• Ilustríssima

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    De leoa a passarinho

    BEATRIZ SAYAD
    DANI BARROS

    01/05/2016 02h05

    Nova Iguaçu, 2011

    Foi no meio do Carnaval de 2011. Demoramos para tomar a decisão. Não por falta de vontade, mas por receio, medo de incomodar, não sabíamos como seríamos recebidas. Tínhamos o Marcos Prado como padrinho, abrindo todas as portas de maneira generosa.

    E tínhamos ao nosso lado a Barbara Copque, que, com sua delicadeza, poderia fotografar esse encontro tão esperado, se fosse possível, se fosse a vontade de todos. Partimos no carro dela e, no longo caminho que separa a zona sul carioca da rua dos Narcisos nos Prados Verdes em Nova Iguaçu, conversávamos sobre qualquer coisa, mas os corações batiam um pouco mais rápido do que o normal, afinal estávamos para conhecer, pessoalmente, a nossa mulher maravilha, a profeta do lixão.

    Foi difícil chegar à casa. Mas chegamos. "Bem-vindos a este hospício, aqui somos todos loucos uns pelos outros" estava escrito na plaquinha na entrada. Fomos recebidas por Ernane, filho da Estamira, e sua mulher, Adriana.

    Falamos do Marcos, do filme, eles mostraram a casa em construção, contaram como era antes, como estava ficando. Foram carinhosos e atenciosos, olharam nos nossos olhos e entendemos que o que se criava ali era cumplicidade para a vida. Estávamos ali não para pedir autorização para levar a voz da Estamira para o teatro –essa autorização estava dada.

    Fomos pedir a bênção, fomos criar os laços sem os quais não poderíamos continuar. Fomos entender o que isso poderia significar para eles, para nós, para ouvir histórias que não estavam no filme, fomos com a certeza de que tínhamos de ir.

    Estamira estava deitada na sua cama. A leoa do filme estava então no estado passarinho. Levamos muitos presentes, pensando sempre num jeito de tocá-la, de dar conforto, de dar carinho. Levamos travesseiro, mantinha, palmito, muito palmito, que ela adorava, levamos óleo de lavanda.

    Dani se aproximou, sentou na beira da cama. Contou para ela da emoção de vê-la no filme, da importância das coisas que ela dizia, da vontade de montar uma peça. Ela era um pouco criança de novo, mas escutava tudo. Ela era ela e muitas outras pessoas importantes das nossas vidas (uma porção delas), o que nos dava um nó na garganta, pois encontra-la ali, pegar na sua mão, fazer cafuné na sua testa, eram gestos conhecidos, era como reencontrar pessoas queridas muito próximas, mas que já não estavam mais conosco.

    Barbara Copque
    No alto, Beatriz Sayad, abaixo, Dani Barros, e Estamira Gomes de Souza, em visita no verão de 2011
    No alto, Beatriz Sayad, abaixo, Dani Barros, e Estamira Gomes de Souza, em visita no verão de 2011

    Nos sentíamos unidas a ela nesse lugar muito simples, não verbal, do afeto e de uma compreensão de que não sabíamos muito o que dizer, mas que isso não diminuía nossa vontade de estar ali.

    E nessa conversa, a Dani falou com toda clareza: "Vou fazer você no teatro" e citou um trecho do filme imitando direitinho o jeito dela falar "a culpa é do hipócrita mentiroso esperto ao contrário...". Ela olhou e riu. Começou a falar. Disse duas frases que viraram o final do espetáculo. Selou nosso encontro.

    Depois houve outras visitas, na sua casa ainda, no aniversário dela de 70 anos. E no hospital, quando ela já estava para partir para o além do além, para virar invisível. A relação com seus filhos se estreitou. A maior emoção para nós foi tê-los na plateia, não só de "Estamira "" Beira do Mundo", mas também de outros espetáculos que fizemos depois.

    Estamira deixou muitas heranças para todos nós, tão ricas. Deixou sua sabedoria, sua lucidez, sua "inlucidez", deixou sua missão. Deixou a dignidade de todas as suas escolhas. E os frutos que elas trouxeram. Ela bem disse: "E quando desencarnar, vou fazer muito pior". No final da peça, a Maria Rita disse: "Às vezes eu fico pensando se a minha mãe era realmente louca".

    Nota: A peça "Estamira - Beira do Mundo" está em cartaz no Teatro Poeira, no Rio, até 29/5.

    BEATRIZ SAYAD, 43, autora, atriz e diretora, é formada em letras pela PUC - Rio.

    DANI BARROS, 43, é atriz, vencedora do Shell de melhor atriz por "Estamira - Beira do Mundo".

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