

    Onde esteve a Coração Valente para receber as demandas, costurá-las, reinventá-las, tentar colocá-las em prática? Ser o tempo todo vítima ressentida da direita é lugar pequeno, amedrontado, cômodo –a esquerda não pode estacionar aí. Atmosfera melancólica que perde oportunidades de escrever novos enredos justamente quando opta por pasteurizar os velhos modelos. Se queremos realmente sair da repetição compulsiva oriunda do trauma é necessário que olhemos com coragem também para isso.

    ALESSANDRA AFFORTUNATI MARTINS PARENTE é psicanalista e doutora em psicologia social pela USP.

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