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    As ruas de Nireu e a lusofonia de Martinho no Rio de Janeiro

    ALVARO COSTA E SILVA

    19/06/2016 02h02

    Alguns dos melhores historiadores do Rio não nasceram aqui. Tem a ver com a característica da cidade de não distinguir seus habitantes pela origem. Em aqui chegando e gostando, você vira um carioca de truz, como se dizia no tempo do Onça. (Esse Onça, aliás, foi um português que se tornou capitão-geral do Rio no século 18).

    Mello Morais pai e Mello Morais filho eram, respectivamente, alagoano e baiano. Morales de Los Ríos, sevilhano. Brasil Gerson, catarinense. Canabrava Barreiros, mineiro. Como também de fora é Nireu Oliveira Cavalcanti, nosso mais importante historiador na atualidade, autor do já clássico "Rio de Janeiro Setecentista".

    Nireu acaba de lançar mais uma obra: "Rio de Janeiro: Centro Histórico Colonial (1567-2015)" [Andrea Jakobson Estúdio/Faperj, 148 págs., R$ 90]. Em nota de agradecimento, escreve: "Dedico este trabalho àqueles que acolheram a mim e a minha família, vinda em 1962 da distante Maceió para a grande metrópole carioca".

    Apesar do formato grande, é livro ideal para ter à mão em caminhadas, ao estilo "flâneur", no velho Centro. Ilustrado com reproduções de pinturas, fotos antigas e desenhos do autor, reúne 148 verbetes com a história dos nossos logradouros.

    Um mapa apresenta, em traços pretos, o Rio da Colônia, ainda com os morros do Senado e do Castelo, em contraste com o atual, onde se evidencia o quanto a cidade avançou em aterros sobre a Baía de Guanabara.

    É, ainda, um guia de nomes antigos deliciosos.

    Em geral a primeira denominação dada a um local consistia numa descrição: Desvio do Mar era a rua do Ouvidor, por exemplo. O nome da edificação mais significativa também valia: a rua da Cadeia era a que é, hoje, a rua da Assembleia (no caso, o leitor pode fazer as ilações que quiser).

    As profissões ou o tipo de comércio batizaram, igualmente, muitos logradouros: ainda estão valendo a rua da Quitanda e o beco dos Barbeiros.

    Ou mesmo um fato pitoresco ou marcante: a Matacavalos, onde Bentinho conheceu Capitu no romance de Machado de Assis, era o nome da atual rua do Riachuelo, na Lapa; e a Mataporcos, a principal via do bairro do Estácio.

    LENDA URBANA

    O inventário urbano de Nireu Cavalcanti é fruto de uma pesquisa iniciada há mais de 20 anos.

    Nele, o historiador destrói algumas lendas. Não procede, segundo ele, que um trecho da rua da Quitanda chamou-se no passado rua do Sucussarará pelo fato de ali ter residido um médico especialista em curar doenças do reto. O mais provável é que o nome se deva a um brejo onde viviam aves de penas vermelhas chamadas pelos índios de socó-sarará, daí a corruptela.

    O PORTUGUÊS DO FERREIRA

    Martinho da Vila –ou o Ferreira, como é conhecido na intimidade do samba– nasceu em Duas Barras (RJ). Ainda criança foi morar na Serra do Mateus ou Serra dos Pretos Forros, na Boca do Mato, antigo bairro que o grande Méier engoliu. Foi ali que Martinho pegou o jeitão peculiar de compor e sobretudo de cantar –devagar, quase parando.

    Consagrado como compositor popular, Martinho danou-se a escrever livros. Já publicou 14, candidatou-se à Academia Brasileira de Letras e, num castigo severo demais, não recebeu nenhum voto. A prima pobre da instituição, a Academia Carioca de Letras, o acolheu. Sua obra literária guia-se pela noção um tanto abstrata da lusofonia.

    Para homenageá-lo, a cantora Ana Costa escolheu, na música, o que ela entendeu como essa identidade cultural entre regiões falantes da língua portuguesa.

    O resultado é "Pelos Caminhos do Som" [Biscoito Fino, R$ 19,90 em CD; a versão "deluxe", com quatro faixas extra, pode ser ouvida no Spotify]. É um disco ótimo, que escapa à camisa de força do formato tributo. Desde a primeira faixa, que recupera "Semba dos Ancestrais", uma antiga parceira com Rosinha de Valença, é como se estivéssemos de volta aos tempos da Serra do Mateus.

    OLHA A CHUVA!

    Não chega a ser uma grande tradição. Mas há, sim, festa junina nestas plagas. Alguns arraiais são excelentes, principalmente nos subúrbios, onde servem até aquela bebida intragável, o quentão.

    Este mês vai ter quadrilha no trecho conhecido como Beco das Sardinhas (pela oferta de "frangos marítimos") da rua Miguel Couto, no Centro, aos domingos, das 10h às 22h. Neste, dia 19, apresenta-se o Trio Pimenteira, tocando Luiz Gonzaga; no dia 26, o coletivo Quermesse, com atividades de música, artes visuais e culinária.

    Olha a cobra! É mentira!

    ALVARO COSTA E SILVA, o Marechal, 53, é autor de "Dicionário Amoroso do Rio de Janeiro" (Casarão do Verbo).

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