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    Mario Quintana e a rapadura

    PAULO RIBEIRO

    17/04/2016 02h07

    Porto Alegre, 1985

    – Olá, Seu Quintana...

    – Sou!

    – Poderia...

    – Não!

    Foi mais ou menos assim, com esta blague, que conheci Mario Quintana, em 1985.

    Naquele ano, o poeta mudara-se para o Hotel Royal, na rua Marechal Floriano, no centro de Porto Alegre. O então Rei de Roma, Paulo Roberto Falcão, recém havia comprado o hotel e convidara o poeta para morar lá, pois Mario andava sem paradeiro.

    Por intermédio de um amigo, um conterrâneo de Bom Jesus, Mauro, cheguei ao inacessível poeta. Mauro era garçom no hotel e fazia as "comprinhas" para o Quintana –cigarros, balas, apostinhas em jogos variados– e era recompensado com livros autografados que guarda com zelo ainda hoje na portaria do Hospital Saúde, em Caxias do Sul, onde trabalha.

    À época estudante de jornalismo, eu o visitava por aquele motivo mesmo: obter uma "entrevista". E só o Mauro para convencê-lo.

    Era uma tarde muito quente, lembro. O poeta me recebeu acompanhado de uma jovem estudante, Sandra Ritzel, que acabaria se tornando sua companheira até o final da vida.

    Acervo pessoal
    Jornal no qual foi publicada entrevista de Paulo Ribeiro com Quintana
    Jornal no qual foi publicada entrevista de Paulo Ribeiro com Quintana

    O diabo, então, com aquele calor, era saber qual Quintana abriria a porta, atendendo ao pedido do seu prestativo amigo. Havia muitos Quintanas, diziam. O Quintana que conheci era um cara brincalhão e feliz, apesar da modorra daquela tarde. À vontade, desfolhando jornais pelo chão (tive a impressão de que o poeta lia o jornal por partes, a cada quatro páginas que lia, a desprendia do corpo do jornal, jogando no chão as descartadas).

    Páginas de jornal pelo chão, lambuzando-se de rapadura, lá estava o poeta. Um ventiladorzinho ligado e, à cabeceira da cama, a térmica com café. Tão logo me recebeu, deitou-se, pés espalhados pela cama. Mais do que cansaço, era um "empreguiçado" animal que estava ali aos 79 anos.

    E começou a falar muito, comentando o que aparecia na TV então ligada. Duas crianças na publicidade:

    – Não gosto de gêmeos, eles nos dão certeza da nossa condição de animais, todos parecidos uns com os outros!

    E seus dois olhos, gêmeos também em seu azul, acenderam-se ao falar de Piazzolla. Por algum motivo, o músico, na TV, tinha entrado na conversa. E nada da entrevista.

    Quintana me enrolava com sua atenção, e eu nervoso querendo logo fazer as perguntas. E o poeta pigarreava e dizia lá duas coisas antes de um novo café.

    E ameaçava:

    – Olha que eu não concedo entrevista nenhuma. De onde você conhece o Mauro?

    E assim passou a tarde. Aquela TV ligada e cafezinhos às 14h30, 15h40 e 16h50. Era um "cafezeiro", eu comprovava (como também pude comprovar a existência da lendária foto emoldurada de Bruna Lombardi). E, assim como ofereceu a rapadura ou um café, com o mesmo gesto da mão estendida, Mario Quintana, cansado, a certa altura me expulsou de seu mundo.

    – Mande pelo Mauro o que quiser, que eu te respondo.

    Assim foi feito. Deixei na portaria a minha pauta e, no dia seguinte, já recebi o manuscrito do poeta. Infelizmente, suas respostas restam esquecidas (não perdidas) em meio a caixas de andanças e mil mudanças da vida.

    Sobrou, contudo, a entrevista. Ela foi divulgada no jornal interno do Grupo Olvebra, onde eu estagiava, à época, na área de comunicação. É um material, até certo ponto, singelo (pela minha inexperiência e condição de fã naquele encontro), mas inédito, pois circulou apenas entre funcionários, em 1985.

    PAULO RIBEIRO, 56, escritor e professor de jornalismo na Universidade de Caxias do Sul, é autor de, entre outros, "Vitrola dos Ausentes" (Ateliê Editorial) e publica em junho a coletânea de contos "Bagorra" (Kotter).

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