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    A poética das imagens e do tempo do cineasta Carlos Adriano

    OLGÁRIA MATOS

    08/04/2016 13h05

    Divulgação
    O cineasta Pier Paolo Pasolini em cena de "Sem Título # 3: E para que Poetas em Tempo de Pobreza?"
    O cineasta Pier Paolo Pasolini em cena de "Sem Título # 3: E para que Poetas em Tempo de Pobreza?"

    RESUMO O texto analisa o curta-metragem "Sem Título # 3: E para que Poetas em Tempo de Pobreza?" (2016), do diretor paulistano Carlos Adriano. A obra é parte da sua série "Apontamentos para uma Auto Cine Biografia (em Regresso)". O filme, que integra a mostra competitiva do festival É Tudo Verdade - 21º Festival Internacional de Documentários, será exibido neste sábado (9) e na quarta (13) em São Paulo. No Rio, tem exibições no domingo (10) e na quinta (14). Veja a programação.

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    "Sem Título # 3", filme de Carlos Adriano, pergunta: "E para que poetas em tempo de pobreza?". Reflexão encantatória sobre a dívida e a transmissão da poesia e do cinema, em sua consanguinidade espiritual, sua sobrevida na modernidade, o tempo de despoetização do mundo. Por isso, a fita começa com uma dedicatória: "Para Bernardo, poeta da programação de filmes e arquivos, programador-poeta de cinemateca, que em 2016 faria 70 anos".

    Neste filme, biografia e autobiografia, memórias e filmes encontram no cinema a reconciliação. Construído com erudição cinematográfica e literária, histórica e conceitual, a phylia reúne Cocteau e Pasolini, Ungaretti e Buñuel, Cendrars e Joyce, Pound, Lorca e Lang, enfrentando a finitude de tudo que é temporal, no sentido inverso ao do desaparecimento.

    Carlos Adriano reavê a metafísica da saudade de Hölderlin, reconsiderada por Heidegger, revisitada por ele, no milagre da multiplicação de imagens poéticas e declamação lírica, pois cada amor contém todos os amores, cada filme, todos os filmes, cada livro, todos os livros. "Todo o mundo é feito para culminar em um belo livro", ou em um belo filme, poderiam dizer Mallarmé e o narrador-cineasta.

    Nesta fita, o passado não suscita a potência de meditação sobre as ruínas do tempo ou lamentos pelos desvarios das guerras, civis ou entre Estados, quando se vêem cenas de populações inteiras de foragidos, em exílio forçado, atravessando fronts e fronteiras rumo ao desconhecido. Mais que tudo, para Carlos Adriano, todas as guerras são contra a cultura, quando deveriam lutar contra a própria incultura. Eis por que Carlos Adriano extrai do político o estético, e não o contrário, a fim de interrogar o devir e seus espectros.

    Porque a tragédia grega está definitivamente extinta, os poetas, errantes agora, seguem na "noite sagrada". Como em Cocteau: "A inspiração poética não vem do céu, ela deveria chamar-se expiração, é algo que sai de nossas profundezas, de nossa noite, e o poeta tenta colocar sua noite na mesa, a 'noite escura da alma'". A "noite escura da alma" de San Juan de la Cruz está em Cocteau e em todo poeta, sinônimo de desamparo, ausência, mortificação, obscuridade, privação, pobreza, carência, solidão e vazio.

    Bíblica ou teogônica, a noite é caos originário: " No começo as trevas cobriam o abismo". Mas ela é também a noite constelada de poetas, sonhadores e astrólogos. E noite dos místicos, a dos " espaços infinitos" de Pascal e sobretudo a de Orfeu que, na noite dos ínferos que julgam os mortos, chamou por Eurídice. No horizonte do impossível luto, Carlos Adriano reinventa o lirismo órfico que desperta os mortos: "O que amas de verdade é tua herança verdadeira / o que amas de verdade não te será arrancado", diz-se no filme.

    ESCONDE-ESCONDE

    À maneira dos situacionistas e de Debord, não se trata nesta fita de citações de filmes e de versos, mas de "détournements", de desvios, deslocamentos, desfigurações e refigurações, entre o luto e o lúdico, em um jogo sutil entre um primeiro grau lírico e um segundo irônico. Escondido em meio a citações, Carlos Adriano brinca de esconde-esconde com o espectador. Não por acaso, vê-se Pasolini, ator de um de seus próprios filmes, com um chapéu parodiando uma auréola de santo no tempo de que "os deuses já partiram" ou ao qual "ainda não chegaram".

    O autor dentro do ator, o filme dentro do filme –como "Santos Dumont" é filme e personagem de Carlos Adriano– são ficções heurísticas que inscrevem o cinema em uma continuidade temporal, súmula e soma de filiações e fidelidades, a cada vez única e singular em sua repetição, escapando da ilusão de um recomeço absoluto. Assim, o filme de Rohmer sobre Mallarmé, simultaneamente Rohmer e Mallarmé, o cineasta como o duplo do poeta, como o são Buñuel, Pasolini, Lang, Lorca, entre outros. Carlos Adriano compreende a "origem" como rastro de outro rastro. Em uma modernidade em crise antigenealógica, que dissipa pertencimentos e tradições, mas que, simultaneamente busca por identidades, Carlos Adriano, à contraluz, dá a conhecer que o habitar moderno, não sendo experiência da memória, é pobreza da memória.

    Na fita de Carlos Adriano, não se trata de lembranças –que evocam o que passou e terminou–, mas de reminiscências, de vestígios que permanecem vivos e atuantes, vencendo a barreira do tempo, tempo que é passagem e caminho sem volta, mas também transcriação poética: "Espero estar distante de você, em estado de fantasma", ouve-se de Cocteau.

    Por isso, a fita se faz com imagens de trêmulas folhagens que se transformam em pássaros, anjos e voo ascensional, manifestando a leveza e a "charis": "Para compreender meus versos é preciso dizê-los com simplicidade". Em uma modernidade saturada de imagens, o poeta e o cinema só poderiam mesmo "estar em greve contra a sociedade", nas palavras de Mallarmé.

    Apresentando-se em preto e branco, em cores ou em negativo, a fita se constrói no registro do fantasma e dos espectros, na transitividade entre o já sido e o agora, figurações retóricas das transmigrações do tempo: "Um filme ressuscita atos mortos e mostra além disso, com o rigor do realismo, [...] os fantasmas da irrealidade". A irrealidade é um dos aspectos da realidade, sempre assombrada por memórias de uma aparição. Elas são, para Pasolini, "nostalgia da vida, júbilo, sentimento de exclusão que não retira o amor à vida, mas o engrandece".

    RUPTURAS

    "Sem Título # 3" é o título que se nega a si mesmo, o terceiro de uma série não causal, feita das rupturas do tempo. Nele, tudo se passa como se o filme não fosse feito por ninguém, ou por todos e para todos, aleatoriamente: "todo pensamento", ouve-se, "é um jogo de dados", em equilíbrio à beira do precipício, como nas imagens da paisagem íngreme com suas silhuetas distantes e fantasmais. "Destemido é o poeta que permanece só com Deus. A inocência protege e assim ele dispensa armas e astúcias, até que a ausência de Deus seja o que ajuda."

    Cultivados no jardim do amor reencontrado, os planos vivos das rosas rubras, justapostos às imagens de Lorca e do tributo à Comuna de Paris, afirmam o sentido de uma nova vida para o cineasta-poeta. Assim como os planos misteriosos do "caminhante" refletido na orla do mar apontam para uma história inaugurada no presente do agora. Constelações projetadas, de bibliotecas e filmotecas.

    O filme de Carlos Adriano não é uma busca do tempo perdido, porque não tenta retê-lo. Ao contrário, o cineasta joga-se inteiramente na passagem do tempo porque "tudo que almeja permanecer sagrado se envolve de mistério". Por isso, "os poetas são servidores de uma força desconhecida que os habita". O cinema de Carlos Adriano respeita esse enigma.

    OLGÁRIA MATOS é professora titular dos departamentos de filosofia da USP e da Unifesp. É autora de "Os Arcanos do Inteiramente Outro: a Escola de Frankfurt, a Melancolia, a Revolução" (Brasiliense) e "O Iluminismo Visionário: Walter Benjamin, leitor de Descartes e Kant" (Brasiliense), entre outros.

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