Ah! as convergências! O teatro, por ser uma arte coletiva, é um terreno fértil para elas. Momentos de convergência geralmente são contundentes e intensos. Às vezes são felizes. Outras não.
Em 2000, minha companheira, então grávida, me mostrou "O Conto da Ilha Desconhecida", de José Saramago.
Li esse pequeno grande livro naquele mesmo dia e, como por encanto, visualizei/imaginei/senti toda a encenação de um espetáculo teatral para crianças.
A cidadela, o castelo, as portas, a população, o porto e o barco; a movimentação dos atores, a dinâmica da narrativa, tudo se materializava em minha mente com muita clareza. Inspiração e êxtase se fundiam em meu corpo.
Àquela altura, acabava de criar, junto de atores que iniciavam sua carreira profissional, a Cia. Elevador de Teatro Panorâmico, e nos colocáramos como uma de nossas metas a criação de um espetáculo infantil. É claro que propus a eles que montássemos o conto do Saramago. Outras ótimas ideias, outros temas, outros livros apareceram e, depois de avaliações e debates, Saramago venceu.
Optamos por assumir o risco de trazer aos palcos um texto não dramatúrgico de um autor consagrado mundialmente, porém direcionado às crianças. Um risco enorme para uma grupo de teatro que dava seus primeiros passos. Se errássemos a mão, poderíamos ser tachados de pretensiosos e inconsequentes.
Escrevemos rapidamente um projeto, pois havia um edital aberto para temporada na sala pequena do Teatro Sérgio Cardoso, e fomos aprovados. Mas, quando soubemos, só tínhamos um mês para realizar o espetáculo. Não tínhamos verba para produção. Não tínhamos nenhum apoio cultural. Tínhamos o desejo e a vontade imperiosa de fazer teatro: românticos e pertinazes. Tínhamos um belo tema nas mãos e queríamos trazê-lo a público do nosso jeito: alegres e metidos!
Desde o início, trazia a certeza de que a nossa adaptação não facilitaria a linguagem de Saramago visando o universo infantil. Sentia que deveríamos preservar a linguagem e as construções filosóficas ricamente por ele sintetizadas. Não as "traduziríamos" previamente às crianças.
Já estávamos em 2001 e, em meio, a todo processo de produção nasce nossa filha Chiara. Em três semanas, mão no bolso-dinheiro na mão, empenho e criação, estreia "A Ilha Desconhecida". Sem nenhuma divulgação, formadores de opinião e críticos compareceram no primeiro fim de semana e já na semana seguinte começam a surgir críticas e comentários extremamente favoráveis à montagem.
A primeira temporada se encerra. Optamos por assumir outro risco: resolvemos alugar a Sala Assobradado do TBC acreditando no dinheiro da bilheteria. E surpreendentemente tínhamos casa cheia em uma sala com o dobro de lugares. Mas outra agradável surpresa nos aguardava.
Soubemos que Saramago estaria em São Paulo. Entramos em contato com ele e o convidamos, temerosos e ao mesmo tempo destemidos, para assistir ao espetáculo. Ele, muito cortês, aceitou.
Fomos buscá-lo no hotel. Com Chiara no colo, vejo Saramago sair do elevador e, a passos largos, se aproximar de nós. Um "olá" meio sem jeito e, de repente, eis que a bebê, com sua mãozinha de sete meses, aperta o nariz de Saramago. Pronto. Sorrisos. Derretimento, a sem-gracice se foi. O afeto venceu. Como na ilha.
Chegamos ao TBC. A conversa fluía solta, os atores se preparavam, comoção geral, coração na boca. Saramago nos assistiria.
Acervo pessoal | ||
Marcelo Lazzaratto (centro, de laranja e cabelo comprido) e o elenco da Cia. Elevador de Teatro Panorâmico na peça "A Ilha Desconhecida", com José Saramago (camisa branca) no camarim do TBC, em SP, em 2001 |
Na plateia, sentado a seu lado, mal me lembro do que pensava, do que sentia. Estava em pura suspensão e suava em bicas.
Durante a peça, fazia força para perceber o que ele estava achando, mas não queria dar na cara.
A peça termina. No meio do aplauso, Saramago de pé, levanta os braços e pede um instante de silêncio. Todos se sentam. Grande expectativa, os atores no palco, eu ao lado dele, o público calado e ele no meio da plateia, diz a todos: "Penso que, por ter assistido a essa pequena maravilha, valeu a pena ter escrito o conto".
MARCELO LAZZARATTO, 49, é diretor artístico da Cia. Elevador de Teatro Panorâmico e professor de artes cênicas da Unicamp. Dirige a peça "Sala dos Professores", em cartaz no Espaço Elevador, em São Paulo, até 29/5.