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    Leia a primeira seção de "Briggflatts", de Basil Bunting

    BASIL BUNTING
    tradução FELIPE FORTUNA
    ilustração DEBORAH PAIVA

    01/05/2016 02h06

    SOBRE O TEXTO O trecho aqui reproduzido é a primeira seção de "Briggflatts". Publicado há 50 anos, este longo poema narrativo de fundo autobiográfico terá sua primeira tradução para o português pela Topbooks, no fim de maio.

    Foto Marcus Leoni/Folhapress

    Gaba-te, doce touro tenor,

    acompanha o madrigal do Rawthey,

    cada pedra seu tom

    na primavera tardia dos cerros.

    Dança na ponta dos cascos, touro,

    preto contra as flores alvas.

    Ridículo e adorável

    caça sombras saltitantes

    de manhã ao meio-dia.

    Flores alvas no couro do touro

    e por todo o vale

    flores alvas ladrilham as valas,

    por onde a cobra-de-vidro resvala.

    Um pedreiro bate seu malho

    justo ao piar da calandra,

    escutando enquanto o mármore descansa,

    impõe sua lei

    no talho de uma letra,

    os dedos checando,

    até que a pedra soletra um nome

    nomeando ninguém,

    um homem abolido.

    Dolorosa calandra, lutando para voar!

    O solene malho diz:

    Na tumba, defunto,

    ele jaz. Nós juntos.

    A ferrugem fura a lâmina,

    o trigo fica no excremento

    tremendo. O Rawthey treme.

    A língua tropeça, orelhas erram

    temendo a primavera.

    Raspa a pedra com areia,

    arenito molhado limando

    toda a aspereza. Os dedos

    doem na pedra raspada.

    O pedreiro diz: Rochas

    por acaso surgem.

    Ninguém aqui tranca a porta,

    o amor rasga e corta.

    Pedra branda como a pele,

    fria como os mortos que vão

    numa carroça noturna.

    A lua pousa no cerro

    mas logo choverá.

    Sob sacas na pedra

    duas crianças deitam,

    ouvem o cavalo mijar,

    o pedreiro silvar,

    arreio chiar na trave,

    aro no eixo ranger,

    roda sulcar o chão,

    esmagado grão.

    Meia com meia, jérsei com jérsei,

    cabeça sobre um braço duro,

    eles se beijam sob a chuva,

    marcados pela cama de mármore.

    Em Garsdale, alvorada;

    em Hawes, chá da lata.

    A chuva para, as sacas

    fumegam ao sol, eles sentam.

    Bigode de fio de cobre,

    olhos de mar refletido

    e cantochão suave do Báltico

    declaram: Perto dessas rochas

    homens mataram Bloodaxe.

    Sangue feroz pulsa em sua língua,

    magras palavras.

    Crânios ceifados para capacetes de aço

    amontoam-se em Stainmore.

    Seus riachos bordejam a rocha,

    assobiam rente ao musgo.

    A carroça atolada empurra o cavalo para baixo.

    Nesse ar suave

    eles andam e cantam,

    lançando a canção livremente no ar.

    Todos os sons se calam,

    balido na encosta,

    se esconde a tarambola.

    O pulso dela seus passos,

    palma contra palma,

    até encher um fosso,

    pedra branca como queijo

    zomba no vale.

    Madeira nodosa, dura de rachar,

    arde até cinzas virar;

    odor das maçãs de outubro.

    A estrada de novo,

    num trote.

    Mais úmidos, mornos, veem

    o pedreiro a meditar

    e a nomear e datar.

    A chuva lava o caminho,

    o touro escorre e lamenta.

    Azedo mingau de centeio sai do forno

    com creme e chá preto,

    carne, crosta e casca.

    Os pais dela na cama

    as crianças secam as roupas.

    Ele desatou o laço

    das calças de lã listada dela

    frente ao fogão. Nu

    sobre o tapete de trapo

    seus dedos somem

    na palha de sua casa de homem.

    Vozes gentis generosas tecem

    sobre a noite nua

    palavras que confirmam e deleitam

    até a alvorada da ave.

    Água de chuva do tonel

    ela traz e espalha

    para limpá-lo palmo a palmo

    beijando os seixos.

    Brilhante cobra-de-vidro parte da maravilha.

    O pedreiro se agita:

    Palavras!

    Penas são muito leves.

    Pega um cinzel e escreve.

    Cada nascer um crime,

    cada sentença a vida.

    Limpa de mofo de traças

    a bola rolaria direito?

    Nenhuma esperança em voltar.

    Cães vacilam e se perdem,

    a vergonha dobra a pena.

    O amor morto não sangra nem sufoca

    mas sacode o ombro do artesão.

    O que ele pode, mudado, dizer

    a ela, mudada, talvez morta?

    O deleite definha. A culpa

    ainda preocupa.

    Palavras breves são duras de achar,

    formas gravadas e descartadas;

    Bloodaxe, rei de York,

    rei de Dublin, rei de Orkney.

    Não note as lágrimas;

    estampa a pedra erguida

    sobre o amor deixado, a menos

    que um êxtase insofrível impeça

    fugir para Stainmore,

    para seguir

    calandra, malho,

    riachos, manadas

    e do machado pancadas.

    A bosta não estragará o mosaico

    da cobra-de-vidro. A calandra sufocada

    cai no ninho cheio de lixo;

    o Rawthey truculento, sujo.

    Esmagadas no malho, as flores alvas caíram,

    névoa nos cerros. Réu da primavera

    e ao fim da primavera

    os anos amputados logo doem

    pois o touro vira bife, o amor uma conveniência.

    É mais fácil morrer do que lembrar.

    Nome e data martelados

    na mole ardósia rachados

    em poucos meses apagados.

    BASIL BUNTING (1900-85) poeta inglês.

    FELIPE FORTUNA, 53, é poeta, ensaísta e diplomata. Publicou recentemente "A Mesma Coisa" e "O Mundo à Solta", ambos de poemas, pela Topbooks.

    DEBORAH PAIVA, 65, é artista plástica.

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