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    Uma amizade transformadora

    LILIANE REBELO

    22/05/2016 02h05

    Edimburgo, 2013

    Já era o segundo dia de encontros no café do lendário Traverse Theatre, em Edimburgo. Em pleno inverno escocês, eu acompanhava uma visita de pesquisa junto à dramaturga e jornalista Marici Salomão, coordenadora do Núcleo de Dramaturgia Sesi-British Council, vencedor da categoria inovação do Prêmio Shell em 2016. O projeto se baseia na troca de processos e modelos entre dramaturgos brasileiros e britânicos.

    Estávamos em busca de diferentes vozes que fazem da Escócia um fértil celeiro do fazer teatral para inspirar novas metodologias, trocas e temas no processo de formação do projeto. Grandes nomes da cena textual local, como Zinnie Harris, Gregory Burke e David Greig, passaram pela nossa pequena mesa onde encontrávamos mais de 12 autores num só dia.

    Quando já não tínhamos mais forças para falar, eis que surge uma mulher com algumas folhas nas mãos e uma voz forte e cantada. Senta-se com alguma dificuldade, apoiando-se em nossa mesa com um sorriso tímido, ainda desconfortável por estar sendo "entrevistada" pelas brasileiras naquela tarde de fevereiro de 2013.

    Seu nome era Jo Clifford e seu último trabalho era sobre Jesus. Apresentando-se como transexual, contou um pouco sobre a peça cujo protagonista é Jesus como mulher, a rainha do céu, numa releitura das histórias bíblicas sendo contadas nos tempos de hoje. Perguntamos, então, o nome da peça e ela respondeu suavemente: "Gospel According to Jesus, Queen of Heaven" (O Evangelho Segundo Jesus, a Rainha do Céu), mostrando o flyer em nossa direção.

    Pablo Saborido
    Jo Clifford e Liliane Rebelo em maio deste ano
    Jo Clifford e Liliane Rebelo em maio deste ano

    Marici e eu trocamos olhares imediatos e, como numa telepatia, soubemos ali que um dia Jo viria ao Brasil. Continuou a sua apresentação ainda como John Clifford, professor universitário de teatro, e como Jo Clifford, essa incrível escritora que, em suas 80 peças de teatro, se dedicou a explorar temas que falam da alma humana, feminilidade e as múltiplas identidades que fazem o ser humano tão complexo. Sua presença ali era tamanha que, mesmo com um material gráfico um tanto tosco, pudemos perceber que se tratava de um texto profundo e, acima de tudo, muito bem escrito.

    O que eu não sabia é que a minha admiração imediata pelo trabalho da Jo nos renderia o início de uma bela amizade. Um sentimento de que aquela alma poderia ter sido minha mãe, tia, prima, avó ou melhor amiga, não dá para explicar.

    Quinze meses depois, mudo para a capital escocesa e tenho a chance de ver a peça na igreja Saint Mark. Saio desnorteada. Digo a uma amiga, Natalia Mallo, que deveria ver a produção. Ela também sai arrebatada e inicia a tradução do texto. Duas semanas depois, o British Council convida Jo para vir ao Brasil ministrar um workshop sobre dramaturgia.

    Um café marcado logo na primeira semana de seu retorno virou uma série de encontros às sextas-feiras, em um calendário mais do que sagrado. Nossos encontros nos aproximaram e pude conhecer quem era a pessoa por trás daquela linda voz que nos papéis se materializava. Ir à casa da Jo tornou-se quase como encontrar Jesus, era o momento de congregação, de amizade livre de estereótipos e opiniões.

    A peça foi selecionada para o Fringe Festival de Edimburgo, e as portas do céu se abriram, possibilitando ali a vitrine para novas parcerias internacionais. Vários produtores, curadores e programadores assistiram Jo nos palcos no último verão escocês.

    Dez meses depois, já de volta ao Brasil, dou início aos planos da visita de Jo. Sua escrita desconstrói e reconstrói, ao mesmo tempo, a individualidade e a identidade, usando da arte teatral para colocar a temática LGBT num lugar de importância e desmistificar conceitos e preconceitos.

    O resultado disso tudo foi um programa plural de atividades para discutir e celebrar o tema do gênero. Tudo o que me resta dizer é que estou ansiosa e feliz por finalmente poder compartilhar a Jo Clifford e essa história com o público brasileiro.

    Nota:
    No próximo dia 30, às 15h, Jo Clifford participa, com a ativista e militante trans Paula Beatriz, do debate "LGBT e a Promoção da Diversidade na Cultura - Desmitificando Lugares Comuns". O evento acontece em São Paulo no Instituto Tomie Ohtake (www.institutotomieohtake.org.br)

    LILIANE REBELO, 32, é gerente de artes do British Council Brasil.

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