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    Criminosos da ditadura envergonhados na Argentina

    JOÃO PINA

    26/06/2016 02h08

    Bahía Blanca, 2012

    Foi em Bahía Blanca, ao sul da Província de Buenos Aires, um dos lugares onde maior repressão política existiu na última ditadura militar argentina (1976-83). Na cidade, que tinha aproximadamente 180 mil habitantes, foram perseguidos, sequestrados, torturados, desaparecidos ou fuzilados mais de um milhar de jovens que defendiam valores de esquerda –na sua maioria estudantes, sindicalistas e operários. Ainda hoje é uma cidade profundamente militarizada, não só pelo Exército, mas também por importantes bases da Marinha na região, existindo ainda uma tradição e sentido de corporação militares sem paralelo noutros lugares da Argentina.

    Ocorria em fevereiro de 2012 o já histórico julgamento do 5º Corpo de Exército, no qual 17 militares e policiais federais argentinos eram acusados de crimes contra a humanidade. No passado, já tinha acompanhado e fotografado alguns julgamentos para poder documentar o feito inédito na região –um país julgar os próprios crimes cometidos por agentes do Estado, no seu próprio território e pelos seus próprios tribunais.

    Pouco antes eu tinha regressado à Argentina para continuar uma investigação fotográfica, que levava já vários anos, sobre a Operação Condor e as ditaduras militares no Cone Sul nos idos anos 70.

    João Pina
    Militar grita com fotógrafo em julgamento por crimes da ditadura
    Militar grita com fotógrafo em julgamento por crimes da ditadura

    Assim, pedi autorização ao juiz que presidia o tribunal para o fotografar. Para minha surpresa, o meu pedido foi aceito no mesmo dia e foi-me dada carta branca pelo tribunal para circular por toda a sala e fotografar durante dez minutos antes de a audiência começar.

    Temendo problemas nos horários dos voos, decidi voar na véspera da audiência para Bahía. Lá, fui conversar com Abel Córdoba, um maciço procurador, que chefiava a acusação do Estado argentino aos 17 homens. Ele contou-me um pouco sobre quem era cada um dos acusados e, para minha surpresa, soube que muito poucos tinham sido fotografados antes desse julgamento, sendo as suas caras desconhecidas. Assim, estava tudo pronto para o dia seguinte.

    Entrei no auditório da universidade que servia de sala de audiências, onde o chefe da gendarmeria que fazia a segurança do local me perguntou se queria fotografar os acusados a saírem do ônibus que os transportava da prisão até ao tribunal. Posicionado frente à saída do veículo, fotografei cada um a sair algemado. Logo depois deixaram-me entrar na sala, e fiquei sozinho frente a frente com os acusados e seus advogados. Arrepiado por ter todos aqueles olhos sobre mim, fiz o que melhor sei: levantar a máquina produzida nos anos 60 e pôr-me a fotografar.

    Mal o fiz, começou uma gritaria entre acusados e advogados a tentarem fazer com que eu parasse, usando de argumentos ridículos, passando por burocracias até insultos à minha mãe, culminando com um advogado que entrou na minha foto mostrando-me o dedo do meio.

    Em pouco tempo, sabia que os juízes iam entrar e por isso tinha que me concentrar e fazer o maior número de fotos possível; portanto procurava esquivar os advogados que tentavam se pôr à frente da minha câmera para que não fotografasse seus clientes, apesar de estar autorizado pelo tribunal, e alguns acusados iam usando jornais e cadernos para tapar as suas caras.

    Reparei, ao navegar pela sala com o meu olhar, num grupo de homens do lado esquerdo, que me olhava com raiva, de punhos fechados, e sempre que levantava a máquina tapavam os rostos com o que podiam. Assim, fiz questão de me focar nesse grupo, pois algo me dizia que era muito simbólico o fato de homens que continuavam a defender que "salvaram" o país estarem agora, perante uma simples máquina fotográfica, visivelmente agitados e envergonhados. Hoje a imagem foi apropriada pelos grupos de direitos humanos na Argentina e serve de cartaz em alguns dos atuais julgamentos de crimes contra a humanidade.

    JOÃO PINA, 35, é fotógrafo português e expõe na mostra "Arquivo Ex Machina - Identidade e Conflito na América Latina", no Itaú Cultural, em São Paulo, até 7/8.

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