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    Para entender as teorias de Winnicott não basta ir ao cinema

    CAROLINE VASCONCELOS RIBEIRO
    CLAUDIA DIAS ROSA

    03/06/2016 13h26

    É sempre muito bem-vinda a discussão sobre a contribuição de Winnicott à psicanálise, em particular sobre o seu programa revolucionário para essa disciplina. Ao fazer isso, no entanto, exige-se rigor conceitual e argumentação bem fundamentada. Isso vale também para trabalhos destinados à mídia que se dirige ao grande público.

    Recentemente, em matéria publicada no site da "Ilustríssima" em 19/5, foram levantadas objeções contra o uso que Zeljiko Loparic faz de Thomas Kuhn para estudar o caráter revolucionário do pensamento de Winnicott. Em nenhum momento foram explicados o teor exato, conceitual, nem a argumentação que sustenta a tese de Loparic. Apoiando-se na menção de apenas dois autores –que não são figuras de referência na área de filosofia da ciência no sentido estrito e que estão longe de compor as discussões atuais relevantes sobre o assunto em questão–, afirmou-se que a teoria kuhniana não se aplicaria à psicologia.

    Isso é um erro: Kuhn explica que até mesmo as ciências não naturais e que estão em estágios pré-paradigmáticos compartilham dos elementos que compõe um paradigma. O que autoriza uma meditação acerca dos progressos e revoluções no interior do campo psicanalítico e da psicologia. As ideias de Kuhn, inclusive, foram utilizadas para estudar a história da psicanálise muito antes de Loparic, já a partir dos anos 1970, por autores tais como Bowlby, Greenberg e Mitchell (1983), McDougall (1997), Minhot (2003) e, mais recentemente, Abram (2013) e Eshel (2013), entre outros. Cabe ressaltar ainda as numerosas pesquisas sobre Winnicott no Brasil inspiradas na leitura kuhniana, realizadas pela Escola Winnicottiana de São Paulo, e divulgadas em revistas e publicações científicas.

    Após tecer críticas à leitura lopariciana, o texto sugere que "uma ida ao cinema" seria antídoto suficiente "contra tal revolução". Apesar de haver muitos filmes esclarecedores, a discussão sobre o assunto em pauta não pode ser simplificada a tal ponto. A revolução winnicottiana a que se refere Loparic é de natureza teórico-científica, ontológica, epistemológica e clínica, exigindo, para ser compreendida, um conhecimento aprofundado da história da psicanálise e da filosofia da ciência, especialmente da obra de Thomas Kuhn.

    A mudança paradigmática mencionada refere-se ao fato de a experiência clínica de Winnicott revelar a ineficácia da psicanálise freudiana no tratamento de uma série de distúrbios psíquicos (dissociações), tais como as psicoses, a tendência antissocial e distúrbios psicossomáticos. Diz Winnicott: "A fim de progredirem rumo a uma teoria mais eficiente da psicose, os analistas devem abandonar inteiramente a ideia de que a esquizofrenia e a paranoia tiveram sua origem por regressão do complexo de Édipo". Os problemas clínicos citados, não compreendidos e mesmo não identificados por Freud, forçaram Winnicott a pensar –essa é a tese de Loparic– que, a fim de progredir, a psicanálise precisava abandonar o paradigma freudiano, mediante uma mudança paradigmática. Foi pelo mesmo motivo que Winnicott escreveu: "Estou pleiteando uma espécie de revolução no que estamos fazendo" e justificou: a psicanálise ortodoxa não consegue tratar das dissociações profundas de origem primitiva.

    O texto sob discussão diz ainda, de maneira categórica e pouco pautada na letra do autor, que "Freud trilhou caminhos inversos daqueles seguidos por cientistas naturais". Ora, Freud nunca escondeu sua intenção de fazer da psicanálise uma ciência da natureza. Em sua obra-testamento, "Esboço de Psicanálise", ele afirma que anseia que a psicanálise "se configure como uma dentre as demais ciências naturais".

    Quanto à "ruptura em relação a Freud", afirma-se que a ideia de um distúrbio decorrente de algo que não aconteceu, mas precisava ter acontecido –indicado por Loparic como um dos pontos centrais na psicopatologia winnicottiana–, deve ser englobada pela "teoria do trauma e da Nachträglichkeit [o a posteriori]". Essa afirmação desconhece que, para Winnicott, não podemos pensar o trauma sem considerar que a provisão ambiental, que era necessária, efetivamente falhou no passado. Traumas iniciais e decisivos resultam de um padrão de intrusões reais que interrompem a linha do ser, forçando o bebê a reagir, obstaculizando, ainda na fase pré-representacional, a continuidade do amadurecimento e, portanto, a sua constituição como pessoa inteira, isto é, a realização da tendência à integração. Freud, por sua vez, ancorado no campo das representações e da dinâmica pulsional, parte da pressuposição de que há sempre uma pessoa inteira em condições de ser reprimida. O mecanismo de repressão é sofisticado demais para explicar o que acontece em fase tão primitiva. Não há como englobar a teorização de Winnicott sobre o trauma sob a chancela da Nachträglichkeit.

    O ponto central do artigo é o de que Winnicott restringiu o feminino à maternidade e que isso representaria um retrocesso teórico, considerando-se as aquisições da longa luta das mulheres pelo reconhecimento de seus direitos e desejos. Esse argumento não procede. Com certeza, o psicanalista inglês valorizou a maternidade, só que seu tema central não era a mulher, mas a natureza humana, as condições para a realização da tendência ao amadurecimento, desde o início da vida. É natural que a mulher enquanto mãe entre nesse processo.

    Tendo em vista a imaturidade do bebê e, portanto, sua absoluta dependência de um cuidador, o ponto principal não é quem provê os cuidados (mãe, pai ou substituto); apesar de a mãe biológica ser provavelmente a mais indicada para essa tarefa, o que importa é a qualidade pessoal e confiável desses cuidados. Mas, do fato de a mãe ser o ambiente inicial do bebê não se deduz que a mulher, a não ser durante um curto espaço de tempo, perca os outros aspectos de sua feminilidade.

    Na realidade, o que o psicanalista inglês reivindica é que a mãe se dedique ativamente ao seu bebê, durante os primeiros meses de vida, e depois proceda, com a ajuda do pai, uma desadaptação gradativa à medida que ele cresce, acompanhando o longo processo de socialização e de autonomia crescente da criança até que a independência relativa se estabeleça. Não há nenhum indício de que a mãe winnicottiana deva abandonar os outros setores de sua vida, constrangendo-os sob o funil da maternidade. Considerando-se que é nesse período inicial que estão sendo constituídas as bases da saúde psíquica, evitando-se a esquizofrenia, há de se convir que o custo não é alto. A sociedade civil reconhece esse papel da mãe ao conceder, pela Constituição, a licença maternidade. Será que essa licença também seria um dispositivo legal retrógrado?

    No artigo, diz-se que Freud avançou por conceder voz a "aspectos insubordinados do feminino: sexualidade e agressividade". Fala-se ainda que "Freud foi longe com as mulheres", em oposição a um suposto retrocesso de Winnicott. O que a argumentação suprime é que, para Freud, a identidade feminina é prioritariamente constituída pela inveja do pênis, isto é, a mulher freudiana tem, na base de sua personalidade, a dolorosa e humilhante constatação de sua privação pela ausência do pênis. É justamente Winnicott quem retira o caráter constitutivo da falta na identidade feminina. Embora ele não negue o fenômeno da inveja do pênis, este é apenas uma passagem necessária, embora curta, do processo de desenvolvimento sexual das meninas, e que vai terminar, quando há saúde, com o reconhecimento da complementariedade sexual, e até mesmo com o vislumbre de uma certa superioridade da mulher em relação ao homem, em virtude do medo da dependência, que surge sobretudo no homem com relação à mãe.

    Portanto, a mulher é compreendida por Winnicott não como um ser castrado, mas tendo seu próprio perfil, pela identidade de gênero, mediante a identificação com a mãe-materna ou com a mãe-fêmea, ou com ambas, é claro. Será bastante útil à menina se o elemento fêmea da mãe estiver disponível para identificação; isso contraria o artigo em apreço, posto que esse sustenta que, "nas tintas" de Loparic "o desejo da mãe desaparece e o da criança se torna mera necessidade". A tal "mera necessidade" é, tão somente, "nas tintas" de Winnicott, a de começar a existir e a de continuar a existir de forma integrada. Os freudianos não sabem disso porque jamais tiveram que se haver, por falta de teoria, com as psicoses.

    De fato, na compreensão de Winnicott, antes de ter desejos, o que pressupõe certa maturidade, o bebê humano tem necessidades relativas a ser e isso é mais primitivo e fundamental do que ter desejos. Os desejos não realizados redundam em frustração, mas, quando as necessidades do bebê não são atendidas, as consequências são da ordem da aniquilação, da impossibilidade de ser.

    No que tange ao pai, sua presença tem valor desde o início da vida. Se ele não é o principal responsável pela edificação das bases da saúde psíquica, contribui de maneira fundamental para que a mãe tenha as condições de dar conta da sua tarefa, dando apoio e sustentação a ela, sendo que, em breve, já na fase final de dependência relativa da criança, torna-se a pessoa importante com a qual ela passa a contar, aquele que, nos bons casos, além de colocar limites às fantasias sexuais infantis, é confiável e, também por isso, é aquele que fornece a moldura ambiental, que estabelece balizas e protege a criança, assim como a mãe.

    Tudo isso é Winnicott, colado à vida, como sempre. Basta ler com atenção e boa vontade de compreender. E isso não implica deixar de ir ao cinema.

    CAROLINE VASCONCELOS RIBEIRO, 42, é professora titular da Universidade Estadual de Feira de Santana, doutora em filosofia pela Unicamp e membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana.

    CLAUDIA DIAS ROSA, 49, é psicanalista, doutora em psicologia clínica pela PUC-SP, membro do Instituto Brasileiro de Psicanálise Winnicottiana e da Internacional Winnicott Association e professora da Escola Winnicottiana de Psicanálise.

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