Bob Wilson começou a trabalhar em "Garrincha" no verão de 2014, em Watermill, sua residência de verão em Southampton, no Estado de Nova York. Nesse posto privilegiado, cercado de jardins desenhados e obras de arte orientais e clássicas, Wilson recebe uma centena de jovens artistas do mundo todo para uma temporada de verão de intensa voltagem criativa. Apesar da disciplina do mestre, a atmosfera é predominantemente alegre, agitada, própria de jovens em férias excitados pelo convívio artístico.
Enquanto organiza o encontro anual em que arrecada fundos para a manutenção do seu centro, Wilson dedica-se a seus projetos, em diversos estágios de amadurecimento. The Watermill Center é uma usina de projetos –mais de vinte simultâneos– e o diretor passa de um a outro sem, aparentemente, se desconcentrar. Estive no local em julho de 2014, a convite do Sesc, para acompanhar a gênese do espetáculo. Numa grande tenda dividida em nichos, cada espaço abriga temporariamente equipes de pesquisa e criação, arregimentadas em função de cada projeto. A cada dia se observa a evolução dos espetáculos, pelas marcas deixadas nas paredes, que expõem os últimos esquetes do diretor e as imagens documentais que os inspiram. Mogli, Tesla, "La Traviata", "Paraíso Perdido", Peter Pan, Garrincha etc.
Já se sabe que Bob Wilson pensa por imagens. São elas que estimulam o desenho de quadros, cujas linhas de força são compostas de luz. Em Watermill, o processo de criação podia ser acompanhado pela errância do olhar de Wilson; quando este se fixava numa imagem do repertório pesquisado por seus colaboradores –casa fotografada por Ana Mariani, foto de futebol de praia de Thomaz Farkas, trecho de filme em que Garrincha é caçado e abatido em campo– surgiam os germes da construção formal da cena.
Avener Prado/Folhapress | ||
Cena da peça "Garrincha", de Robert Wilson, no Sesc Pinheiros |
Formalista, Bob Wilson procura o centro do seu espetáculo e em torno dele elabora sequências de cenas anteriores e posteriores, absolutamente simétricas. Se a cena central do desastre de automóvel que matou a mãe de Elza Soares é a de número três, então ela será antecedida de duas e seguida de duas. A simetria e o equilíbrio –instável– são marcas registradas da narrativa visual que muitas vezes dispensa o suporte do texto.
Um poema haicai de Nicolas Behr fornece a senha para penetrar o Brasil: "Nem tudo o que é torto é errado. Veja as pernas do Garrincha e as árvores do cerrado".
No entanto, faltava definir o gênero do espetáculo. Descartado o realismo –Bob Wilson desconhece o futebol e apenas concederá um grito de gol no seu espetáculo–, o olhar alerta acompanha o gingado de Garrincha diante dos adversários. Garrincha é um bailarino de pernas tortas; o espetáculo será um musical. O páthos da tragédia –o alcoolismo de Garrincha, a morte na miséria– vem cobrar pedágio. Mas a peça o evitará focando não o homem, mas o mito; não os fatos, mas a poesia da vida trágica.
Darryl Pinckney, dramaturgo e escritor, se incumbe do texto que deve partir da biografia de Garrincha por Ruy Castro. Com a valiosa colaboração de Maristela Gaudio, recolhe versos, poesias, poemas em prosa, crônicas esportivas, de viagem, de autores como Baudelaire ("Embriague-se"), João Cabral ("a bola é um utensílio semivivo"), Paulo Mendes Campos ("um poeta tocado por um anjo um dançarino preso a um ritmo"), Elizabeth Hardwick, de "Sad Brazil", Mário de Andrade ("Improviso do rapaz morto"), Elizabeth Agassiz, de "Viagem ao Brasil 1865-1866", Blaise Cendrars ("no Rio aprendi a desconfiar da lógica"), José Lins do Rego, da crônica da derrota da Copa de 1950, Ruth Landes ("A Cidade das Mulheres"), José de Alencar ("Ela sentiu um golpe no coração"), além de Nicolas Behr, que fornece a epígrafe do espetáculo.
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Cena da peça "Garrincha", de Robert Wilson, no Sesc Pinheiros |
A etapa seguinte foi decisiva para o encontro do nacional com o estrangeiro: o elenco e os músicos tornaram tudo muito familiar e souberam conviver com as idiossincrasias da cultura pop americana.
Em alguns momentos, a convergência dos talentos se manifestou soberana, a marchinha de Carnaval para as pernas tortas, o rap "Embriague-se", com letra de Baudelaire, e o vibrante ponto de macumba para o poema de Elza "Quando Você Crescer".
O confronto entre visões de dentro e de fora acende uma tensão que percorrerá toda a ópera, como a nos lembrar: são estrangeiros, viajantes, estão de passagem, em breve os pássaros de arribação voam de volta a Utica, Nova York. E nós continuaremos com o mito de Garrincha, que narra a nossa tragédia –a do talento despreparado para enfrentar a glória.
A peça "Garrincha", de Robert Wilson, está em cartaz no Sesc Pinheiros até 29/5