RESUMO Autores propõem uma redução cuidadosa e seletiva dos empréstimos do BNDES. Usando dados referentes ao mercado privado de dívidas de longo prazo antes da existência do banco, concluem que tal mercado poderia ter se tornado significativo, caso a instituição não tivesse sido criada.
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Em entrevista recente ao jornal "Valor Econômico", o ex-presidente do BNDES Luciano Coutinho enfatiza uma razão para intervenção governamental no mercado de crédito no Brasil: a debilidade do mercado privado de dívida de longo prazo. A debilidade é incontestável. Já suas razões são controversas, assim como o são as possíveis formas de atuar para sanar a debilidade.
A própria atuação do BNDES pode contribuir para que tal mercado não se desenvolva. O custo de financiamento do BNDES é menor do que seria se o banco tivesse que remunerar suas fontes de financiamento a taxas que as compensem pelo risco com o qual se depara –isto é, o BNDES tem acesso a fundos subsidiados.
Por meio do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), o governo faz com que parte dos recursos da economia sejam canalizados para que o BNDES os aloque, e o BNDES não o remunera tanto quanto o FAT conseguiria se aplicasse no mercado. (Lembremos que o FAT é responsável por honrar os dispêndios do seguro-desemprego e que de sua remuneração depende a segurança de alguns benefícios trabalhistas.)
Da mesma forma, após 2008, aumentaram as transferências do Tesouro para capitalizar o BNDES a uma taxa inferior ao custo de captação do governo (a taxa Selic).
Por essas duas razões, sobram menos recursos para serem emprestados, por exemplo, no mercado de dívida longa, dificultando seu desenvolvimento.
Com esses recursos o BNDES concede financiamento, seja por meio de dívida ou participação acionária (BNDESPar), a taxas subsidiadas –muitas vezes, para projetos que não se justificam, porque seu retorno social não é maior do que o retorno privado.
EXPULSÃO
Ao emprestar a uma taxa mesmo que levemente subsidiada para uma empresa com bons ratings, o BNDES dificulta o florescimento do mercado privado de dívida longa, provocando um "efeito expulsão", agravado pelo tamanho do banco. O BNDES financia a "nata do mercado" –grandes empresas que poderiam se financiar de outra forma–, deixando para o mercado privado empréstimos com muito risco ou os mais difíceis de avaliar. Não há como o financiamento privado competir com a alternativa subsidiada.
Além do "efeito expulsão" gerado pela atuação do BNDES, também o histórico de turbulência macroeconômica atrapalha o surgimento do mercado de dívida de longo prazo. Crises fiscais, crises cambiais, superinflação, ou simplesmente inflação alta, como temos agora, geram incertezas que encurtam sobremaneira o horizonte dos agentes.
Do lado da "oferta de crédito", os investidores relutam em comprar títulos privados (e públicos) de longo prazo, a menos que os retornos sejam suficientemente altos para recompensá-los pelos riscos. Do lado da demanda de crédito, os produtores relutam em investir em projetos de longo prazo, a menos, é claro, que obtenham recursos com baixo custo de capital, normalmente providos pelo BNDES.
Tivemos, durante um breve período, a ilusão de que vivíamos em normalidade macroeconômica. Os últimos três anos nos trouxeram de volta à amarga realidade. As intervenções engendradas no governo Dilma Rousseff pioraram ainda mais a situação, ao aumentarem o risco percebido do investidor.
Em tal conjuntura é inviável casar demanda e oferta privadas por financiamento de longo prazo. É sempre bom lembrar que parte substancial das dificuldades fiscais com as quais nos deparamos tem relação com a expansão do balanço do BNDES por meio de aportes do Tesouro –se o leitor identificou alguma circularidade, é porque há uma.
Nesse contexto, temos o caso clássico da galinha e do ovo: quem veio primeiro? É preciso que o BNDES atue fortemente porque o mercado privado de financiamento de longo prazo inexiste? Ou o mercado de financiamento de longo prazo inexiste porque o BNDES ocupa o espaço que lhe caberia com financiamentos subsidiados?
CARA OU COROA
É difícil distinguir entre o ovo e a galinha porque não há evidência empírica experimental em macroeconomia. Seria preciso jogar uma moeda para cima –saindo cara, diminuímos o balanço do BNDES; se sair coroa, aumentamos. Aí esperamos alguns anos e vemos o que terá ocorrido com o mercado de dívida de longo prazo e suas consequências para investimento e produção.
O experimento é, claramente, inviável. É praticamente impossível saber, com a precisão das ciências experimentais, como funcionaria o mercado de crédito de longo prazo na ausência do BNDES.
Mas a historiografia econômica do Brasil dá pistas. Podemos fazer um exercício de "e se" histórico. Apesar de todas suas limitações, argumentamos que ele é útil para entender se o Brasil poderia desenvolver um mercado de dívida de longo prazo no contexto privado.
Há documentação sobre o mercado de crédito no Brasil muito antes da criação do BNDES. Já existiram significativos fluxos de investimento estrangeiro com instrumentos de longo prazo, principalmente no período entre 1882 e 1920, quando o mercado de capitais era aberto e estava integrado ao resto do mundo.
Antes da criação do BNDES, houve um boom de debêntures corporativas de longo prazo. No melhor momento do mercado brasileiro de dívida de longo prazo, o estoque total de debêntures representou 18% do PIB. Na média, entre 1890 e 1915, quando a Primeira Guerra Mundial freou o investimento estrangeiro, o estoque de debêntures representou quase 10% do PIB.
De acordo com cálculos de um dos autores deste texto, Aldo Musacchio, o Brasil nunca recuperou esse nível. Ou seja, houve um mercado de dívida de longo prazo relativamente grande muito antes da existência do BNDES.
Fazemos dois exercícios para estimar qual teria sido o tamanho do mercado de crédito de longo prazo que existiria na ausência do BNDES. Ambos utilizam a informação do tamanho do mercado de debêntures do passado.
O primeiro exercício toma como base os 10% que as debêntures representaram do PIB entre 1890 e 1915. Supondo que o tamanho do mercado hoje fosse 10% do PIB, o estoque total seria R$ 557 bilhões, número próximo do saldo total de empréstimos do BNDES e maior que o saldo de empréstimos do BNDES para o setor privado.
Porém olhar só para o estoque de debêntures corporativas como porcentagem do PIB antes de 1914 pode subestimar o tamanho potencial do mercado de dívida de longo prazo no Brasil –a economia brasileira não só é hoje bem maior como é também mais complexa do que na virada do século 19 para o 20. Não surpreendentemente, o mercado acionário também é maior, o que nos motiva a olhar para a importância das debêntures de longo prazo em relação ao tamanho da bolsa no passado.
Entre 1890 e 1915, o mercado de dívida de longo prazo representou 33% da capitalização do mercado de ações. Supondo que o mercado de dívida de longo prazo poderia representar 33% da capitalização da Bovespa, o mercado privado de debêntures seria R$ 819 bilhões, ou 13,9% do PIB. O estoque de debêntures, excluindo leasing, era R$ 250 bilhões em 2015. Menos de um terço do que seria caso o mercado de títulos de longo prazo representasse a mesma fração do mercado acionário que já representou no passado.
É claro que o exercício é sugestivo. A economia brasileira mudou muito desde 1915. Os projetos financiados pelas debêntures privadas naquela época podem ter sido mais simples, fáceis de financiar. Talvez o mercado privado de debêntures não conseguisse financiar a industrialização dos anos 1940 a 1970. Ainda assim, a evidência histórica mostra inequivocamente que já houve um mercado pujante de debêntures.
Se o mercado de debêntures alcançasse o tamanho que já teve, então o ovo chegaria a ser maior do que a galinha. Nesse caso, o tamanho do mercado de dívida de longo prazo privado seria quase duas vezes o montante que o BNDES empresta para o setor privado atualmente.
A implicação dessa análise é que pode ser desejável uma redução seletiva e cuidadosa dos empréstimos do BNDES. Especificamente, o financiamento com taxas subsidiadas deveria ser restrito aos projetos cujo retorno social seja claramente maior que o retorno privado. Não menos importante, é preciso melhorar o ambiente de negócios para que o risco percebido dos agentes se reduza e os juros iniciem uma vigorosa trajetória de queda.
Há também a possibilidade de o banco atuar mais como garantidor de crédito do que como emprestador direto. Ou seja, o empreendedor se financia em um banco privado, e o BNDES supre parte das garantias.
A nossa história mostra que não há nada específico ao Brasil que nos impeça de perseguir essa estratégia de maior envolvimento privado no crédito de longo prazo. Reconhecemos que a evidência disponível não passa no sarrafo das ciências experimentais. Portanto seria preciso cuidado ao diminuir a intensidade da atuação do BNDES. Mas –inclusive porque as restrições fiscais atuais impõem a diminuição dos desembolsos com empréstimos subsidiados– vale a pena arriscar.
ALDO MUSACCHIO, 41, é professor de negócios na Universidade Brandeis e autor de "Reinventing State Capitalism" (Harvard University Press) com Sergio Lazzarini.
JOÃO MANOEL PINHO DE MELLO, 42, é economista e professor titular do Insper.
SERGIO LAZZARINI, 45, é professor titular de organização e estratégia do Insper.