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    Leia trecho de novo livro de J.P. Cuenca, que está na Flip deste ano

    J. P. CUENCA
    ilustração ADAMS CARVALHO

    24/04/2016 02h07

    SOBRE O TEXTO Este trecho é o capítulo 7 do romance "Descobri que Estava Morto", que sai pela Planeta, em junho, quando também chega aos cinemas "A Morte de J.P. Cuenca", dirigido e protagonizado pelo autor. Livro e longa se inspiram no roubo de identidade real sofrido pelo escritor, que participará da 14ª Festa Literária Internacional de Paraty, entre 29/6 e 3/7.

    Adams Carvalho

    - Onde você estava no dia 14 de julho de 2008?

    - 2008?

    - É.

    - Em julho? Em julho de 2008 eu estava na Europa. Fiquei por lá até o fim do mês. Ou talvez agosto ou setembro.

    - Férias?

    - Trabalho.

    - Que trabalho?

    - Eu sou escritor.

    - Você foi escrever sobre o quê?

    - Eu fui convidado pra uns festivais literários. E lancei a tradução de um livro meu na Itália.

    - Você é um escritor famoso?

    - Não.

    - Desculpa, é que nunca ouvi falar. E olha que o seu nome é estranho.

    - É.

    - O que você escreve?

    - Ficção.

    - Livro?

    - Sim.

    - Ficção científica?

    - Não. Quer dizer, pode ser também.

    - O que tem nos seus livros?

    - Não sei. É complicado.

    - Como assim, complicado?

    - É que se você perguntar pra qualquer escritor...

    - Você acha que eu sou ignorante?

    - Claro que não.

    - Eu sou advogado. Leio muito. Já li muito. Teve uma época em que li todos os livros do Rubem Fonseca. Você conhece?

    - Se eu conheço o Rubem Fonseca?

    - É.

    - Eu gosto muito do Rubem Fonseca. Ele talvez tenha sido o escritor mais...

    - Tem uma frase dele que eu adoro. Eu sempre uso.

    - Qual é?

    - "Não tem nada que uma mulher não possa piorar."

    - Essa é boa.

    - Não é?

    - É.

    - Você tem essa mulher aí, por exemplo.

    - Quem?

    - Essa aí. Tá no registro. Ela é que identificou o defunto com o seu nome, sobrenome e documento. A tal Cristiane.

    - Ela está viva?

    - Ela foi intimada para esclarecer a história. Mas o endereço não confere.

    - Você tem ideia de por que essa mulher fez isso?

    - Ih, meu amigo. Tem cada história.

    - Eu imagino.

    - Ela podia estar dando um golpe de seguro no seu nome.

    - No meu nome?

    - Sim. Você inclusive pode ser cúmplice.

    - Eu?

    - Tô brincando. Mas você tinha algum seguro no seu nome em 2008?

    - Nunca tive seguro de vida.

    - Nunca?

    - Não que eu saiba. Nem de saúde eu tenho.

    - Você teve algum problema com o seu CPF recentemente?

    - Sim. Mas fui culpado por todos eles.

    - Nenhum crediário apareceu no seu nome?

    - Não.

    - Então, no fim das contas, esse sujeito aí usou o seu nome só pra morrer.

    - Ele devia estar fugindo de alguém.

    - Talvez. Mas por que a mulher dele identificou o falecido com o seu nome e não com o nome verdadeiro? Ele já estava morto, mesmo. Um cara desses não tinha pensão pra receber. Não devia fazer a menor diferença.

    Uma jovem surgiu com uma pasta e a deixou sobre a mesa. Era loura e usava calça jeans, seu coldre estava vazio. O inspetor Gomes pediu a ela um café e me ofereceu.

    Aceitei. A policial respondeu a minha tentativa de sorriso com um resignado aceno de cabeça e evoluiu por um corredor entre as mesas até a extremidade do andar. Nós dois seguimos o movimento pendular dos seus culotes, nosso único momento de cumplicidade naquela tarde. O inspetor voltou à carga, como se tivesse se lembrado de alguma coisa:

    - As pessoas costumam roubar a identidade das outras pra fugir. Pra tentar outra vida. É bem comum malandro tomar a identidade de um morto pra viver com o nome dele. Mas isso aí...

    - Isso aí o quê?

    - Não sei. É estranho pra caralho.

    - Como ele conseguiu a minha certidão de nascimento?

    - Você que me responde. Já perdeu alguma?

    - Nunca.

    - Você deu sorte. Você não percebeu aí na papelada que eles identificaram o corpo depois de uma semana?

    - Identificaram?

    Ele me mostrou este papel:

    - Esse Sérgio aí. Mandaram o defunto tocar piano e foi isso que te salvou.

    - Piano?

    - As impressões digitais. Só por isso você tem todos os documentos de morto, menos uma certidão de óbito no seu nome. Aí ia ser foda.

    - Por quê?

    - É uma puta burocracia provar que está vivo. Acha que é só respirar?

    - Quem dera.

    - Quem dera o quê?

    - Que fosse fácil.

    - É.

    - E quem era esse cara?

    - Olha, eu não sei, não. Mas gente boa é que não era.

    - Tem como puxar a ficha dele?

    - Sim. Mas o sistema tá fora do ar.

    - E tem hora pra voltar?

    - Se eu soubesse De qualquer maneira, pode ficar tranquilo. Eu vou anotar aqui que você estava em viagem internacional e que desconhecia o fato, bem como a comunicante, essa dona Cristiane aí.

    - E agora?

    - Tenho seus contatos, se a gente precisar, sabe onde te encontrar. Você está planejando viajar para o exterior nos próximos meses?

    - Sim. Por quê?

    - Não é nada, não.

    - Eu posso ficar com uma cópia desses papéis aí?

    - O que você quer fazer com isso?

    - Não sei. Quero ler direito. Com calma.

    - Porra, você tem sorte. Isso é bem história pra escritor usar.

    - É.

    - Será que você vai escrever um livro com isso aí?

    - Não.

    Saí da delegacia. O café nunca chegou.

    J. P. CUENCA, 37, escritor e colunista da Folha, autor de, entre outros, "Corpo Presente" (Companhia das Letras).

    ADAMS CARVALHO, 37, é ilustrador.

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