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    A casa da dona Maria

    MARIA MOMMENSOHN

    12/06/2016 02h00

    São Paulo, 1970

    Tentei lembrar quando foi a primeira vez que fui à casa de d. Maria, como todo mundo a chamava. Não consigo me lembrar. Lembro-me do telefonema perguntando horários, valores. Ela nunca falou em preços, a gente perguntava um para o outro e ia pagando, também não me recordo como.

    A sensação era a de um fluxo vibrante. Lembro que na "Dança Coral Origens I" tivemos uma roda de ensaio embaixo da marquise do Ibirapuera e ela me disse que eu conseguia motivar as pessoas para o movimento, que era natural que elas se contagiassem pelo meu movimento. Quem pode querer elogio maior?

    Chegar à casa de Maria Duschenes (1922-2014) e encontrar um grupo de dança que se movia sob as instruções de uma delicada pessoa que raramente interferia foi adentrar no universo magnífico da dança que Rudolf Laban (1879-1958) propunha.

    Arquivo Pessoal
    Da esq. para a dir., Yolanda Amadei, Maria Duschenes, Maria Mommensohn e Cilô Lacava, em 1991, na Bienal de São Paulo
    Da esq. para a dir., Yolanda Amadei, Maria Duschenes, Maria Mommensohn e Cilô Lacava, em 1991, na Bienal de São Paulo

    Maria Duschenes morava no Sumaré, numa rua longa, curva e cheia de árvores. Eu sentia que, enquanto ia chegando, ia me desprendendo de tudo o que pesava, que incomodava. A casa tinha janelas grandes e um jardim. Havia um portão sempre destrancado e um corredor que levava a uma escada. A porta da cozinha estava quase sempre aberta.

    Eu vinha de experiências nada ortodoxas com Mário Piacentini do grupo TUCA de teatro, com Luiz Galizia e Heleninha Villares. Fui surpreendida pelo reconhecimento, pela autonomia de meu próprio pensamento. Meu ideal de representação era o ato sem palavras que via no "Terceiro Demônio", do grupo do qual eu era aspirante.

    Quando o grupo se dissolveu antes mesmo de eu poder estrear o trabalho que Luiz estava dirigindo, Heleninha me recomendou que procurasse Maria Duschenes.

    Apaixonei-me pela ideia de um corpo que gera o espaço, que mobiliza a energia e cria um campo imantado entre quem assiste e quem faz a dança. Eu era uma selvagem. Ser selvagem nos anos 70 era a premissa de ser no mundo. Eu fazia ocupações em praças, casas e ruas com amigos artistas. Produzia danças à margem, mas havia a sala de d. Maria para onde eu voltava sempre.

    Quase que naturalmente fui criando com Maria Duschenes os Encontros Laban onde, então, pude reproduzir uma generosa versão de Laban e Maria Duschenes sobre a diversidade de conceitos, a singularidade de cada artista. Nestes encontros, finalmente retribui ao acolhimento que recebi naquela sala da rua Valença onde o aqui agora da dança significava presença, expansão e conhecimento.

    Em 1999, criei o Encontro Laban com bailarinos e coreógrafos da Cooperativa de Dança. Neste encontro, o Grupo de Improvisação, sob orientação de Maria Duschenes, se apresentou pela última vez porque a mestra, pessoa que delicadamente tecia os fios das relações criativas de nossas existências, estava se retirando.

    Maria Duschenes, como sempre discreta e sensível, passou pelos portais do Alzheimer e, desde então, seus alunos estão por aí no mundo levando sua marca em corpos que dançam e fazem dançar.

    Na ocupação "Vesica Piscis", no MAC USP Ibirapuera até 10/7, retomo seu projeto de divulgar Laban e seu conceito de espaço dinâmico no qual a expressão da dança acontece em suas múltiplas manifestações, reunindo artistas diversos como Marcia Milhazes, Ciane Fernandes, Andreia Yonashiro, Juliana Moraes e Henrique Schuller.

    A exposição também apresenta o espaço enquanto experiência de presença, vivência por meio de objetos transacionais que vão possibilitar a compreensão da teoria como ela foi formulada, é através do movimento que se alcança a abstração, e não ao contrário.

    Parte-se do corpo pensante, do movimento consciente que se organiza enquanto linguagem num texto próprio, no contexto da dança e da arte contemporânea no qual a exposição sobre Maria Duschenes e seu longo percurso como professora e criadora revelam sua fundamental importância para o cenário cultural brasileiro.

    MARIA MOMMENSOHN, 62, é bailarina, coreógrafa e pesquisadora na área de antropologia da dança

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