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    Musical da Broadway revela o homem da nota de dez dólares

    NELSON DE SÁ
    ilustração MANUELA EICHNER

    12/06/2016 02h02

    RESUMO Vencedor do Pulitzer de teatro e concorrendo a um número recorde de prêmios no Tony, que será entregue neste domingo, o musical "Hamilton" tem atores negros e latinos vivendo pais fundadores da América e cantando hip-hop. O autor e ator principal da peça fala em entrevista exclusiva sobre história, política americana e suas influências.

    Manuela Eichner

    Em 2009, convidado a participar de uma noite de arte e poesia na Casa Branca, com uma canção de seu primeiro musical, "In the Heights", o nova-iorquino filho de porto-riquenhos Lin-Manuel Miranda, então com 29 anos, levou outra coisa, em que começava a trabalhar. Era uma só música, quase uma provocação. Cantou, na ocasião, o primeiro tratamento do que seria a abertura do agora festejado musical "Hamilton". Alexander Hamilton (1755-1804) se revelou muito mais que a face desconhecida da nota de US$ 10.

    Dizem os versos iniciais, hoje repetidos por toda parte nos EUA (em tradução livre): "Como é que um bastardo, órfão, filho de uma puta e de um escocês, largado no meio de um lugar esquecido no Caribe pela providência, empobrecido, na miséria, cresce a ponto de ser um herói e um 'scholar'?". O impacto sobre Barack Obama naquela noite e sobre o público desde a estreia off-Broadway em 2015 reanimou uma história que havia sido apagada pelo patriotismo de décadas recentes no país –a da Revolução Americana.

    Hamilton vive com seus amigos, o jovem abolicionista John Laurens, o marquês de Lafayette, herói de dois países, e o imigrante irlandês Hercules Mulligan, uma outra história, apaixonante, de risco e morte. E de embates políticos incessantes, sustentados por George Washington, com adversários como Thomas Jefferson e James Madison, mas sobretudo Aaron Burr, o antagonista nova-iorquino que canta aqueles primeiros versos e narra toda a saga de Hamilton até matá-lo.

    Por causa do musical, Hamilton não vai mais deixar a nota de US$ 10, como programado. Ele é novamente o protagonista de combates heroicos com os ingleses em Nova York e da batalha que selou a vitória, em Yorktown; o secretário do Tesouro que criou o sistema financeiro americano e garantiu o crédito internacional da nação que mal existia; o advogado que escreveu anonimamente a maioria dos "Artigos Federalistas", que asseguraram a Constituição. E que fez muito mais, como fundar o "New York Post" e o Bank of New York.

    Mas Miranda foi por outros caminhos: mostra o homem de vida pessoal trágica, que perdeu o filho adolescente num duelo, quando este foi defendê-lo de difamadores; que viu a carreira política se perder num escândalo sexual com uma mulher casada; que amava o amigo Laurens mais do que era permissível então. É essa história que ganhou o Prêmio Pulitzer de teatro e concorre a 16 prêmios Tony na noite deste domingo.

    Lin-Manuel Miranda recebeu a "Ilustríssima" para uma entrevista em Nova York, onde é protagonista de seu próprio espetáculo.

    Sara Krulwich - 11.jul.15/"The New York Times"
    Anthony Ramos, Lin-Manuel Miranda, Daveed Diggs e Okieriete Onaodowan em cena de "Hamilton" no Richard Rodgers Theatre, em Nova York
    Anthony Ramos, Lin-Manuel Miranda, Daveed Diggs e Okieriete Onaodowan em cena de "Hamilton" no Richard Rodgers Theatre, em Nova York

    Folha - A política nos Estados Unidos está altamente polarizada neste momento, principalmente em torno dos imigrantes. "Hamilton" pode ajudar a compreender e talvez achar uma saída para isso?
    Lin-Manuel Miranda - Eu não sei se aceito a premissa de que os EUA estão altamente polarizados. Acredito que o assunto está muito no noticiário, mas creio que isso acontece a cada 20 anos, mais ou menos. E é algo que está no ar desde o alvorecer do nosso país. Francamente, acho que "Hamilton" é uma boa lembrança disso [risos]. É uma lembrança de que os imigrantes construíram este país, seguidas vezes, repetidamente, ao longo de seus cerca de 200 anos. Alexander Hamilton foi uma das primeiras histórias disso.

    Ao mesmo tempo, você viu no nosso espetáculo os opositores políticos de Hamilton usando "imigrante" como epíteto contra ele, como uma forma de sublinhar que eles não confiavam nele. Essas duas coisas não têm nada de novo na política americana. Acredito que, dada a retórica anti-imigrante que está meio que dando as cartas nessa temporada eleitoral, é bom ter algo para lembrar que o cara que construiu o nosso sistema financeiro não havia nascido aqui [risos]. É um contrapeso a essa narrativa.

    Hamilton era também nova-iorquino, como Trump, Hillary e Sanders agora. Além da força da grande população e da potência financeira, o que torna a cidade tão central para a política e a cultura nos EUA?
    É interessante que você aborde isso, porque eu acredito que "In the Heights" tocava numa coisa semelhante ao que "Hamilton" toca: a razão por que tantas primeiras histórias começam em Nova York. Eu cresci no norte da ilha de Manhattan, que já havia sido antes o lar para ondas sucessivas de imigrantes. Era um bairro dominicano nos anos 1970, é meio um bairro pan-latino-americano agora. Antes disso, foi lar para um número grande de imigrantes irlandeses e, depois da Segunda Guerra Mundial, de imigrantes judeus. Ou seja, acho que Nova York é um lugar onde muitas histórias americanas começam.

    Essa é uma das coisas que amo sobre a cidade, e esse é meio que um tema comum aos dois espetáculos que escrevi. Nova York é um lugar onde começam as histórias de imigrantes, essa é uma fonte de sua seiva, de seu sangue de vida.

    Você trabalhou com Stephen Sondheim na remontagem de "West Side Story" (no Brasil, "Amor, Sublime Amor"), em 2011. Como vê a obra dele no teatro? Você foi influenciado por ele nos seus próprios musicais?
    Ah, eu acho que qualquer um que diga que não foi influenciado por Sondheim estará mentindo. O maior legado de Sondheim é sua versatilidade. Os temas que ele escolheu para transformar em musicais são tão amplos quanto qualquer coisa que exista, onde for. Ele tem um musical sobre assassinatos de presidentes e sobre um barbeiro assassino. Tem letras em "West Side Story" sobre gangues em guerra. Ele ampliou o território sobre o que pode ser uma noite no teatro. E nós somos os beneficiários dessa seriedade.

    Entre muitas outras citações, tem um ou outro verso de "The Message", de Grandmaster Flash and the Furious Five, em "Hamilton". Quais são as suas referências no rap? Demorou muito para encontrar a fusão perfeita de hip-hop e teatro musical?
    Não, porque essa era a ideia inicial. Para mim, o que amo mais no hip-hop é o mesmo que amo em musicais. São formas de arte que meio que absorvem seja lá o que for preciso para contarem sua história. Assim como Jay-Z vai samplear "Annie" quando ele está escrevendo "Hard Knock Life (Ghetto Anthem)", os musicais absorveram jazz e Tin Pan Alley [canções do início do século 20, de Gershwin e outros] e rock. E agora, com este espetáculo, usamos hip-hop como uma outra forma de contar histórias, dentro da tradução do teatro musical.

    Isso é o que gosto em ambos, e eu cresci amando ambos. Assim, faço uma citação de Grandmaster Flash na mesma sentença em que vou fazer uma citação de Stephen Sondheim... Crescendo com esses dois gêneros e escrevendo sobre um lugar que amo me permite acessar essas duas sintonias.

    "In the Heights" foi produzido no Brasil (com o nome "Nas Alturas"), cerca de dois anos atrás. Você acredita que "Hamilton", sendo tão vinculada à história americana, vai funcionar tão bem para públicos brasileiros e latino-americanos?
    O objetivo é sempre contar a história com tanta especificidade quanto possível. Se contá-la especificamente o bastante, ela se torna universal, porque você encontra os temas dentro dela que ressoam com um grupo maior de pessoas. Vou dar um exemplo. Nunca fui à Rússia, não sou judeu, mas quando vejo "Fiddler on the Roof" [musical de 1964; no Brasil, "Um Violinista no Telhado"] eu reconheço as tensões dentro daquela família como as tensões que qualquer família precisa enfrentar, com as tradições que foram passadas a você e com as tradições que você vai passar aos seus filhos. É um tema universal. Não importa se você foi ou não para Anatevka [cidade fictícia russa, cenário do musical].

    Espero que a história de "Hamilton", que para mim é sobre um escritor que, com trabalho duro e sorte, superou dificuldades inacreditáveis neste país... Acho que isso se pode traduzir, não importa onde você vá. Posso estar errado, me pergunte quando "Hamilton" estiver no Brasil [risos]. Mas eu fiquei estimulado por "In the Heights" ter encontrado sucesso em Londres, no Brasil e noutras partes do mundo. É sobre uma esquina muito específica de Nova York, mas seus temas não são muito diferentes de "Fiddler". É como você vai definir lar, quando está crescendo em um que não é aquele em que seus pais cresceram. Quais são as tradições que leva com você? Acho que elas ressoam em nós, não importa onde estamos ou quem somos.

    Seus pais são de Porto Rico, e você até atuou em "In the Heights" lá. Li um artigo sobre a crise porto-riquenha que você publicou no "The New York Times". Acredita que o Congresso americano está dando as costas para Porto Rico numa hora de crise econômica?
    Não sei se colocaria dessa maneira, porque, para ser sincero, eles estão discutindo a questão. O que é supreendente, dado o impasse em que esse Congresso vive há tanto tempo. É mais do que estão fazendo com a maioria dos assuntos. Portanto estou esperançoso que eles vejam que permitir que Porto Rico reestruture sua dívida é uma questão não partidária e dos melhores interesses dos EUA, não só de Porto Rico. Eu não sei, mas estou animado que eles estejam conversando. Falta ver se vão se movimentar rápido o bastante para resolver o que já é uma crise financeira e está se transformando cada vez mais numa crise humanitária. A bola está firmemente na quadra deles. Eu vejo a minha responsabilidade nisso como alguém apenas acendendo uma luz sobre o assunto. Não tenho as respostas, só tenho perguntas.

    Saindo de ditaduras, as democracias latino-americanas estão enfrentando uma série de obstáculos, Brasil incluído. Que lições podem tirar de Hamilton e seus amigos e adversários de 1776?
    Essa é uma grande pergunta, porque eu acredito que existam muitos defeitos no experimento americano. Uma das coisas que espero que se possa levar de "Hamilton" não é que Hamilton seja um herói ou Washington seja um herói, mas que esses eram homens profundamente humanos, que seus defeitos são nossos defeitos, como país. Mas o que eles conseguiram foi realizar algo do início até o fim, da revolução para a democracia. Se olhar para aqueles que são contemporâneos deles, os franceses, eles não conseguiram, certo? Fizeram uma revolução, mas isso levou à tirania, que levou a outra revolução e a muitas formas de derramamento de sangue. Isso não aconteceu na América, não da mesma maneira.

    Essa é uma coisa interessante sobre a qual conversei com uma pessoa que veio ver o espetáculo, que trabalha nas Nações Unidas. Essa pessoa me disse: "Metade do meu trabalho é convencer os líderes que estão no poder a sair, quando as pessoas querem que eles saiam" [risos].

    Como George Washington.
    Essa foi realmente a ação mais audaciosa, porque Washington era o único sobre quem todo mundo concordava. E ao sair por vontade própria assegurou uma transição ordenada de poder. Isso evitou que fosse apenas um experimento, para se tornar algo que simplesmente acontece. Isso exige liderança e uma liderança disposta a investir na estrutura e não em seu próprio poder. É muito difícil fazer e muito difícil encontrar.

    NELSON DE SÁ, 55, cobre cultura e mídia para a Folha e mantém o blog Cacilda, no site do jornal, com Lenise Pinheiro.

    MANUELA EICHNER, 31, é artista plástica.

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