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    BARARENA, 2014

    Ossos roubados e outras memórias da revolta da Cabanagem

    ANDRÉ PENTEADO

    17/07/2016 02h00

    Perdas e suas consequências, tanto a curto quanto a longo prazo, são um assunto central em minha produção artística. Busco falar de cicatrizes, marcas profundas, mesmo que não possam ser vistas a olho nu, pois acredito que a história de um país pode ser pensada como um conjunto de traumas.

    Andre Penteado/Acervo Pessoal
    Credito: Andre Penteado/ Acervo pessoal Restos mortais do Conego Baptista Campos. Para o Arquivo Aberto da Ilustríssima ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    Restos mortais que seriam do cônego Baptista Campos, mentor da Cabanagem

    Por isso decidi fazer um livro sobre a Cabanagem e desdobrar o processo em uma série de fotografias e em um vídeo. O movimento foi uma das maiores revoltas da história brasileira. Tomando toda a região amazônica entre 1835 e 1840, causou a morte de aproximadamente 30 mil pessoas e hoje é quase desconhecida. Interessado no impacto que deixou na região, passei dois meses e meio visitando locais importantes, buscando vestígios, tanto reais quanto simbólicos, que pudesse fotografar.

    Um dos lugares que queria visitar era onde estariam os restos mortais do mentor intelectual da Cabanagem, o cônego Batista Campos, cuja morte causou a eclosão do movimento. Minha pesquisa dizia que os ossos estavam na igreja de Nossa Senhora de Nazaré, em Barcarena, a 111 km de Belém.

    Munido dessa informação, fui a Barcarena e achei a referida igreja, mas lá me disseram que a informação não procedia.

    Hospedei-me no hotel Equinócio, onde conheci Laura, a gerente da casa. Ao saber do meu projeto, se apresentou como professora de história aposentada. Disse ainda que seu interesse pela Cabanagem surgiu quando descobriu o quanto a história real da revolta era diferente da que estava escrita nos livros. Estes apenas mencionam as supostas atrocidades cometidas pelos cabanos, sem falar do massacre deles pelas forças imperiais. Ela me contou que, na realidade, os restos mortais de Batista Campos estavam na igreja da vila de São Francisco Xavier, que ficava a poucos quilômetros dali.

    Ela ouvira a história da ossada de uma senhora chamada Benta. Disse que Batista Campos havia sido enterrado originalmente na igreja da vila e que seu corpo permaneceu lá até os anos 1980, quando o governo do Estado decidiu levar a ossada para o Memorial da Cabanagem, em Belém –encomendado por Jader Barbalho a Niemeyer e que hoje está abandonado.

    Descontente com a ideia da mudança, dona Benta roubou a ossada da igreja, substituindo-a por outra, e levou-a para casa, onde foi escondida embaixo da cama. Quando a ossada falsa foi levada para Belém, Benta devolveu a original à igreja, onde está até hoje, em uma caixa de mármore exposta ao público.

    No dia seguinte, fui à pequena vila e, em um largo em frente ao rio Itaporanga, encontrei uma igreja com arquitetura moderna, provavelmente construída nos anos 1970. A porta principal estava trancada, mas uma porta lateral dava entrada para um salão onde um grupo de mulheres se reunia.

    Ao me verem entrar, todas se calaram, mas uma delas se levantou e perguntou por quem eu procurava. Ao saber, me guiou até o interior da igreja e apontou para uma parede ao lado do altar. Nela se via uma pequena janela de vidro com uma caixa dentro na qual estava inscrito: "RESTOS MORTAES DO CONEGO BAPTISTA CAMPOS". Fiz algumas fotos através do vidro e comentei sem esperanças que seria interessante ver os ossos propriamente ditos. Para minha surpresa, ela disse que não teria problema. Deu a volta no altar, tirou a caixa, colocou-a em cima de uma bancada e abriu-a, expondo lascas de ossos.

    Ela disse, então, que precisava voltar para a reunião e que eu poderia ficar quanto tempo precisasse. Fiquei mais uns 30 minutos, fotografando e pensando se haveria alguma forma de comprovar que os ossos eram mesmo de Batista Campos. A veracidade dos ossos, no entanto, era secundária para o meu projeto. Muito mais importante era a relação das pessoas daquela comunidade com o material.

    Satisfeito com as imagens, agradeci a moça da igreja e perguntei sobre dona Benta. Ela me disse que a velha senhora estava viajando, mas que eu poderia conversar com dona Nair, que também estava envolvida no roubo dos ossos.

    Com o calor do meio da tarde, a rua estava deserta e dona Nair desconfiou quando bati palma à sua porta. Porém, ao ouvir que eu queria saber da história dos restos de Batista Campos, logo abriu um sorriso e me pediu para entrar.

    Sentamos em sua varanda e conversamos por uma hora. Ela me contou que ouvira a história da Cabanagem de seus bisavós, que a presenciaram. Disse-me também que Batista Campos era filho de Barcarena, que morrera por causa de uma "espinha carnal" e que seu último desejo fora ser enterrado na vila de São Francisco Xavier.

    Foi por conta do desejo do cônego que ela se revoltou quando o governo quis levar a ossada para Belém: não era possível desrespeitar o desejo de um homem santo.

    Dona Nair me contou a história de Barcarena, das lutas Cabanas, das dificuldades enfrentadas pelo povo da região desde sempre e de como isso tudo tinha servido de incentivo para que ela se tornasse líder comunitária. Embora nunca tenha pegado em armas, essa senhora, assim como tantos outros que encontrei no Pará, me pareceu ser uma verdadeira descendente dos Cabanos. Antes de ir embora, pedi para fazer seu retrato.

    ANDRÉ PENTEADO, 46, artista visual e fotógrafo, expõe na coletiva "Arquivo Ex Machina - Identidade e Conflito na América Latina", no Itaú Cultural, até 7/8, e na individual "Não Estou Sozinho", no Centro Cultural São Paulo, até 21/8.

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