"Ó lá, Beni, o voyeurismo guiado do West Village chegou", digo rindo ao meu filho, indicando desde a nossa janela mais um grupinho diante do prédio da namorada de Sid Vicious, morto aos 21 por overdose de heroína, em 1979. Benjamin, 14, também toca baixo, mas não associa o punk dos seus acordes aos Sex Pistols. Nem a Prince, outro ícone do rock –cuja morte, no mês passado, pode estar associada às altas doses de Percocet, analgésico opiáceo, primo da heroína, encontradas pela autópsia.
Nada como a tragédia dos outros, penso, de olho no meu filho. Na época da morte de Vicious, a droga estava ligada aos negros e à violência nas ruas; hoje quem a consome, mais e mais, é a classe média jovem branca, com acesso a receitas de opioides. Muitos adolescentes iniciam o uso pelos analgésicos nas gavetas dos pais.
De acordo com o Nida (instituto nacional dos EUA para o abuso de drogas), o corpo desenvolve tolerância a um fármaco opiáceo e precisa de maiores quantidades para o mesmo efeito, o que pode levar à dependência da heroína por ser da "mesma família". Além disso, a heroína é barata (um papelote custa entre US$7 e US$10) e não precisa de prescrição médica.
Em 2014, segundo relatório dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC, na sigla em inglês), foram 47.055 mortes por overdose de drogas, o maior índice da história. Desse número, 60% estava relacionado a opiáceos (analgésico, heroína ou a combinação dos dois) –78 mortes ao dia.
NOVA TÁTICA
A percepção da crise é geral, o que tem trazido um enfoque mais humanista para a epidemia no país. A prevenção e a reabilitação são prioridades, algo impensável nos anos 70, quando o usuário da droga terminava na cadeia.
No mês passado o presidente Barack Obama pediu ao Congresso que aprove um orçamento de US$1,1 bilhão para prevenção e tratamento do uso de opiáceos. A ideia é treinar médicos para alternativas não aditivas e limitar receitas –em 2012 foram 259 milhões, quase uma por habitante do país.
Na mesma semana, o governador de Nova York, Andrew Cuomo, anunciou US$ 166 milhões para os mesmos fins. Neste ano, o Estado se tornou pioneiro no país no envio eletrônico de receitas –do médico diretamente à farmácia– e criou um banco de dados compartilhado com o Estado de Nova Jersey para a emissão de prescrições médicas.
Em Ithaca, ao norte do Estado, o prefeito, Svante Myrick, propôs o primeiro posto de saúde do país para que usuários de heroína apliquem a droga sob supervisão clínica, algo feito na Europa e no Canadá desde os anos 1980. A ideia busca evitar a reutilização de seringas e as mortes por overdose, além de reduzir doenças infecciosas.
NARCAN
Em casos de overdose, as polícias de Nova York e de Nova Jersey têm administrado naloxona, droga conhecida como Narcan que reverte o efeito dos opioides. É comum que se "salve a mesma vida" cinco, dez vezes, talvez porque o usuário não seja criminalizado ao pedir ajuda, nem tenha que se comprometer com reabilitação.
Em Nova York, a venda do antídoto da heroína foi aprovada em fevereiro em mais de mil farmácias, sem prescrição médica. Bill de Blasio, prefeito da cidade, justificou a medida como preventiva.
SINTÉTICOS
À heroína junta-se uma infinidade de opiáceos sintéticos que chegam a ser de 30 a 50 vezes mais potentes que ela, como o Fentanyl, prescrito para dores intensas. De acordo com a DEA (Drug Enforcement Administration), a agência federal antidrogas dos EUA, muitas overdoses têm sido atribuídas ao Fentanyl, que, como a heroína, vem do México.
Sua apreensão saltou de meio quilo em 2013 para 21 quilos dois anos depois; só nos primeiros meses de 2016, já foram 25 quilos. Bridget Brennan, promotora especial para narcóticos da cidade, diz que é necessária uma ação mais enérgica. "Para prevenir tem que limitar a quantidade", diz ela. "Dispor de mais leitos para o tratamento não resolve o problema."
Esse salto exponencial dos sintéticos e das overdoses me leva de volta ao grupinho na rua querendo absorver um pouco do hype visceral de Vicious. A cena escapa do contexto anárquico de uma época, e sua morte não deixa de ser mais uma história trágica de um junkie de 21 anos.
LUCRECIA ZAPPI, 44, jornalista e escritora, é autora de "Onça Preta" (Benvirá).