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    Leia três poemas de Mia Couto

    03/07/2016 02h00

    MIA COUTO
    ilustração DEBORAH PAIVA

    SOBRE O TEXTO "Poemas Escolhidos", que a Companhia das Letras lança dia 18/7 e do qual fazem parte os textos acima, reúne pela primeira vez em edição brasileira a escrita em verso do autor moçambicano.

    Deborah Paiva/Folhapress
    Pintura de Deborah Paiva para a Ilustríssima de 03 de julho. ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***

    TRÊS POEMAS FAMILIARES

    IGNORÂNCIAS PATERNAS

    Altas horas,
    já secos cuspos e copos,
    meu pai dizia:
    vou reparar o teto.
    E saía, para além da noite,
    por interditos caminhos.
    Minha mãe
    retorcia a alma
    nas magras mãos.
    No peito, não no ventre,
    a mãe vai gerando filhos.
    Por trás dos cortinados
    seu olhar se desfiava
    no longo rosário da espera.
    Cegos para as suas fadigas
    nós, os filhos,
    pedíamos que nos alonjasse o medo.
    E a voz dela acontecia
    como inundação do rio:
    lavando águas e tristezas.
    Pobre do vosso pai, suspirava.
    Que pena ela dele sentia
    que, no escuro, em vão procurava.
    A nossa casa, de tão alta,
    não poderia nunca ter telhado.
    Filhos deitados,
    medos dormindo:
    antes do meu pai regressar
    já minha mãe
    tinha reparado
    as telhas todas do mundo.

    *

    MUDANÇA DE IDADE

    Para explicar
    os excessos do meu irmão
    a minha mãe dizia:
    está na mudança de idade.
    Na altura,
    eu não tinha idade nenhuma
    e o tempo era todo meu.
    Despontavam borbulhas
    no rosto do meu irmão,
    eu morria de inveja
    enquanto me perguntava:
    em que idade a idade muda?
    Que vida,
    escondida de mim, vivia ele?
    Em que adiantada estação
    o tempo lhe vinha comer à mão?
    Na espera de recompensa,
    eu à lua pedia uma outra idade.
    Respondiam-me batuques
    mas vinham de longe,
    de onde já não chega o luar.
    Antes de dormirmos
    a mãe vinha esticar os lençóis
    que era um modo
    de beijar o nosso sono.
    Meu anjo, não durmas triste, pedia.
    E eu não sabia
    se era comigo que ela falava.
    A tristeza, dizia,
    é uma doença envergonhada.
    Não aprendas a gostar dessa doença.
    As suas palavras
    soavam mais longe
    que os tambores noturnos.
    O que invejas, falava a mãe, não é a idade.
    É a vida
    para além do sonho.
    Idades mudaram-me,
    calaram-se tambores,
    na lua se anichou a materna voz.
    E eu já nada reclamo.
    Agora sei:
    apenas o amor nos rouba do tempo.
    E ainda hoje
    estico os lençóis
    antes de adormecer.

    *

    A PRIMEIRA VEZ DA IDADE

    A vez
    que tive mais idade
    foi aos cinco anos.
    Meu pai,
    com solenidade que eu desconhecia,
    perante seus superiores hierárquicos,
    apontou e disse:
    – Este é meu filho!
    E deu-me a mão
    coroando-me rei.

    MIA COUTO, 60, biólogo e escritor moçambicano, é autor de "O Fio das Missangas" (Companhia das Letras), entre outros.

    DEBORAH PAIVA, 66, artista plástica, é formada em história pela USP.

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