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    Piano popular no ensino cubano: do arquivo de Pepe Cisneros

    PEPE CISNEROS

    03/04/2016 02h10

    Um dia acordei com minha mãe assustada, balançando um telegrama. "O que é isso, meu filho?" Era a aprovação na escola de música de Guantánamo, minha cidade natal. Com dez anos de idade, tinha feito o teste sem avisá-la. Bastante empolgado, comecei a estudar percussão erudita. É que bateria desde sempre me atraíra a atenção: enfiava-me no fundo do quintal e armava um monte de lata. Era o que eu mais queria.

    Acontece que "piano complementar" era obrigatório para qualquer estudante de música em Cuba, e me interessei pelo instrumento rapidamente. Como estudava música de manhã e no começo da tarde ia para a escola regular, a hora do almoço era o único momento em que podia brincar, tocar piano livremente. E, por algum engano, não colocaram meu nome na lista das refeições da escola de música, o que me obrigava a ir para casa almoçar. Entre comer e tocar, escolhia ficar em alguma salinha que tivesse um piano vago.

    Acervo Pessoal
    O músico cubano Pepe Cisneros (em destaque) em apresentação do coro da Escuela Nacional de Artes
    O músico cubano Pepe Cisneros (em destaque) em apresentação do coro da Escuela Nacional de Artes

    Não demorou a ocorrer o inevitável: debaixo do sol, enfileirado, cantando o hino e hasteando a bandeira, desmaiei. Só assim descobriram que eu não estava almoçando e me incluíram no rango.

    Eu vivia espiando as aulas daqueles que tinham o piano como instrumento principal. Quando erravam muito, o professor batia com uma vareta nos dedos.

    Fosse qual fosse o instrumento, aprendia-se música erudita, predominantemente europeia, sob o modelo de ensino soviético. Mozart, Bach, Czerny, mas autores cubanos também, como Moisés Simons, Alejandro García Caturla, Amadeo Roldán... Tudo muito rígido. Se flagrassem alguém tocando música popular, era falta grave, chamavam os pais, só faltavam chamar a polícia. E, curiosamente, foi a música popular da ilha que conquistou o mundo.

    Quando a escola era visitada por professores de Havana, o rigor se abrandava, e às vezes dávamos a sorte de vê-los se divertindo com músicas de Chick Corea, Keith Jarrett, Herbie Hancock, John Coltrane e Art Tatum, estopim para minha paixão pelo jazz, que não era bem-vinda no ambiente acadêmico.

    Mais um teste, e fui admitido na Escuela de Música da Escuela Nacional de Artes, em Havana, para continuar meus estudos musicais paralelamente ao ensino médio.

    A Escuela de Música tinha uma arquitetura muito peculiar. Foi concebida e começou a ser construída no auge da revolução, a partir de 1961, e o projeto, idealizado pelo arquiteto italiano Vittorio Garatti, refletia a ousadia e o otimismo daquela fase.

    Às cinco da manhã soava um gongo, nas mãos de um bedel maluco. Esse bedel dizia: "Hoje você vai ficar o dia inteiro faxinando!". Era assim, as tarefas da escola obedeciam a uma escala com disciplina militar. Sem falar do uniforme: calça amarela e camisa branca –para dentro!–, e o cabelo cortado bem baixinho.

    Com o coro da escola, éramos convocados para vários eventos políticos em Cuba, inclusive em embaixadas. Muitas vezes de avião. De vez em quando, pintava uma brecha nos compromissos oficiais e dava para pegar uma praia.

    Nesses eventos, me surpreendiam as "mesas suecas", muita fartura mesmo. Perguntei uma vez o que faziam com as sobras de comida e bebida: "Jogamos no lixo!". Enquanto Cuba inteira passava sérias dificuldades, com o povo entregue às cadernetas de controle: "Você tem uma caixa de ovos, tantas libras de arroz, uma lata de leite condensado, tantos sabonetes...". Em um desses encontros, vi Fidel de longe, todo coradinho.

    Concluí a Escuela de Música e voltei para Guantánamo, onde prestei três anos de serviço social, uma espécie de contrapartida ao ensino que me fora oferecido, dando aulas de música na escola da minha infância. Em seguida, retornei a Havana em busca de novas perspectivas.

    O diretor da Escuela de Música, sabendo das minhas inclinações, me propôs: "Você não quer dar aulas de piano popular?". Eu me perguntava o que ensinaria a eles, tão competentes, a executar Stravinski e outros gênios. Aceitei o desafio e, em 1990, tornei-me o primeiro professor de piano popular no ensino oficial de Cuba.

    PEPE CISNEROS, 47, cubano radicado no Brasil, é percussionista e pianista.

    *

    Nota: Pepe Cisneros faz show gratuito com o Cuba Cuarteto na Galeria Olido, em SP, no próximo domingo (10), às 18h.

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