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    A aventura da ativista urbana Jane Jacobs

    RAUL JUSTE LORES
    ilustração CARLA CAFFÉ

    08/05/2016 02h06

    RESUMO No centenário de seu nascimento, a norte-americana Jane Jacobs permanece como uma referência do ativismo urbano. Ela ganhou projeção em suas batalhas contra a descaracterização do Village, em Nova York, quando impediu a construção de vias expressas e defendeu a convivência de moradia e comércio no bairro.

    Carla Caffé

    Terminou em tumulto uma audiência pública sobre um megaviaduto que cortaria o sul da ilha de Manhattan. Naquele abril de 1968, Nova York estava prestes a ganhar seu primeiro "minhocão", com 10 pistas para carros, que destruiria cerca de 450 prédios nos então decadentes bairros de Soho, Village, Little Italy e Lower East Side.

    Mas um punhado de moradores se opunha ao elevado. Entre eles, Jane Jacobs, uma profissional de rebeliões urbanas. Ela e outros manifestantes arrancaram as atas da audiência com funcionários da prefeitura e do governo estadual foram das mãos da taquígrafa que registrava tudo e fizeram papel picado."Não houve audiência, não há provas, acabamos com esta farsa", disse Jacobs ao microfone. "Sem audiência pública, não há via expressa." As autoridades foram surpreendidas. Elas tratavam como mera formalidade a sessão para ouvir os moradores.

    O Instituto Americano de Arquitetos, a Associação de Planejamento Regional, o mercado imobiliário e a indústria automobilística apoiavam a obra. O projeto era acalentado por Robert Moses, o mais poderoso planejador urbano de Nova York, que por 34 anos acumulou cargos e poder para decidir o que se construía ou não na cidade.

    Não contavam com a balbúrdia orquestrada por Jacobs, que foi presa acusada de "incitar distúrbios e obstruir a administração pública". Repórteres e fotógrafos já a esperavam ao chegar na delegacia, exatamente como ela queria –seus protestos tinham apelo midiático e fotogênico, muito antes de profissionais de relações públicas padronizarem essas táticas.

    Raro caso de mulher a colocar de cabeça para baixo as pranchetas dos planejadores nos anos 1950 e 1960, Jacobs (1916-2006) foi a mais influente urbanista norte-americana do século passado –mesmo sem ter estudado arquitetura e urbanismo (ela, aliás, recusaria títulos "honoris causa").

    As comemorações de seu centenário, que ocorrem neste mês em diversas cidades pelo mundo, com palestras e caminhadas por centros históricos, celebram sua defesa do pedestre contra o poder do carro, de calçadas e térreos vibrantes, de bairros de população densa, que misturem usos residenciais e comerciais, e da importância da participação da comunidade.

    Suas teorias são explicadas com graça e sagacidade e sem jargão em seu primeiro livro, "The Death and Life of Great American Cities", de 1961 –aqui, "Morte e Vida das Grandes Cidades" (WMF).

    A obra se tornou um libelo contra as "cidades-jardins" do início do século 20, que inspiraram bairros nobres de São Paulo, do Pacaembu aos Jardins ("subúrbios são parasitários, sem vida, sem mistura, tudo é feito de carro", escreveu) e contra os ensinamentos do arquiteto Le Corbusier, que imaginava prédios isolados em quadras sem calçadas, conectados por vias expressas, e bairros divididos em setores definidos por seus usos (ela certamente não aprovaria o urbanismo de Brasília). "Parecem cemitérios arrumadinhos."

    ÓPERA

    Ao longo das últimas cinco décadas, mais do que autora de teorias influentes, Jacobs virou sinônimo de ativismo urbano, aspecto que tem sido mais destacado nos últimos anos e nas atuais comemorações, que incluem até uma ópera sobre suas disputas contra Robert Moses ("A Marvelous Order", uma ordem maravilhosa, que estreou em março passado).

    "Ela inventou táticas de mobilização que seriam imitadas em metrópoles ao redor do mundo", descreve Mary Rowe, ex-vice- presidente da MAS (Municipal Art Society, a Sociedade Municipal de Artes de Nova York), que trabalhou com Jacobs no Canadá nos anos 1990. "Ela não era uma intelectual de escritório. Sempre preferiu observar e agir na rua."

    Sua primeira batalha contra o poder do automóvel de destruir coisas belas começou em 1955, ao receber um panfleto. No texto, o comitê para salvar o bairro nova-iorquino do Village se manifestava contra a criação de uma via expressa de quatro pistas a partir da Quinta Avenida, que cortaria a Washington Square, praça histórica hoje cercada por prédios da New York University.

    O projeto era iniciativa do já poderoso Moses, que defendia a modernização de Nova York por meio de vias expressas e obras para reduzir congestionamentos. Jacobs se apresentou aos organizadores e mudou a estratégia do grupo. Colocou seus filhos pequenos para coletar assinaturas de porta em porta e distribuir panfletos com os dizeres "salve o nosso parque" contra a via expressa. "Fotógrafos e editores adoram crianças", justificava a mãe marqueteira. Para zombar do apetite que têm os políticos por inaugurar novas obras e fazer cerimônias de "cortar a fita", colocou seus filhos para "amarrar a fita" na Washington Square.

    Indo de um lado para o outro em sua bicicleta, aproximou-se de repórteres de publicações variadas, a fim de garantir a repercussão de suas ações. Fez vários amigos entre os jornalistas do "Village Voice", que acabava de ser criado, entre outros, pelo escritor Norman Mailer, seu vizinho de bairro.

    "Por contrariar lobbies poderosos da cidade, Jane Jacobs dedicava muita energia à conquista de aliados. Visitava igrejas, templos evangélicos e sinagogas para pedir o apoio de líderes religiosos", conta Anthony Flint, autor de uma biografia da ativista, "Wrestling with Moses" [Random House, 231 págs., R$ 55,34; e-book Kindle, R$ 36,48, na Amazon.com.br] (lutando com Moses), publicada em 2009.

    Aproximou-se de vizinhos influentes do bairro, como Eleanor Roosevelt, ex-primeira-dama americana e ícone feminista, e de jovens então meio desconhecidos, mas muito promissores, como o músico Bob Dylan e o líder comunitário Ed Koch, que décadas depois seria prefeito de Nova York por três mandatos. Com Dylan, compôs uma canção de protesto, "Listen, Robert Moses" (escute, Robert Moses), entoada nas manifestações –onde, porém, o melhor do compositor ainda não se manifestava.

    Em uma assembleia para decidir o destino da Washington Square, na única vez que Jacobs e Moses se viram de fato, o poderoso burocrata perdeu a cabeça com os discursos ferinos da ativista. "Todo mundo quer esta via expressa. Só um punhado de mães é contra".

    Os diversos biógrafos de Jacobs contam que ela soube aproveitar o reconhecimento travestido de desprezo da fala de Moses, e as mães acabaram vencendo a parada. Ela conseguiu salvar a praça de seus filhos e virar um nome forte, requisitado para variadas batalhas urbanas, em um tempo de decisões verticais descendentes.

    Em duas conferências, na Universidade da Pensilvânia e em Harvard, entre 1956 e 1957, durante as quais foi a única mulher a falar, cercada por pesos-pesados da arquitetura (Louis Kahn, I. M. Pei, Josep Lluís Sert, o crítico Lewis Mumford), criticou a visão dominante entre os arquitetos de então, que falavam em revitalizar bairros colocando o passado abaixo.

    Jacobs logo ganharia uma bolsa da Fundação Rockefeller, permitindo-lhe escrever seu "Morte e Vida", livro que popularizaria diversas expressões entre urbanistas. Para criar um espaço seguro, ela argumentava, eram necessários "olhos na rua", que só seriam possíveis com comércios e janelas virados para a calçada, térreos vivos, bem diferentes dos conjuntos habitacionais modernos que Moses e Le Corbusier adoravam instalar no meio do terreno, cercados de jardins e afastados dos vizinhos.

    Ao descrever sua saída de casa pela manhã para levar o lixo, ela descreve os "rituais" que via no seu Village: o dono da lavanderia abrindo suas portas, o barbeiro, a abertura da quitanda, cadeiras do lado de fora, pais chamando a atenção de filhos indo para escola. Esse "intrincado balé na calçada" só seria possível em quarteirões curtos, que estimulassem o pedestre a sair mais a pé e que misturassem moradia, comércio e trabalho. Algo que tinha crescido organicamente no Village e em bairros vizinhos e que estava desaparecendo nos grandes conjuntos habitacionais erguidos no Harlem e no Bronx que ela pesquisou.

    CELEBRIDADE

    Entre o sucesso do livro e o do resgate da Washington Square, Jacobs tornou-se uma celebridade. Foi fotografada por Diane Arbus para um editorial da revista "Esquire" e chamada de "Rainha Jane" pela revista "Vogue". Seu marido, o arquiteto Bob Jacobs, especialista em projetar hospitais, era seu "técnico e chefe de torcida ao mesmo tempo", descrevia, dizendo que havia aprendido muito de arquitetura com ele.

    Por essa época, conseguiu parar o projeto de demolição de 14 quarteirões do West Village –a prefeitura considerava a área de cortiços "insalubre" e queria substitui-los por torres de apartamentos. Ela até coreografou um enterro simbólico do bairro, para delícia das câmeras de TV.

    Editoria de Arte/Folhapress

    Jacobs acabou convencendo o prefeito a fazer habitação econômica "com olhos na rua": 42 prédios de cinco andares, de tijolinhos, sem elevador ou qualquer infraestrutura (ou luxo) extra, que mantivessem o espírito popular da área. Participou da cooperativa que contratou os arquitetos, negociou com os técnicos municipais e calculou os custos. Foram batizados de West Village Houses, e somavam 420 apartamentos.

    Nessa única participação direta com a administração pública, ela não foi muito bem-sucedida. O projeto atrasou anos, estourou o orçamento várias vezes, e os predinhos, cuja "escala humana" é elogiada por moradores, até hoje dependem de subsídios da prefeitura para sua manutenção –ainda que estejam localizados numa região atualmente bastante cobiçada.

    Anos depois, ela criticaria o resultado arquitetônico, dizendo que a prefeitura tinha sacrificado o projeto. De briga em briga, o diretor do Conselho de Planejamento Urbano e Habitação de Nova York, Roger Starr, declarou: "Que querida e doce personagem ela não é!".

    ESTAÇÃO

    Depois de perder a disputa para preservar a histórica e monumental estação ferroviária Penn Station, demolida em 1963, Jacobs se dedicou à campanha contra o elevado que mutilaria seu bairro. Desde 1962, presidia o comitê contra o viaduto, chamado de Lower Manhattan Express (Expresso do Baixo Manhattan).

    A luta de vários anos desembocaria na audiência em que protagonizou aquele barraco ensaiado. A urbanista chegou pontualmente atrasada, sentou-se na primeira fila e começou a se queixar em voz alta: "Marcaram às nove da noite para que mães não pudessem vir?". Pouco depois, subiu ao palco sem ser chamada. Disse que o microfone estava posicionado para que os moradores se dirigissem a si próprios. As poucas autoridades, sentadas a uma mesa atrás de quem discursava, nem precisavam encarar os representantes comunitários. Falou que a sessão era "pró-forma", um "embuste".

    "Esta cidade é um manicômio maluco, comandado pelos pacientes mais doidos", discursou. E pediu que cerca de 50 colegas sentados na plateia subissem ao palco para fazer uma marcha pacífica contra aquela audiência. "Vamos mandar uma mensagem pelos garotos de recados aqui", disse.

    "Saia do palco agora", ordenou John Toth, funcionário do Departamento de Transportes de Nova York que comandava a reunião, sentindo-se provocado. "Não estou falando com o senhor", retrucou Jacobs. "Estamos falando para nós mesmos a noite inteira."

    Quando os manifestantes fizeram confete das notas da taquígrafa, Toth ordenou: "Prendam essa mulher". Jacobs foi proibida de participar de futuras audiências. Ficou presa por menos de 24 horas, período em que aproveitou para mandar uma cartinha sapeca à mãe. "Lá estou eu presa de novo, mãe! Temo que você vá ter uma filha engaiolada de novo por conduta desordeira. Desejo que você não pense mal de mim!"

    Meses antes, ela tinha sido presa por protestar contra o alistamento obrigatório para a Guerra do Vietnã. Foi para o xadrez com a ensaísta Susan Sontag e o poeta Allan Ginsberg. Dividiu cela com a primeira e aproveitaram para discutir ativismo público.

    A segunda prisão de Jacobs, então com 52 anos de idade, virou capa em quase todos os jornais da cidade. O prefeito se disse envergonhado, intelectuais e jovens políticos se manifestaram a seu favor, e imediatamente foi criado um "fundo para defesa legal de Jane Jacobs", com festas e eventos para arrecadar dinheiro para pagar advogados. Nem foi preciso. Em poucos meses, o projeto do viaduto seria discretamente engavetado. Mas Jacobs não estaria mais em Nova York para rir por último.

    No final de 1968, quando seu marido foi convidado a projetar um hospital em Toronto, no Canadá, o casal decidiu que a família inteira deveria se mudar para lá. Richard Nixon era o candidato favorito à Presidência, e diversos intelectuais já naquela época, quando temiam uma vitória republicana, diziam que "se mudariam para o Canadá". Jacobs tinha uma razão mais íntima: seus filhos já estavam em idade próxima à do alistamento militar. O marido dizia "preferir os filhos presos a combatendo no Vietnã".

    Em Toronto, Jacobs rapidamente repetiu a fama angariada em Nova York. Organizou manifestações contra outro minhocão, o Spadina (venceu essa parada), e sugeriu a militantes locais que derrubassem os tapumes da demolição de um prédio histórico. "Pela lei, demolição não acontece sem tapumes. Abaixo os tapumes", recomendou. Recebeu a cidadania canadense em 1974. Ainda entrou em campanhas para descentralização do poder no seu país adotivo, com mais orçamento e autonomia para os prefeitos, e para mudanças no zoneamento de Toronto.

    AURA

    Desde que morreu, em abril de 2006, foram criados em associação a seu nome prêmios, medalhas, seminários e as tais caminhadas, as Jane's Walks, que acontecem em diferentes cidades. Apesar da aura de mito, suas ideias já são reavaliadas e criticadas.

    "Muita gente hoje sente falta de planejadores urbanos corajosos e que façam projetos saírem do papel como Robert Moses conseguiu por décadas", diz Flint. "Por outro lado, muitos nesses bairros históricos impedem toda e qualquer obra, qualquer verticalização, o que tem encarecido lugares antes diversos." O Soho que ela protegeu virou um shopping ao ar livre, com hordas de turistas, como lamentam, não sem certo esnobismo, seus atuais detratores.

    Apesar de ter escrito nos anos 90 sobre o "excesso de sucesso" de alguns bairros, ela não viveu para dar respostas à intensa gentrificação –palavrão que batiza o encarecimento de áreas graças à atração de novos moradores de maior renda– do seu Village.

    Nos últimos textos e entrevistas, dizia que deveríamos estudar por que tanta gente vai ao Walmart e frequenta shopping centers em vez de demonizá-los. Dizia que moradia econômica deveria ser construída nos "pequenos terrenos que não interessam aos grandes incorporadores de bolsos cheios". Recusava ser inserida na esquerda ou na direita do debate político. Era criticada pela direita por ser contra grandes empreendimentos imobiliários, arranha-céus e shoppings, e pela esquerda, pela sua defesa do mercado e por ser descrente de "grandes organizações, governos, burocracias e excesso de regulamentações".

    As ideias de Jacobs demoraram bastante para se disseminar no Brasil. Seu mais famoso livro só ganhou uma versão nacional em 2000, quase 40 anos depois de publicado. A propósito: a construção do Minhocão de São Paulo foi aprovada meses depois de Jacobs ser presa por tumultuar e acabar enterrando o elevado nova-iorquino.

    "Jane Jacobs vs Robert Moses: Urban Fight of the Century"

    Jane Jacobs x Robert Moses: A luta urbana do século

    RAUL JUSTE LORES, 40, é repórter especial da Folha.

    CARLA CAFFÉ, 50, arquiteta, trabalha com design gráfico, arte, teatro e cinema.

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