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    Qual é o ajuste fiscal possível?

    NELSON MARCONI
    MARCO CAPRARO BRANCHER

    17/06/2016 14h19

    O governo divulgou o conteúdo básico da PEC que estabelece o teto de despesas para a União, mas sua aplicação não será suficiente para retornarmos a uma situação superavitária se o financiamento da previdência rural e dos servidores não for equacionado. Além disso, a sua adoção deve valer por um período muito inferior ao proposto (dez anos), sob pena de perdermos todas as conquistas sociais dos últimos anos. Está em jogo o Estado que queremos e a redução das desigualdades; as despesas com educação, saúde e investimentos precisam ser preservadas.

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    A situação das contas públicas é muito desfavorável e a partir de 2014 tornou-se evidente o descompasso entre a evolução das receitas e despesas. Realizar o ajuste fiscal é essencial, mas sua composição fará toda a diferença para a retomada do crescimento. Aqui argumentamos que uma solução que implique em um ajuste seletivo e recupere o superávit preservando os investimentos e os gastos sociais é possível. Defendemos o princípio de que essas despesas não devam ser reduzidas em termos reais. Entendemos também que a limitação à evolução do crescimento real das despesas, em seu agregado, pode ser bem sucedida se aplicada por um período restrito –do contrário teríamos que abdicar das conquistas sociais das últimas décadas e da possibilidade de uso, pelo Poder Executivo, de um fundamental instrumento de política econômica, o orçamento público– e se for equacionado o problema de financiamento da previdência rural e dos servidores. Sem a solução desse problema, o ajuste irá requerer um corte muito extenso e disseminado em todas as despesas, em alguns casos indesejável e inviável social e politicamente, e até mesmo restritivo ao crescimento, como é o caso dos cortes nas despesas com investimento.

    A discussão em torno do ajuste fiscal e sua composição reflete, no fundo, as características do Estado que cada grupo da sociedade almeja. É consensual que todas as principais despesas públicas apresentaram forte crescimento desde o retorno do regime democrático, uma vez que o Estado assumiu novas funções, reforçou substancialmente seu papel nas áreas sociais e para isso ampliou sua estrutura (em parte porque se fazia necessária, em parte porque a preocupação com a eficiência não é o ponto forte do Estado brasileiro e ainda porque os salários são mais elevados que no setor privado). Nesse tema, são usuais duas visões distintas: a receita teria acompanhado a evolução das despesas porque o Estado assumiu uma extensa gama de atribuições ao longo do tempo demandadas pela sociedade ou, alternativamente, o Estado, como se diz, não cabe no PIB, isto é, deve possuir menos atribuições.

    Sustentamos uma posição intermediária. Entendemos que uma série de ganhos e conquistas sociais foram relevantes e devem ser mantidos, mas as regras de acesso devem ser razoáveis (quando não forem universais), evitando vazamentos (beneficiando aqueles que não deviam sê-lo) e ineficiência no alcance (quando não são atingidos aqueles que deveriam ser beneficiados), para que seja possível atender a todas as demandas. É claro que cabem discussões sobre como aumentar a eficiência dos gastos sociais e em investimento (assim como para todos as demais despesas públicas), mas partimos do pressuposto de que não deve haver redução na oferta desses serviços, afora as irregularidades identificadas. Também não trabalhamos com a hipótese de elevação da receita oriunda da venda de ativos, porque entendemos que o ajuste deve ocorrer no fluxo de despesas e receitas, do contrário o ajuste não será duradouro.

    Nosso argumento parte de uma análise de longo prazo para auxiliar na sua compreensão. A tabela abaixo possibilita observar a evolução das receitas e principais despesas do governo federal, excetuadas as empresas estatais que possuem receita própria, em 30 anos (entre 1986 e 2015, quando a série desses dados foi descontinuada). Os períodos estão subdivididos, a partir de 1994, para cada governo e as informações são originárias da execução financeira do Tesouro Nacional, apresentando pequenas diferenças em relação aos dados divulgados segundo a metodologia atualmente adotada para o cálculo do resultado primário.

    Editoria de Arte/Folhapress

    Uma informação salta aos olhos na tabela: as receitas e despesas crescem, em termos reais, continuamente nestes 30 anos de análise, independentemente do grupo político no poder. A receita e a despesa com consumo e investimento crescem fortemente desde o governo FHC, e assim continua o comportamento desse grupo de gastos nos demais governos, aumentando até mais que a despesa com pessoal, cuja evolução, nos períodos FHC e Lula, foi semelhante, enquanto no governo Dilma foi praticamente estancada (sempre em termos reais).

    Infelizmente não há dados da execução financeira relativa às despesas do INSS para os períodos iniciais, mas os dados disponíveis também confirmam um crescimento perene, já exaustivamente debatido. Nos últimos anos, nota-se uma expansão bem menor da receita. O avanço das políticas sociais certamente contribuiu para o comportamento das despesas com custeio, investimento e despesas com pessoal observado nesse período, mas não pode ser o único fator que explica essa tendência, como veremos adiante quando discutirmos os dados mais desagregados.

    O gráfico abaixo também possibilita avaliar, para um período de quase 20 anos, o resultado primário e nominal do governo federal segundo o critério de cálculo adotado atualmente. Nele se confirma a contínua elevação conjunta das despesas e receitas em praticamente todo o período, correlação que é interrompida apenas a partir de 2012 e com maior intensidade a partir de 2014.

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    A despesa com juros e o deficit nominal também se deterioram fortemente a partir de 2014, devido tanto ao próprio comportamento do resultado primário, à elevação da taxa de juros e às operações de "swap", que visaram frear uma maior desvalorização cambial. Por consequência, temos, no acumulado até abril de 2016, um déficit primário de 2,2% do PIB, o pior resultado da série cujo início é 1991; uma despesa com juros da ordem de 6% do PIB (que não se observava desde 2006) e um déficit nominal de 8,2%, patamar observado apenas no período de inflação elevada pré-Plano Real.

    Pode-se questionar se essa elevação conjunta de receitas e despesas é desejada pela sociedade ou sustentável do ponto de vista macroeconômico, ao demandar poupança privada ou externa para financiá-la, mas o fato é que a crise fiscal se manifestou mais intensamente quando surgiu o descompasso entre o crescimento de ambas. Em 2012 já houve um pequeno descolamento entre o crescimento de receitas e despesas, da ordem de 3% em termos reais, mas em 2013 ambas voltaram a evoluir proximamente e em 2014 a evolução da despesa foi 10% superior (em termos reais) à da receita e em 2015, essa diferença atingiu 9%.

    O TAMANHO DO AJUSTE POSSÍVEL E NECESSÁRIO

    Baseados nessa constatação, apresentaremos uma proposta de ajuste que possibilita o retorno do resultado primário ao nível de 2012, que corresponderia hoje a 1,9% do PIB. Por que escolhemos esse período? Por ser uma meta crível que ao mesmo tempo possibilita a preservação dos gastos sociais e com investimentos em um patamar satisfatório e implica em uma recuperação sensível das contas públicas que abrirá espaço para a redução das taxas de juros, consequentemente da respectiva despesa, e do próprio deficit nominal. Portanto, nossos cálculos e projeções terão como ponto de partida tal ano, sempre em comparação com o resultado fiscal acumulado do governo federal até abril de 2016, a valores corrigidos pela inflação, pois são os dados conhecidos pelo público. A previsão de déficit de R$ 170 bilhões, feita pelo governo interino, inclui despesas ainda não realizadas e não especificadas, além de uma margem também não conhecida para absorver uma eventual elevação das despesas e redução da arrecadação, portanto não a adotaremos.

    Os dados da tabela a seguir apresentam um detalhamento dos resultados das contas do governo federal para esse período entre 2012 e abril de 2016 (neste caso, acumulado para os últimos 12 meses). Como resultado desse descolamento entre receitas e despesas, o tamanho do ajuste necessário, hoje, para retornar ao resultado primário (antes de contabilizar os valores do Fundo Soberano e os acertos metodológicos) atingido em 2012 é de R$ 261 bilhões, aproximadamente 4,1% do PIB. Um ajuste fiscal dessa magnitude não é trivial, obviamente.

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    Além disso, a conta de juros também precisaria ser reduzida em R$ 180 bilhões para que o resultado nominal retornasse ao valor (sempre em termos reais) de 2012, que corresponderia hoje a um déficit de 1,3% do PIB. Naquele período, esse mesmo valor do resultado nominal correspondeu a um deficit maior como proporção do PIB (2,4%), e mesmo a relação dívida/PIB apresentava uma trajetória ligeiramente declinante –naquele momento, ao redor de 60%. Portanto, uma meta de valor do resultado nominal igual ao obtido em 2012 também parece ser mais que suficiente para a retomada dessa trajetória. Para isso é fundamental que as taxas de juros se reduzam tão logo o ajuste referente às despesas e receitas primárias entre em vigor.

    EQUACIONAR O FINANCIAMENTO

    Para entendermos a composição desse déficit primário que foi se deteriorando, bem como de um ajuste que seja factível e possibilite o retorno à situação superavitária prévia, é necessário analisar separadamente as contas da Previdência e as demais despesas e receitas primárias do governo, como apresentadas na tabela abaixo.

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    Conforme se observa na tabela acima, o resultado primário do governo federal (desconsiderando o ajuste metodológico, a discrepância estatística e o Fundo Soberano) foi negativo nos 12 meses encerrados em abril (sempre a valores corrigidos pela inflação) em R$ 143,9 bilhões. As contas da Previdência, incluindo as despesas chamadas de urbanas (regras usuais do INSS), rurais e dos servidores (normalmente incluídas nas despesas com pessoal), contabilizaram um resultado negativo em R$ 194,9 bilhões. Portanto, as demais contas do Tesouro, excluída a Previdência, geraram um resultado, acumulado em doze meses até abril, positivo de cerca de R$ 51 bilhões. Ainda que o resultado dessas outras contas seja fortemente declinante, os números demonstram que o principal componente do déficit primário hoje é o resultado do regime previdenciário, que merece análise pormenorizada.

    Enquanto no regime previdenciário mais geral (intitulado urbano) o resultado é negativo, por enquanto não expressivo (déficit de R$ 7,9 bilhões), mas com tendência à deterioração, nos regimes de aposentadoria rural e dos servidores o déficit somado atinge R$ 187 bilhões –portanto maior que o déficit primário estimado pelo governo interino para o conjunto de todo o governo federal no ano de 2016. Enquanto no regime de aposentadorias urbanas o problema consiste na tendência ao desequilíbrio devido às regras de concessão e à evolução demográfica do país, e mais recentemente à queda da arrecadação também provocada pelo desemprego (a desoneração da folha é contabilizada como despesa de custeio do Tesouro, e não nestas rubricas), há claramente um problema de financiamento nos regimes de aposentadorias rurais e dos servidores.

    Mesmo se estimarmos uma redução em termos reais de 10% no conjunto das despesas previdenciárias em dois anos –o que representaria uma forte contenção desses gastos, socialmente indesejável, principalmente quando falamos da aposentadoria urbana e principalmente a rural– e uma elevação real de 10% na receita, em função da recuperação do nível de atividade e de ganhos adicionais na fiscalização, por exemplo –estimativa também muito otimista– o déficit previdenciário cairia praticamente pela metade, mas ainda assim equivaleria a R$ 98,5 bilhões. Como o tamanho do ajuste necessário para retornar ao resultado primário de 2012, aqui tomado como parâmetro, é de R$ 261 bilhões, as demais contas primárias do governo federal (excluídas portanto a Previdência e os juros) teriam que atingir um resultado positivo de R$ 366,5 bilhões.

    Hoje situam-se na casa dos R$ 50 bi, conforme já citado, e assim teriam que gerar um superávit adicional, em relação ao resultado atual, de R$ 215,4 bilhões. Tal resultado só seria alcançado se as receitas do governo (excluída a Previdência) crescessem 20% em termos reais e as demais despesas (idem) também caíssem 20% em termos reais, o que é praticamente impossível. Este é um mero exercício de simulação, mas é útil para demonstrar o tamanho do ajuste que seria necessário, e sua inviabilidade (mesmo que programado para um período superior a dois anos, por exemplo), seja lá qual for a combinação entre aumento de receitas e queda das despesas, sem que os mecanismos de financiamento do regime de aposentadorias no meio rural e dos servidores sejam alterados. Qualquer alternativa realista de ajuste passa por uma redução do déficit desses dois regimes, pois do contrário o corte nos demais gastos sociais teria que ser radical, o reduziria intensamente o salário indireto que boa parte da população recebe na forma de serviços sociais e que são fundamentais em uma sociedade ainda tão desigual como a nossa.

    A elevação da idade mínima de aposentadoria para todos é, sem dúvida, uma medida importante, mas não surtiria efeito imediato; por seu turno, a necessária desvinculação entre a evolução dos benefícios previdenciários e do salário mínimo contribuiria para estancar rapidamente a evolução das despesas com as aposentadorias urbanas e rurais, mas não equacionaria o problema de insuficiência de financiamento para a aposentadoria rural e dos servidores.

    A aposentadoria rural é praticamente uma despesa assistencial, e deve ser garantida para prover um padrão mínimo de vida para aqueles que atingem uma idade avançada e trabalharam em condições precárias fora dos grandes centros urbanos. O valor de seu benefício médio atinge apenas R$ 813 (média nominal dos últimos 12 meses até março). Há irregularidades? Que sejam fiscalizadas e corrigidas. Mas o importante, neste caso, é que haja uma forma de financiar essas despesas. Há que ser definida uma fonte específica para isso. O equilíbrio desse regime terá que vir do aumento da receita e não da queda da despesa em termos reais.

    Os candidatos principais são os diversos setores que hoje são isentos ou beneficiados com renúncias fiscais, cujas estimativas alcançam R$ 66 bilhões (valores acumulados em 12 meses até abril, a preços desse mesmo mês), segundo dados do Tesouro Nacional, e o retorno da tributação sobre lucros e dividendos distribuídos, que pode gerar uma receita adicional, segundo estudos de Sergio Gobetti e Rodrigo Orair, do Ipea, de aproximadamente R$ 50 bilhões por ano (a valores correntes, neste caso). Argumenta-se que esse tributo desestimularia o investimento. Na verdade, esse desestímulo ocorreria se fosse elevada a tributação sobre os lucros retidos. Essa proposta corresponderia a um mecanismo de correção das distorções decorrentes da não tributação da parcela da renda não assalariada das pessoas físicas mais ricas. De fato, o estudo de Gobetti e Orair demonstra o caráter fortemente regressivo que o Imposto de Renda adquire a partir de um certo nível de renda mensal, a saber mais de 20 salários mínimos.

    No caso dos servidores, o déficit é muito próximo ao observado no regime das aposentadorias rurais (se contabilizarmos como receita apenas a contribuição dos próprios servidores e não a chamada parcela "patronal", que é também oriunda da própria receita do governo). Porém, tal desequilíbrio significa uma transferência de renda para uma camada da sociedade que se encontra entre os mais ricos, pois o benefício médio atinge, neste caso, R$ 7.711 (média nominal em 2015) e o número de beneficiários é bem inferior. Ainda que os fundos de pensão tenham sido regulamentados no início de 2013, há um imenso estoque de servidores que se aposentará pelas regras anteriores, com proventos praticamente integrais. Nesse caso, a alíquota de contribuição deveria ser majorada, para os 14% possibilitados por decisão do STF. Essa elevação pode representar um crescimento das receitas da ordem de R$ 3 bilhões ao ano. É pouco, frente ao déficit observado. Portanto, de forma complementar, a regra de paridade entre reajustes de ativos e inativos deveria ser eliminada, e as aposentadorias dos servidores seriam o mais importante candidato, dentre os itens de despesas, a sofrer reajustes inferiores à inflação.

    Supondo uma redução de 50% das isenções fiscais atuais, a redução da base não tributável do Imposto de Renda por meio do retorno da tributação sobre lucros e dividendos distribuídos, a elevação da alíquota de contribuição dos servidores e um crescimento real da receita de 5%, possível quando a economia retomar o crescimento, a receita previdenciária cresceria em torno de R$ 110 bilhões. Mantida a despesa com aposentadorias urbanas e rurais constantes em termos reais, e reduzindo a despesa com aposentadoras dos servidores em 5% em termos reais, o déficit do sistema previdenciário cairia para R$ 79 bilhões.

    Se houver um aumento real das despesas previdenciárias em virtude do crescimento do número de aposentados, a redução nas despesas com servidores, em termos reais, terá que ser maior. Ainda assim, o novo déficit estimado segundo essa simulação é muito elevado, mas representa uma redução de praticamente 60% em relação ao patamar atual, e não requer a alternativa de redução do valor real das aposentadorias no meio urbano e rural que é socialmente indesejável. A manutenção da atual estrutura de receitas iria requerer um corte substancial de despesas com aposentadorias urbanas e rurais e mesmo assim geraria um resultado inferior ao estimado para essa proposta.

    Se o déficit da previdência for reduzido para R$ 79 bilhões, as demais contas do governo teriam que apresentar um resultado positivo de R$ 196 bilhões para retornar ao superávit primário obtido em 2012 e, portanto, R$ 145 bilhões superior ao observado atualmente (lembrando que os números sempre estão corrigidos pela inflação até abril de 2016), inferior ao que teria que ser gerado se não houvesse nenhuma mudança na estrutura de financiamento à Previdência e ocorresse um corte substancial de todas as despesas sem distinção (estimado em R$ 215 bilhões, conforme já afirmado). A segunda parte de nossa análise busca identificar caminhos para o governo obter esse resultado adicional de R$ 145 bilhões. Para tal, é necessário analisar a estrutura das demais despesas primárias do governo, incluídas na tabela em seguida.

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    Quando excluímos a Previdência da análise, observamos que o resultado das demais contas primárias do governo federal também apresentou forte deterioração a partir de 2014 (entre 2004 e 2012, situou-se no intervalo entre 228 e 270 milhões, sempre a valores constantes, com exceção de 2009). Foi quando as receitas deixaram de acompanhar a evolução das despesas: quando comparadas a 2013, as receitas diminuíram 14% em termos reais (até abril de 2016), enquanto as despesas continuaram se elevando, sendo que a alta atingiu 13% no mesmo período. Em 2014, a arrecadação, que já tinha interrompido uma trajetória de crescimento em função das desonerações, começou a sofrer os efeitos da queda do nível de atividade e o governo federal, que até esse momento vinha mantendo a evolução das despesas próxima à das receitas, deu uma guinada em seu comportamento e expandiu ainda mais fortemente as despesas.

    As despesas com pessoal ativo evoluíram significativamente entre 1999 e 2010 (67,4% em termos reais; dado não integrante da Tabela 4) e depois se estabilizaram, porém em um patamar elevado. As despesas com capital (investimentos) declinaram fortemente nos últimos anos (26% entre 2012 e abril de 2016 e 36% se comparadas ao patamar de 2014, o que explica o impacto negativo da tentativa de ajuste fiscal em 2015 sobre o nível de atividade). A despesa discricionária de custeio, composta por gastos administrativos e outras despesas importantes na área social, como em saúde, educação e assistência social, arrefeceu seu crescimento nos últimos anos, apesar de ter apresentado evolução significativa desde 2007 (56%).

    Em relação a 2012 o aumento é bem menor ( 9%), e observa-se uma queda de 5% em relação a 2014. Dentre estes gastos, merecem destaque também a queda dos gastos com custeio diretamente administrativo (não incluídos na tabela, e que incluem material de consumo, manutenção, serviços administrativos e operacionais terceirizados, diárias e passagens, dentre outros), que atinge 7% em comparação a 2012. Portanto, as despesas discricionárias com custeio foram controladas no passado recente, ainda que em patamar elevado; por isso ainda há espaço para novas reduções, mas entendemos que as despesas com educação e saúde devem ser preservadas nesse processo. Certamente há desperdícios que podem ser controlados, e os problemas de vazamento e ineficiência no alcance, mesmo que as essas políticas sejam caracterizadas como universais (acesso irrestrito), são evidentes. Mas melhorar a eficiência dessas despesas não pode significar uma oferta menor desses serviços.

    Dentre as despesas incluídas na tabela 4, aquele que mais contribuiu para o deterioração das contas foi o das despesas obrigatórias de custeio. Nela estão incluídas, dentre outros, a complementação do governo federal às despesas com educação dos outros níveis de poderes (Fundeb), o pagamento de abono e seguro desemprego, os benefícios da chamada LOAS (Lei Orgânica da Assistência Social) e da renda mensal vitalícia, as desonerações ao setor produtivo, os subsídios e programas de financiamento a setores específicos e o PSI (programa de Sustentação do Investimento), que concedeu empréstimos para empresas a taxa s de juros adequadas para quem investisse na produção, aquisição e exportação de bens de capital e na inovação tecnológica, sendo que novos contratos não podem mais ser celebrados sob esse programa.

    Como vemos, esse grupo de gastos inclui tanto despesas sociais como direcionadas a setores produtivos específicos e investimentos. Aqui será fundamental uma escolha por parte do governo: entendemos que os benefícios sociais devem ser mantidos e apenas corrigidas suas distorções, novamente em termos de vazamentos e alcance, além de desindexados da evolução do salário mínimo; enquanto os benefícios ao setor produtivo deveriam ser muito seletivos, possivelmente privilegiando as empresas que inovassem e exportassem bens manufaturados, medida essencial para o crescimento consistente da economia brasileira.

    Em relação ao conjunto de despesas e receitas incluídas na tabela 4, primeiramente defendemos, e mostramos que é possível, uma redução das despesas com pessoal ativo em termos reais (em nossa proposta, atingiria 5%). Essa diminuição é possibilitada pelos aumentos reais obtidos ao longo das décadas de 1990 e 2000, conforme demonstrado na Tabela 1; além disso, a despesa média mensal com ativos nos Três Poderes atingiu, em 2015, R$ 7.941, enquanto o salário médio dos empregados no setor privado atingiu R$ 1790 no mesmo período, segundo a PNAD Contínua; certamente há uma diferença entre o nível de escolaridade dos dois grupos, mas que não justifica tamanha disparidade. Também entendemos como necessária a recuperação dos investimentos ao patamar de 2012, de modo a contribuir para a recuperação do nível de atividade e a recuperação da infraestrutura (juntamente com um programa de concessão de obras públicas). Se supusermos uma elevação da arrecadação de 7,5% quando a atividade econômica se recuperar (metade da perda sofrida após 2013), sem considerar as receitas previdenciárias, seria necessária uma redução de R$ 96 bilhões nas despesas de custeio para retornarmos ao superávit primário de 2012.

    Essa redução nas despesas com custeio poderá ser alcançada se as atuais desonerações, bem como os atuais subsídios e operações de crédito a setores específicos forem reduzidos em 70% (em relação ao valor atual) e o custeio discricionário, que parou de se elevar, for reduzido em 10% adicionais, em decorrência de uma melhoria na gestão que há muitos anos é necessária na administração pública brasileira. Mas esta decisão implica em uma clara opção pela preservação das despesas sociais.

    Frisamos que esse conjunto de sugestões envolve uma série de hipóteses e logicamente, pode ser substituída por diversas outras combinações, mas é factível e passível de implementação. Existem algumas despesas previstas para este ano que não estão computadas em nossos cálculos, como o aumento salarial para os servidores, ao qual somos totalmente contrários. Nossos cálculos indicam o esforço brutal, que envolverá diversas escolhas, mas necessário para recuperar as finanças púbicas, e essa elevação salarial equivaleria, hoje, a 1% do PIB, metade do superávit que sugerimos como meta neste estudo.

    Pretendemos mostrar com esse artigo que:
    1. a composição do ajuste fiscal envolve escolhas, e defendemos que o valor real das despesas com educação e saúde deve ser preservado e com investimentos, recuperado;

    2. a proibição de aumentos reais das despesas acima da inflação não nos possibilitará atingir um superávit primário semelhante ao de 2012 (por exemplo), em função da insuficiência de financiamento à previdência rural e dos servidores; se essa questão não for equacionada, o superávit só será alcançado com profundos cortes em todas as despesas, impossíveis por inviabilizarem a maioria das políticas públicas, inclusive nas áreas sociais e de investimento;

    3. a regra que proíbe a evolução das despesas em termos reais, se existir, deve ser temporária, sob pena de perdermos todas as recentes conquistas sociais; posteriormente, quando as finanças públicas se equilibrarem, a política fiscal deve ser anticíclica, isto é, a elevação dos gastos em momento de expansão deve ser compensada pela redução em períodos de crise;

    4. é necessário que o ajuste também inclua uma alteração na estrutura tributária de modo a taxar os rendimentos mais elevados e pessoas físicas atualmente isentos.

    Com esse conjunto de medidas, ou outro que combine redução de despesas e aumento de receitas, é possível realizar o ajuste ao longo de dois ou três anos e voltarmos a registrar o resultado observado em 2012, que atualmente corresponde a aproximadamente 2% do PIB. Dependerá das escolhas do governo, interino ou não, que precisam ser influenciadas pelas preferências e pelo debate na sociedade. Essa não é uma discussão meramente contábil; ela envolve um modelo de Estado e define grupos que serão privilegiados por alguns anos. É fundamental que a população atente para esse fato.

    NELSON MARCONI é professor de economia da EESP/FGV e presidente da Associação Keynesiana Brasileira. O artigo expressa exclusivamente as opiniões do autor.

    MARCO CAPRARO BRANCHER é economista pela EESP/FGV

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