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    Musical de autor é obra de gênio

    NELSON DE SÁ

    12/06/2016 02h03

    Compositor, letrista, libretista e protagonista de "Hamilton", Lin-Manuel Miranda obviamente se identifica com seu personagem. É o motivo declarado por que resolveu criar o musical, depois de comprar casualmente a biografia de mais de 800 páginas de Ron Chernow no aeroporto, a caminho de umas férias. Já tinha sido assim em sua identificação com o dominicano Usnavi de "In the Heights", musical que se passa no bairro de Manhattan em que nasceu, Washington Heights.

    Como Hamilton, que estudou no King's College, hoje Columbia, Miranda não é nenhum imigrante pobre. O pai, embora nascido em Porto Rico, foi assessor político do prefeito Ed Koch. E ele próprio fez jingles para a campanha do governador Eliot Spitzer, que seria derrubado por um escândalo sexual –como aquele que acaba por interromper a carreira política de Hamilton no musical.

    Convivendo desde criança com a elite democrata, o que Miranda retrata em "Hamilton" são embates que marcaram a formação do país: o nordeste americano contra Virgínia e o sul, Wall Street contra as fazendas escravocratas, isolacionistas contra intervencionistas, e por aí vai. E o que marca a encenação é Hamilton ser feito por um latino (o próprio autor), e Washington, Jefferson, Madison, por atores negros. São quatro dos sete "pais fundadores", mas, olhando da plateia, nada soa artificial ou inautêntico.

    O mesmo vale para a integração do musical, gênero marcadamente nova-iorquino, com o rap, também surgido na cidade –de imigrantes como Grandmaster Flash e ídolos trágicos como Notorious B.I.G.

    Frank Rich, crítico e colunista por três décadas no "New York Times", que deixou para ser produtor na HBO, diz que "Hamilton" "eleva o vernáculo musical contemporâneo do hip-hop ao seu lugar devido –com atraso– nos palcos da Broadway, da mesma maneira que os irmãos Gershwin, Cole Porter, Richard Rodgers e Sondheim atualizaram os idiomas musicais da Broadway em suas eras".

    Rich, em conversa com a Folha, diz que "Hamilton" abre "um novo capítulo na história dos musicais americanos com consciência social e histórica", numa linhagem que vem de "Show Boat" (1927) e passa por "Porgy and Bess", "Oklahoma!", "South Pacific", "até aqueles de Sondheim e seus colaboradores", como "West Side Story" e "Assassins". Mas antes de tudo "Hamilton" é "a visão singular e original de seu autor, a antítese de um subproduto de filme de corporação como 'O Rei Leão'".

    Da concepção à atuação, Miranda é o próprio espetáculo, mas não será surpresa se perder o Tony de ator para Leslie Odom Jr. Ele vive Aaron Burr, também político nova-iorquino e órfão, adversário de Hamilton. É o narrador, o que é capital num musical quase sem diálogos, "sung-through", cantado do início ao fim. E é, sobretudo, um papel multifacetado, que vê sua ambição revolucionária, política e até advocatícia frustrada –a cada passo– por Hamilton, mas que interpreta a enternecedora "Dear Theodosia" para a filha pequena, que confunde com a própria América.

    Odom e Miranda não estão sozinhos. As atrizes que fazem as irmãs Schuyler, Phillipa Soo como Eliza –a mulher de Hamilton– e Renée Elise Goldsberry como Angelica, ambas também indicadas ao Tony, reescrevem a história da Revolução Americana como duas nova-iorquinas engajadas, à frente de seu tempo, que abraçam o radicalismo de Thomas Paine e até o abolicionismo. É por elas, pelo romantismo que acentuam, que o musical consegue ir além da política crua e emociona tanto.

    No amontoado de glórias que se anuncia para "Hamilton", lamentavelmente ficará de fora o único rapper, de fato, em cena. Daveed Diggs, que faz Lafayette no primeiro ato e Jefferson no segundo, responde pelo quadro que mistura duas tradições do canto rápido, a "patter song" dos musicais e o "fast rap" do hip-hop, em "Guns and Ships". E é ele quem divide com Miranda as sarcásticas e ofensivas batalhas de rap entre os secretários de Estado e Tesouro, Jefferson e Hamilton.

    RAP NA TRILHA

    O rap na trilha garante um musical com o triplo de palavras de outros com duração semelhante, o que acaba ajudando no detalhamento das muitas fases na trajetória de Hamilton. Mas Miranda resume coisas importantes a um verso, caso da acusação de Burr de que era o favorito dos banqueiros de Wall Street. Ou então a ínfima sugestão sobre relações homossexuais –o que suas cartas indicam– com Laurens ("Laurens, I like you a lot", gosto demais de você) em "My Shot".

    Ainda não há previsão de montagem brasileira para "Hamilton", mas São Paulo conheceu Miranda em 2014 com "Nas Alturas (In the Heights)", em produção bem cuidada de Ricardo Marques, da 4Act. Apesar da temporada inexplicavelmente curta, já indicava, sobretudo nos personagens femininos, o virtuosismo de Miranda no gênero. E revelou intérpretes como Lola Fanucchi e Myra Ruiz, esta elevada a estrela nos musicais brasileiros, no momento protagonizando "Wicked".

    Myra estudava teatro musical em Nova York, adolescente, quando estreou "In the Heights", e recorda: "Assisti cinco vezes, já existia um 'buzz' enorme em volta desse novo musical. Quem acompanhava a Broadway sabia que algo inovador estava surgindo através do Lin-Manuel. Só não imaginava que tão cedo ele conseguiria criar esse fenômeno que é o 'Hamilton'". A atriz de 23 anos diz acreditar que ele seja, no gênero, "um dos maiores gênios desta geração".

    Miranda, que vem de receber a Genius Grant (bolsa gênio) da fundação MacArthur, acumula prêmios desde o Tony por "In The Heights" e agora vai priorizar o cinema. Tudo começou quando o diretor J.J. Abrams, ao ver "Hamilton", o chamou para compor a música da cantina de "Star Wars: O Despertar da Força". Daqui a um mês, para atuar no novo "Mary Poppins", compor para uma animação da Disney e adaptar "In the Heights" para os irmãos Weinstein, ele deixa "Hamilton".

    BILHETE CARO
    Nesta semana, diante da escalada nos preços cobrados por cambistas eletrônicos, legais em Nova York, a produção de "Hamilton" elevou seus ingressos mais caros de US$ 475 para US$ 849 (cerca de R$ 3 mil). Serão 200 por sessão, um esforço para conter sites como StubHub, que oferecem ingressos por até US$ 5 mil

    NELSON DE SÁ, 55, cobre cultura e mídia para a Folha e mantém o blog Cacilda, no site do jornal, com Lenise Pinheiro.

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