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    Legislativo perde força, apesar do processo de impeachment

    MARCUS ANDRÉ MELO

    17/04/2016 02h04

    RESUMO O controle do Legislativo sobre o Executivo vem perdendo força no sistema político brasileiro, como atestam levantamentos sobre efetividade das CPIs. Tal situação deve-se à preponderância do Executivo e, embora o processo de impeachment pareça provar o contrário, na verdade é fruto de uma tempestade perfeita.

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    Pierre Rosanvallon sustenta que a democracia supõe o exercício da desconfiança ("défiance") e controle sobre governantes e lembra uma citação instigante de um dos próceres da Revolução Francesa, Robespierre: "A desconfiança dos governantes é a guardiã dos direitos das pessoas, ela está para a emoção profunda dos amantes da liberdade como o ciúme está para o amor". Mas nem todos estão apaixonados pelo controle. Ou pelo menos pela sua modalidade indireta –horizontal– exercida pelo Parlamento, da qual o impeachment é o exemplo mais radical, e as CPIs (comissões parlamentares de inquérito) são o mais usual.

    Para o presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, haveria no país um inefetivo e descabido padrão de controle. "Investigar é para profissional, não é para amador" (Folha, 13/11/2015). Segundo o ministro "o Congresso deixou de lado a sua função legislativa e passou a exercer uma função investigativa". "Inúmeras CPIs correndo, substituindo o Ministério Público, a Polícia Federal e o próprio Judiciário, fazendo aquilo que eles não sabem fazer".

    Terá sido o Congresso sempre um amador na atividade de controle do Executivo? É certo que ele já exerceu a forma mais radical de controle –o impeachment, há pouco mais de duas décadas. Tomando o caso das CPIs –forma menos severa, mas de grande importância, de controle parlamentar "par excellence"– a resposta é não. O controle parlamentar na República de 1946 era muitíssimo mais efetivo do que no período pós-1988. Na Câmara dos Deputados, das 239 propostas de CPIs no período 1990-2015 apenas um quinto (61) foi instalado, e meras 49 foram concluídas. No Senado, a situação é parecida: foram propostas 47 CPIs no período em pauta, das quais apenas 28 foram instaladas –e, dessas, só 17 foram concluídas.

    O contraste com a situação do controle parlamentar entre 1946 e 1964 não poderia ser mais eloquente: das 169 CPIs propostas no período, a quase totalidade (161, ou 95%) foi instalada. Destas, 60% concluíram os trabalhos. Mas as taxas de conclusão das CPIs dos primeiros mandatos de Dilma Rousseff e Lula –de 12% em ambos os casos– é a menor de qualquer governo federal na série histórica que compreende 68 anos (de 1946 a 2014). Nesse quadro de controle hegemônico do Poder Executivo sobre o Legislativo, apenas quando há conflito interno à coalizão é que os trabalhos das CPIs adquirem efetividade, abrindo-se a possibilidade de punição.

    Às CPIs notáveis dos governos Kubitschek e Goulart e às do PC Farias e dos Correios –que resultaram no impeachment de Collor e em punições do mensalão– se seguiram comissões que atestam o fim melancólico do controle parlamentar.

    É o caso da CPI da Petrobras. O relatório vexaminoso do relator Marcos Maia (PT) –que, engolfado pelas evidências de corrupção já trazidas à baila pelas instituições de controle, teve que ser emendado às pressas para não se tornar tão patentemente inócuo– evidencia o colapso do controle parlamentar. Como se isso fosse pouco, o vídeo gravado contendo o ensaio patrocinado pelo governo sobre as perguntas que parlamentares governistas fariam aos depoentes envolvidos em irregularidades lançou a pá de cal.

    DECLÍNIO

    O que explica o declínio do controle parlamentar e o protagonismo das instituições de controle "latu sensu" (Ministério Público, Judiciário, Tribunal de Contas, Polícia Federal)?

    Parte da resposta corresponde à ampla delegação de poderes tanto ao Executivo quanto às próprias instituições de controle pela Constituição de 1988.

    A vastíssima delegação ao Poder Executivo se fez acompanhar de novas prerrogativas (iniciativa exclusiva em matéria administrativa, orçamentária e tributária, medidas provisórias e uma miríade de outras inovações).

    Por sua vez, o Ministério Público adquiriu grande autonomia, e o Supremo Tribunal Federal converteu-se na corte mais poderosa do mundo segundo algumas métricas. O Tribunal de Contas da União também fortaleceu-se amplamente. Embora tenha adquirido gradativamente grande autonomia, o TCU permanece preso à lógica majoritária que governa o seu processo decisório, já que a decisão sobre seus pareceres prévios cabe ao Legislativo.

    A principal razão para a inefetividade do controle parlamentar decorre da proeminência do Poder Executivo no sistema político. A parlamentarização do presidencialismo no Brasil significa que o presidente governa amparado por coalizões majoritárias –um imperativo da representação proporcional utilizada no país. E as instituições governadas pela lógica majoritária fenecem pela estrutura de incentivos resultante.

    TEMPESTADE

    "Prima facie", o processo de impeachment iria na contramão desse argumento: a presidente parece refém do Legislativo. Na realidade, esse estado de coisas é excepcional. O protagonismo do Legislativo na atual conjuntura reflete apenas o enfraquecimento brutal e inédito do Executivo, que enfrenta uma tempestade perfeita.

    O mais surpreendente na atual conjuntura é que a chefe do Executivo ainda tenha poder de fogo, embora tenha perdido o controle da agenda do Legislativo. Não há registro –arrisco a conjetura– de um presidente com popularidade de um dígito, cujo partido tenha se reduzido a 10% das cadeiras no Parlamento, enfrentando a recessão mais profunda em mais de um século e o maior escândalo de corrupção ocorrido em qualquer democracia (pela magnitude dos valores desviados e pela exposição das entranhas dos desvios).

    Some-se a isso o provável enfrentamento de ações de impeachment pelos mais variados crimes presumidos. Sobrevivendo à ação extrema de controle –o impeachment– o que sobrará? O governo terá tido minoria para barrar o impeachment, mas essa minoria não produz governo.

    Isso, contudo, não entra no cálculo político do governo: no quadro atual, o confronto calculado seguido de derrota pode ser a estratégia ótima de retirada.

    O principal interessado no impeachment é o próprio governo: ele forneceria a narrativa de vitimização que a penosa reconstrução do PT exigirá. O enfrentamento –espetacular e dramático– é parte integral dessa estratégia.

    O impeachment é crônica de uma morte anunciada, mas não pelas razões frequentemente apontadas. Não se trata de vingança de perdedor ou operação concertada de inimigos da nação –os suspeitos usuais não precisam ser lembrados. Em um quadro de tempestade perfeita, o impeachment tornou-se irrefreável devido a dois fatores. De um lado, a dinâmica da Lava Jato e o timing da divulgação da lista de Janot. As delações premiadas e seu conteúdo vieram à tona menos de 30 dias após as eleições e antes mesmo da posse.

    O tsunami de informações tóxicas produziu uma situação inédita: um chefe do Executivo recém-eleito sem direito à lua de mel presidencial, pois a posse já ocorrera sob suspeição. A divulgação da lista de Janot antes das eleições, e não logo após as mesmas provavelmente teria impactado seu resultado e levado à derrota da chapa vencedora.

    De outro lado, o confronto com o PMDB, ativamente buscado pelos governos de Lula e Dilma, teve como desenlace a derrota do candidato do governo na eleição para a presidência da Câmara dos Deputados. A perda de controle sobre a agenda da casa só ocorrera antes sob Collor. O mandato já começava assim sob a espada de Dâmocles.

    A surpreendente fortaleza de um presidente extraordinariamente débil confirma o conhecido argumento de Shugart e Carey de que a instabilidade sob o presidencialismo é tanto maior quanto mais amplos os poderes constitucionais do presidente e quanto mais fraca sua sustentação partidária.

    O dilema do desenho constitucional de 1988 envolveu o fortalecimento simultâneo do Poder Executivo e das instituições de controle –agenda amplamente reclamada pela Comissão de Reforma Constitucional criada pelo ministro Nereu Ramos, em 1956, e por lideranças tão díspares quanto Afonso Arinos e Hermes Lima. A lógica foi criar uma "coleira forte para um cachorro grande". O "trade-off" implicou o enfraquecimento –relativo, é importante sublinhar– do Legislativo, pois algumas de suas prerrogativas foram restauradas. Trocamos CPIs facilmente domesticadas pelos "presidentes de coalizão" por instituições contramajoritárias robustas.

    O resultado aí está e é consistente com o ideal normativo de Rosanvallon: o fortalecimento da contrademocracia, que não representaria o oposto da democracia, mas seu complemento. E não se trata de jacobinismo judicial. Colhemos o que plantamos.

    Para Rosanvallon a vigilância, a prevenção e a judicialização de ações de controle contra a corrupção são formas de alargar a democracia para além das eleições. A bandeira da juristocracia tem sido levantada por razões muito distintas do que se observam em democracias maduras e que envolvem a judicialização de escolhas morais e políticas. Ela tem sido levantada em questões de natureza delitiva e criminal.

    As instituições brasileiras estão sendo provocadas para realizar duas tarefas verdadeiramente hercúleas que estão sendo enfrentadas simultaneamente: o processo de impeachment da presidente e o processo de investigação e eventual julgamento daquele que é um dos mais populares ex-presidentes da história brasileira. Há registro de ocorrência de uma dessas tarefas, mas não das duas simultaneamente. Essas agendas se entrecruzaram, conferindo caráter dramático à nossa conjuntura. O teste de estresse a que está submetido o STF é inédito, e essa instituição é o fiel da balança. Interessa à plutocracia corrupta e à elite governamental seu enfraquecimento e o das demais instituições judiciais. Todo cuidado é pouco. É necessário menos paixão e mais interesse público.

    MARCUS ANDRÉ MELO é professor titular de ciência política da Universidade Federal de Pernambuco e foi professor visitante na universidade Yale e no MIT.

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