• Ilustríssima

    Wednesday, 08-May-2024 14:51:45 -03

    Detroit corresponde à obsessão pelas ruínas na cultura pop contemporânea

    SILAS MARTÍ

    01/05/2016 02h04

    RESUMO A partir de temporada em Detroit, antiga capital do automóvel, o autor explora o lugar da ruína nas representações culturais contemporâneas. Diferentemente do significado dos vestígios em obras do passado, a impressionante decadência da cidade, presente em filmes ou na arte, se reveste de um sugestivo glamour hipster.

    Michael S. Williamson/"The Washington Post"/Getty Images
    Interior do Michigan Theater, em Detroit, convertido em estacionamento
    Interior do Michigan Theater, em Detroit, convertido em estacionamento

    Era a primeira tempestade de neve do último inverno. Quando o dia amanheceu, um manto branco já cobria tudo e, ao longo do dia, Detroit seria soterrada por uma avalanche gélida. Dentro do Instituto de Artes, eu me sentia num daqueles globos de neve de mentira que, quando chacoalhados, fazem uma chuva de purpurina despencar sobre a cidadezinha submersa na esfera de vidro.

    Mas, imensa e vazia, Detroit hoje não faria um bom suvenir. Seu museu por pouco não teve sua coleção vendida para pagar parte da dívida pública da cidade, e sua representação em miniatura seria um montinho de arranha-céus à beira do rio e um grande descampado ao redor deles, cheio de casas e fábricas arruinadas.

    Nos anos 1930, quando pintou seus enormes murais no museu, Diego Rivera talvez nem sonhasse com o quadro de decadência que dominaria o lado de fora desse prédio. Seu elogio à indústria é hoje uma visão apaixonada de uma realidade que já não existe.

    Nas laterais da obra, estão visões da fábrica de Mont Rouge, onde a Ford já tinha instalado enormes linhas de montagem. No centro de um dos painéis, a imensa fornalha que molda o aço das latarias dos carros brilha num vermelho intenso, o ponto fulcral da peça, que se liga a um vulcão no friso superior, a imagem escolhida pelo artista mexicano para representar a indústria como força motriz de um progresso irrefreável.

    Fora do pátio de Rivera, porém, as galerias do museu parecem esquecidas. Quadros de Van Gogh, Picasso, Bruegel e esculturas de Bernini e Rodin olham para o vazio. Os funcionários que restam esperam o tempo passar até a hora de voltar para casa, e o público minguado faz rondas letárgicas em torno das peças.

    Joel Mockovciak, um artista que mora na cidade, veio me encontrar na porta dos fundos do museu. Ele ficou de me mostrar alguns dos espaços ocupados e reconfigurados pelos tipos criativos de Detroit. Saímos do Instituto de Artes em sua picape prateada e fomos até o Grand River Creative Corridor, ou GRCC, um distrito de Detroit que artistas de rua transformaram num museu do grafite ao ar livre, com enormes murais coloridos estampando velhos galpões de fábrica que hoje abrigam ateliês.

    No lugar das linhas de montagem de Rivera, os murais urbanos mostram fantasmas, caveiras, cenas apocalípticas, quando não lisérgicas e psicodélicas, e até um pastiche do mural do museu, no qual grafiteiros se enfileiram para pintar afrescos nas cascas de concreto das velhas fábricas.

    Mesmo em cores vibrantes, os murais perdiam o fulgor quando vistos no meio da tempestade de neve. Na noite anterior, também uma pancada de chuva atingira a cidade, logo antes da queda das temperaturas, e as árvores emoldurando os grafites tinham os galhos envoltos numa camada de gelo. Pareciam feitas de vidro, contra os descampados que brilhavam esbranquiçados. Tudo ao redor lembrava um set de filmagem, a visão hollywoodiana da metrópole distópica que se torna ainda mais dramática no silêncio da neve.

    GALPÕES

    Mockovciak é magro, tem cabelos compridos escondidos debaixo de um gorro vermelho, os dentes manchados pelo cigarro, unhas encardidas de graxa e o rosto, mesmo jovem, marcado por rugas prematuras. Ele nasceu em Dallas, estudou artes plásticas numa escola de elite em Nova York e, desistindo de ter três empregos para pagar o aluguel do Brooklyn, decidiu tentar a vida em Detroit. Ele mora de graça num dos galpões que um investidor nova-iorquino comprou ali. Em troca, trabalha como designer de interiores dos restaurantes desse mesmo empresário, pinta murais e também faz todo o trabalho duro nas reformas dos imóveis.

    "Todo mundo rala em Detroit. Todo mundo que eu conheço comprou uma casa toda arrebentada e precisa consertar", diz ele, em seu ateliê. "Você pode ralar pintando, fotografando, reconstruindo telhados, vendendo crack, mas todo mundo rala, porque a cidade não tem nada e precisa de tudo. Esse é o único lugar do mundo onde me pagam para fazer coisas criativas."

    No piso térreo do galpão onde mora, funciona uma loja que vende tudo o que saqueadores urbanos conseguiram resgatar das ruínas de casas abandonadas. À noite, o lugar lembra um filme de terror, com banheiras, canos, esquadrias, chapas de vidro e portas acumuladas.

    Mockovciak, que atravessa todos os dias a loja fechada para chegar a seu ateliê, virou um especialista nessas relíquias. Mesmo no escuro, só apalpando mesas, cadeiras, fechaduras e caixilhos, vai dizendo o material, a época e o provável designer das peças –"puro bronze, anos 1920, Charles e Ray Eames".

    No andar de cima, onde montou até uma quadra para jogar peteca, também está o loft que construiu para morar. Na sala, ficam dois sofás, um dos anos 1930 e outro dos anos 1950, também resgatados do lixo alheio, um aquecedor "space age" dos anos 1960, pilhas de livros, uma mesa de centro que ele pintou de preto, uma sanfona elétrica e um velho laptop ligado a caixas de som que também pareciam ter vindo direto do túnel do tempo. Nada ali parece pertencer a este século, nem mesmo Mockovciak. Vestindo roupas vintage e fumando um cigarro de maconha atrás do outro, o artista parecia um produto das ruínas de Detroit, um espécime da "retromania" contemporânea.

    Uma estante do chão ao teto divide a sala da cozinha. Mockovciak demoliu uma parede e reaproveitou sua estrutura de madeira para formar o móvel. Ali, numa espécie de museu improvisado, estavam os tesouros descobertos pelo artista em suas andanças por Detroit.

    Entre seus troféus de caça, fotografias Polaroid documentando o dia a dia de um soldado negro na Guerra do Vietnã, folhas de contato de radiografias anônimas, cheias de crânios, bacias, braços e pernas, uma coleção de dentaduras e modelos de arcadas dentárias, fotografias de bebês mortos, uma filmadora Super8, livros de arte e panfletos originais do levante racial que chacoalhou Detroit no fim dos anos 1960.

    "Em Nova York, as pessoas devoram esse tipo de coisa", diz o artista. "Todo mundo quer um loft, gosta dessa estética dura, áspera e está disposto a pagar caro por isso." De fato, olhando para o apartamento do artista esculpido dos escombros de uma fábrica, lembro de já ter visto editoriais inteiros de revistas de arquitetura e decoração que perdem para esse espaço em termos de originalidade hipster.

    CONTEMPLAÇÃO

    Em 2010, dois anos depois da quebra de uma série de bancos em Wall Street, que mergulhou a economia global na pior recessão desde os anos 1930, o jornal "The New York Times" publicou uma reportagem especial sobre Detroit, destacando o espetáculo de suas ruínas como charmosos endereços para a contemplação. O texto também apresentava livros hoje clássicos do estilo que ficou conhecido como "ruin porn", ou pornografia da ruína, entre eles "Detroit Disassembled" (Damiani, 2010), de Andrew Moore, e "The Ruins of Detroit"(Gerhagerrd Steidl, 2010), de Yves Marchand e Romain Meffre.

    Holly Brubach, a autora do artigo, teve a mesma impressão que eu ao ver as cenas documentadas por esses fotógrafos e a visão de uma Detroit invernal. "Mesmo que a primavera ainda visite Detroit –flores desabrocham em meio aos prédios lacrados–, é o inverno a estação que melhor parece casar com sua condição atual, com galhos despidos e neve corroída ornando com a desolação", escreveu. "Nada foi poupado. Casas vitorianas, igrejas, teatros, bibliotecas, piscinas, ginásios, um banco, um estádio."

    Embora artigos como o do jornal nova-iorquino e a avalanche de livros que estetizam as ruínas tentem estabelecer Detroit como a nova Berlim ou o novo Brooklyn no imaginário coletivo, essa realidade ainda está muito distante.

    © 2014 Banco de México Diego Rivera Frida Kahlo Museums Trust, Mexico, D.F./Artists Rights Society (ARS), New York
    Detalhe de "Detroit Industry", mural de Diego Rivera
    Detalhe de "Detroit Industry", mural de Diego Rivera

    "O Brooklyn estourou porque lá as pessoas todas moram no mesmo lugar, vão ao mesmo bar", diz Mockoviack. "Aqui em Detroit você precisa de um carro com tração nas quatro rodas e enfrenta pelo menos 20 minutos de estrada para encontrar qualquer pessoa. A cidade é grande demais e vazia demais para ser uma nova Berlim ou Nova York."

    Nesse sentido, a indústria automobilística parece ser hoje uma ameaça também ao futuro de Detroit, e não só um dado da história. Primeiro, levou à fuga de sua população mais afluente em direção ao subúrbio, já que os fabricantes de carros, aliados ao talento publicitário da era de ouro dos "Mad men", lideraram o lobby pela construção de estradas que atravessam os Estados Unidos. Depois, tendo forjado um tecido urbano esgarçado e esvaziado demais, acabaram criando um cenário propenso à desolação e ao abandono. Um subproduto dessa dinâmica é a transformação da cidade em terreno fértil para a estética da destruição, a distopia metropolitana tão cara ao cinema. Âncora do culto nostálgico à ruína, a cidade parece existir mais enquanto imagem do que como realidade, o suvenir de um passado idealizado.

    OBSESSÃO

    A visão de Detroit e seus escombros industriais está no centro de uma obsessão contemporânea pela ruína e pela decadência que atravessa a cultura pop, de filmes de Hollywood às telenovelas, da música techno ao funk carioca. Enquanto bastião da nostalgia, a imagem dos escombros de Detroit, mesmo se reprocessados e sampleados, é uma defesa da espetacularização do caos, da sujeira, do sexo e da glamorização de tudo que está às margens, das realidades fora da ordem estabelecida.

    Terrenos selvagens, livres das convenções sociais, as ruínas que sobrevivem na trama das cidades são espaços magnéticos, que ganham vulto crescente nas representações da cultura de massa. No fundo, é uma questão de saudade, nostalgia e utopias possíveis.

    "Essa obsessão contemporânea pelas ruínas esconde a saudade de uma era anterior, que ainda não havia perdido o poder de imaginar outros futuros. O que está em jogo é uma nostalgia da modernidade que não se atreve a dizer seu nome, depois de reconhecer as catástrofes do século 20 e os danos remanescentes. O código dessa nostalgia é a ruína", escreve Andreas Huyssen, professor da Universidade Columbia e um dos maiores estudiosos do culto atual à ruína. "A nostalgia pode ser uma utopia às avessas."

    Em "The Future of Nostalgia" (Basic Books, 2002), sua dissecação do sentimento nostálgico, tanto histórico quanto contemporâneo, Svetlana Boym também estabelece uma ligação primordial entre nostalgia e utopia.

    De acordo com a estudiosa russa, o auge do sentimento nostálgico na esfera pública coincide com o surgimento da cultura de massa na era romântica, que viveu um "boom da memória". Nesse sentido, o culto exacerbado ao passado na cultura pop indica que vivemos mais uma vez e com intensidade igual ou maior a mesma intoxicação pela ruína que afetou a sensibilidade do romantismo.

    Mas enquanto no século 19 isso se manifestou em pinturas, poemas e romances que exaltam a ruína, o presente viu o surgimento do hipster e uma idealização do passado na cultura da noite, nas artes visuais e na esfera pop, com seriados de época, festas em ruínas urbanas, bares e centros culturais construídos para lembrar zonas decadentes e obras que já nascem como ruínas "ready-made".

    Um episódio de "Portlandia", série americana que estreou em 2011 e se firmou como uma sátira ácida às excentricidades ruinófilas, trazia um comercial fictício de uma loja de materiais para artistas que vendia televisores quebrados, pedaços de bonecas e manequins. Mesmo parte da piada, todos esses objetos aparecem de fato na arte criada em Detroit, do ateliê de Mockovciak ao famoso projeto de intervenção urbana do artista Tyree Guyton que cobriu as fachadas de dois quarteirões de casas da rua Heildeberg, no leste da cidade, com coisas encontradas no lixo, entre elas televisores e bonecas.

    DISTOPIA

    Detroit hoje atrai a atenção de cineastas em busca de um pano de fundo distópico para encenar fantasias do fim do mundo. "Lost River", de Ryan Gosling, leva um conto de fadas sombrio à cidade arruinada.

    Na trama, um homem precisa mergulhar nas profundezas de uma represa para resgatar um objeto capaz de reverter a maldição que condenou a metrópole do enredo à decadência. Bones, o herói, vive num lugar cheio de incêndios e gangues, não muito distante da Detroit real. Antes do mergulho, aliás, vive de roubar canos de cobre de casas em ruínas que encontra pela cidade, algo comum na verdadeira Motor City atual.

    Em seus excessos visuais, comparados à volúpia surrealista de cineastas como David Lynch, o filme de Gosling eleva a ruinofilia a um plano lisérgico. É uma fantasia palatável à sensibilidade retrô que domina o mundo pop, indo ao encontro do culto aos escombros. Seus interiores mergulhados em luzes violetas, uma cena de baile no luxo dilapidado de um teatro abandonado, penteados e vestidos anos 1960 de suas atrizes, muros grafitados com cores alucinógenas e velhas carcaças de automóveis conversíveis deslizando pelas ruas arruinadas à moda de Havana são clichês reluzentes de um universo vendável e vintage.

    Em sintonia com o culto à sujeira e à violência, a boate em "Lost River" não tem shows de striptease. Belas mulheres ali encenam atos de automutilação, como a cena em que uma delas parece arrancar a pele do rosto. É algo que poderia ter saído da imaginação de Boris Vian, Kurt Vonnegut ou Thomas Pynchon, mas também do repertório de festas como a Voodoohop nos prédios abandonados do centro de São Paulo, onde certa vez vi um rapaz nu perfurar o rosto e outras partes do corpo com uma série de agulhas em pleno alvoroço da pista de dança.

    Nessa visão edulcorada da ruína, também parece reinar a noção de que o hedonismo levado ao extremo junta as pontas do espectro que vai da dor ao prazer.

    Esse também é o "leitmotiv" de "Amantes Eternos", filme que o cineasta Jim Jarmusch rodou em Detroit há três anos. Na história sobre Adam e Eve, um casal de vampiros com uma queda pelas casas noturnas mais esquálidas da cidade, a ruína é a embalagem plástica de uma fantasia sexy, com figurinos estonteantes e óculos escuros para encarar os neons da noite suja. As conversas do casal, aliás, são delírios retromaníacos, de lembranças de jogos de xadrez com Byron ao luxo perdido do Michigan Theater, onde "espelhos refletiam o brilho dos lustres". Eve, aliás, é capaz de datar um objeto só correndo as mãos por sua superfície, lembrando 1956, 1905, século 15, da forma que vi Joel Mockovciak fazer no porão de seu galpão.

    Menos fantasioso, "Gran Torino", filmado por Clint Eastwood na mesma cidade, usa a ruína como metáfora do mergulho cego na violência. Ao contrário da cidade despovoada de Jarmusch, a Detroit de Eastwood ferve com conflitos raciais e brigas de gangues, mas as ruas e os prédios permanecem dilapidados. O personagem principal, também vivido por Eastwood, é um operário aposentado das velhas linhas de montagem da Ford, e a Motor City decadente acentua seu quadro de desolação moral e inclinação para a violência.

    Em "8 Mile", filme estrelando o rapper Eminem lançado em 2002, a cidade foi mais do que um pano de fundo distópico. Numa terra arrasada e sem empregos, onde brigas estouram em shows furiosos de rap nas ruínas do Michigan Theater, um jovem tenta cuidar da filha pulando de trabalho em trabalho até encontrar sua vocação para a música.

    Autobiografia romanceada de Eminem, o filme defende a ideia de um renascimento cultural em meio às ruínas pós-industriais, o avesso do que foi a Motown nos tempos de pujança da cidade e um paralelo à ascensão do techno na mesma periferia de Detroit.

    Quem vai de carro rumo à cidade vindo dos subúrbios vê as placas sinalizando a 8 Mile que dá nome ao filme –a estrada que separa o centro da cidade, de maioria negra, dos subúrbios brancos. Eminem cresceu nessa zona limítrofe, entre metrópole arruinada e subúrbio complacente, não sendo nem negro nem um branco endinheirado. Seus versos refletem esse território de exceção, de fábricas abandonadas formando vazios desgrenhados.

    CIBORGUES

    Essa cidade como cenário metropolitano ameaçado pela gentrificação e pela violência tem no filme "RoboCop", de 1987, um de seus prováveis embriões. A fantasia policial de Paul Verhoeven é ambientada numa Detroit do futuro, em que a metrópole falida e dominada pelo crime privatiza sua força policial. A empresa responsável pela segurança pública também tem anseios de eliminar bairros miseráveis para construir no lugar um distrito utópico, a Delta City, mas para isso precisa aniquilar os criminosos da região.

    Tão utópico quanto os anseios da empresa, o herói da trama renasce depois de uma morte dramática. O policial Murphy, o futuro RoboCop, é assassinado por uma gangue, tendo as partes do corpo estouradas uma a uma com tiros de metralhadora. Usando depois o cérebro e as partes que sobraram do cadáver de Murphy fundidas a novas e mais resistentes partes robóticas, os empresários criam RoboCop, um soldado ciborgue.

    Esse guerreiro já nasce, aliás, como corpo em ruínas, um sobrevivente Frankenstein de uma ordem urbana fracassada que opera à base de violência, desconhecendo diálogo e razão. Debaixo de sua superfície arrasa-quarteirão, "RoboCop" parece afirmar que o fracasso da cidade oficial engendra seres feéricos, com o mesmo pendor para a crueldade extrema e a busca irrefreável do prazer –Eros e Tânatos juntos numa máquina que ameaça entrar em curto-circuito.

    Meia década antes de "RoboCop" chegar aos cinemas, "Blade Runner", de Ridley Scott, já recorria à imagem de ciborgues como os habitantes naturais das cidades distópicas. Seus homens-máquina dependem de fotografias para sustentar seu direito a sobreviver num lugar reservado aos humanos. A prova da autenticidade de sua existência está lastreada na fragilidade de uma imagem, evocando talvez o papel da nostalgia nos tempos atuais. Nossa retromania contemporânea, de filtros no Instagram e modas vintage, atesta o mesmo entorpecimento dos sentidos e nos aproxima de um corpo ciborgue que só poderia se desprender das amarras mecânicas, sociais e econômicas em espaços arruinados e selvagens.

    Nesse sentido, a metrópole robótica e protética, enquanto antítese da cidade selvagem em ruínas, privilegia a artificialidade, o humano como engodo e superfície alisada. Na pele sem rugas dos replicantes ou na força metálica do RoboCop, no entanto, está a origem paradoxal da ruína. A cidade mercantilizada, vigiada e codificada está fadada a cair em desgraça, e o que sobrevive é o delírio sedutor de suas máquinas sujas e festas em escombros. São todas cidades melancólicas mergulhadas no brilho intenso e irregular dos letreiros de neon e das grandes telas de plasma.

    SILAS MARTÍ, 31, repórter da Folha, estudou as ruínas de Detroit quando bolsista da Knight-Wallace Fellowship, da Universidade de Michigan, entre 2015 e 2016.

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024