• Ilustríssima

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    Exposição traz fotos de Robert Capa que são marco da fotografia de guerra

    LEÃO SERVA

    17/07/2016 02h00 - Atualizado às 15h09 Erramos: esse conteúdo foi alterado

    RESUMO A partir do dia 23/7 será exposto em São Paulo o acervo de imagens que Robert Capa, sua mulher, Gerda Taro, e David Seymour fizeram durante a Guerra Civil Espanhola (1936-39). O material, que só veio à tona nos anos 1990, é um marco na história da formação do fotojornalismo de guerra.

    Robert Capa/ Internacional Center of Photography/ Magnum Photos
    Marinheiros em nuvem de poeira, rio Segre, front Aragão, perto de Fraga, Espanha, 7 de novembro de 1938; ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    Marinheiros em meio a uma nuvem de poeira no rio Segre, perto de Fraga, na Espanha, no dia 7 de novembro de 1938

    Imagine que revolução seria provocada nos estudos sobre o Renascimento se, de repente, surgisse uma caixa com centenas ou milhares de esboços e trabalhos do começo da produção de Leonardo da Vinci. Foi mais ou menos o que aconteceu com o nascimento da fotografia de guerra quando foram encontrados 4.500 negativos que Robert Capa, sua mulher Gerda Taro e seu amigo David "Chim" Seymour produziram na Guerra Civil Espanhola (1936-39). Esse período marcou o início da consagração dos três e a construção das bases da fotografia de guerra do século 20, da qual Capa é, como da Vinci, ao mesmo tempo mestre e referência teórica.

    Capa mantinha um estúdio em Paris onde guardava os negativos produzidos pelos três amigos. No final de 1939, com o início da Segunda Guerra Mundial e a iminência da invasão da França pelo exército alemão, o assistente que cuidava do estúdio embalou o arquivo e o entregou a uma pessoa, para proteção. E nunca mais se teve notícias do conjunto.

    Em resumo, depois da invasão da França, o material passou à guarda de um diplomata mexicano junto ao governo de Vichy (regime fantoche francês que governava as áreas não ocupadas), que o levou ao México em meio à guerra. Nas décadas seguintes, com os três autores mortos, o irmão mais novo de Capa, Cornell, perseguiu o material sem sucesso.

    Nos anos 1990, o material havia passado para um sobrinho do diplomata, o cineasta Benjamin Tarver, que em 2007 decidiu entregá-lo ao ICP (centro internacional de fotografia, em inglês), fundado por Cornell. O material não estava em uma mala, mas em três caixas contendo negativos, ainda enrolados, e envelopes com tiras já editadas e contatos. Pouco tempo depois de receber o Graal de sua vida, o irmão de Capa morreu.

    Gerda Taro, Robert Capa e David "Chim" Seymour eram como "nomes de guerra" dos três grandes repórteres fotográficos. Eles eram judeus e esquerdistas exilados na França em um tempo marcado pelo antissemitismo. Gerda era Gerta Pohorylle, alemã, nascida em 1910. Capa era Endre Friedmann, nascido em 1913; aos 17 anos, tinha deixado a Hungria natal, fugindo da perseguição por militância esquerdista, buscou primeiro exílio na Alemanha, onde iniciou a vida como fotógrafo, em Berlim. Chim era Dawid Szymin, nascido na Polônia em 1911; estudou artes gráficas em Leipzig até 1932, quando mudou para a capital francesa.

    NAZISMO

    Robert Capa/ Internacional Center of Photography/ Magnum Photos
    Herbert Hemingway, Hebert Mathews, jornalista do â€New York Timesâ€, e dois soldados republicanos, Teruel, Espanha, final de dezembro de 1937, ambas de Robert Capa ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    Ernest Hemingway, Hebert Mathews, jornalista do "New York Times", e dois soldados republicanos em Teruel, na Espanha, no final de dezembro de 1937

    Com a ascensão do nazismo ao poder na Alemanha, em 1933, tentavam a vida em Paris. Chim foi o primeiro a estabelecer uma vida profissional: para fazer dinheiro, começou a fotografar cenas de rua, retratos de gente comum, que passou a publicar na revista "Regards" e depois no jornal "Ce Soir", publicações de esquerda.

    Os três viram no conflito espanhol uma grande oportunidade de trabalho e de conquista de destaque profissional. Chim foi o primeiro a chegar, em abril de 1936, antes das tensões se tornarem uma guerra civil entre o governo republicano, de esquerda, e os monarquistas, com apoio da Alemanha nazista e da Itália fascista. Capa e Taro chegaram em seguida. A maior parte do que produziriam estava na Valise Mexicana.

    Os 4.500 fotogramas, divididos de forma semelhante entre os três, são representativos de um momento crucial do desenvolvimento do fotojornalismo. Neles, vê-se Capa experimentando o estilo que o consagraria: buscando trabalhar junto às cenas e, em algumas fotos de ação, criando imagens tremidas, sem foco, o que resulta em contorno pouco definido dos elementos. Mais tarde, resumiria esses procedimentos em dois mandamentos frequentemente citados: um que diz que uma foto não é boa quando não é feita suficientemente de perto; e outro que propõe que a foto de guerra precisa ser "ligeiramente fora de foco".

    Os negativos de Gerda Taro se dividem entre os iniciais, quadrados, produzidos com câmera Rolleiflex, e, depois, retangulares, feitos com câmera Leica. Ela realizava, como todo o fotojornalismo faria, a transição da máquina mais pesada e menos ágil (o fotógrafo tinha que olhar o visor de cima para baixo), para câmeras 35mm, mais leves e usadas no nível do olho, que Capa e Chim já utilizavam.

    É nessa época que Capa passa a ser chamado de "o maior fotógrafo de guerra do mundo" (em um perfil na revista "Picture Post").

    Uma das constatações dos estudiosos que durante anos se debruçaram sobre os 4.500 negativos que formam a chamada Valise Mexicana é a grande frequência com que fotografias marcantes não retratavam o que passaram a significar depois de publicadas, muitas vezes por defeito das legendas feitas por seus editores.

    Esse deslocamento de sentido fica claro no caso de uma foto de Chim que mostra uma mulher amamentando o filho bebê durante um comício republicano. Recortada, ela seria usada em uma montagem, na capa de um livro, como se as pessoas da foto olhassem aviões e bombas alemãs.

    Além disso, a análise dos milhares de fotogramas mostrou também que algumas das fotos atribuídas a Robert Capa foram em verdade feitas por sua mulher, Gerda Taro, ou por "Chim", o que talvez se deva ao fato de os três trabalharem como uma agência informal.

    Ao buscar a foto "ligeiramente fora de foco", Capa punha em relevo um paradoxo do desenvolvimento da fotografia. Até meados do século 19, a química dos negativos e a mecânica das câmeras impunham longo tempo de exposição para formar a imagem. Era o tempo das fotos posadas, quando sumiam os elementos que se moviam. Quando não desapareciam, os objetos em movimento pareciam ter uma aura, desfazendo a exatidão de seu contorno. Em muitas fotografias antigas, pode-se notar uma ou mais áreas borradas, que traduziam movimento.

    NITIDEZ

    Na década de 1930, os equipamentos fotográficos já tinham capacidade de retratar objetos em velocidade, como trens ou aviões, que podiam parecer estáticos. Isso criava uma contradição: quanto mais velozes os obturadores, mais paralisadas as imagens (um carro de corrida parece congelado a 250 km/h). A foto sem foco perfeito e com baixa velocidade de exposição produz mais verossimilhança que a nítida.

    Capa desenvolveria essa técnica ao longo do conflito espanhol. É possível que a estivesse testando quando fotografou o "Soldado Espanhol Morrendo" (cujo negativo não faz parte da Valise), pois ao ver a foto publicada, ele comentou com o amigo O.D. Gallagher: "Se você quer boas fotos de ação, elas não podem estar em perfeito foco. Se sua mão treme um pouco, então você terá uma boa foto", segundo o livro "A Primeira Vítima", de Phillip Knightley.

    Já durante a Segunda Guerra, ele escreveria que suas fotos da invasão aliada da Sicília não eram obras-primas, mas "estavam ligeiramente fora de foco" (expressão que levou ao título do livro "Ligeiramente Fora de Foco", 2010). E atinge a perfeição nos 11 fotogramas que sobreviveram dos dois filmes que fez na invasão aliada no Dia D, em que os personagens parecem esfumaçados.

    Outro mandamento que Capa desenvolve ao longo do período coberto pelas fotos da Valise Mexicana é o de que a boa foto é feita bem perto da cena. No livro sobre a exposição da Valise, lançado em 2010, a curadora Cynthia Young comenta a diferença das fotos de Capa e de Gerda Taro, quando ambos cobriram o mesmo desfile de tropas republicanas em Madri. Gerda fotografa a cena ligeiramente de cima, com um ponto de vista superior e distante, o que garante a visão do contexto. Já Capa, se coloca junto aos soldados, no meio do movimento.

    Ali amadurecia seu mais famoso preceito, de que a foto só é boa quando feita de perto. Como escrevi nesta "Ilustríssima" ("O Mandamento de Capa", 12/2/2012), seguida religiosamente, a regra expõe a risco, muitas vezes desnecessário, gerações de fotógrafos. É o que se pode concluir da própria história dos autores desses 4.500 fotogramas: os três morreram em ação, no intervalo de duas décadas. Gerda foi a primeira, atropelada por um tanque na Espanha, em 1937; Capa pisou em uma mina na Indochina, em 1954; e Chim foi morto por um tiro quando cobria a Guerra do Suez, em 1956.

    LEÃO SERVA, 57, jornalista, é autor de "Um Tipógrafo na Colônia" (Publifolha).

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