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    SEVILHA, 2006

    Uma quadrinha sobre a humildade para curar a paralisia intelectual

    LÚCIA LEITÃO

    24/07/2016 02h00

    Aquela viagem tinha o sabor das coisas primeiras. Embora já conhecesse a Europa, estava em Sevilha para um congresso onde apresentaria parte do trabalho desenvolvido em meu doutoramento, cuja tese havia sido defendida pouco antes.

    Acervo Pessoal
    Dedicatoria em livro para Lucia Leitao. Arquivo Aberto, Ilustrissima Foto:Acervo Pessoal ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    Dedicatória de Rouanet a Lúcia Leitão, em um exemplar de "Os Dez Amigos de Freud". Lê-se: "À querida Lúcia, livro que mostra o quanto temos em comum. Beijos, Rouanet"

    Quem já viveu essa experiência sabe bem o quanto essa situação pode ser assustadora, uma vez que é a questão do reconhecimento que está em jogo. Some-se a isso o fato de que a minha tese era tida como ousada porque associava dois campos disciplinares distintos: a arquitetura e a psicanálise.

    A meu favor havia o fato de que, além de ter me debruçado sobre essa articulação interdisciplinar durante anos, o que me dava certa tranquilidade, não tinha problema com a fala em público, circunstância que intimida a muitos. Mas nada disso foi suficiente para diminuir o impacto da surpresa que me esperava na sala onde aconteceria o evento.

    Sentado em um canto da sala, um homem maduro, cabelos totalmente brancos, folheava um texto qualquer. Ele tinha um rosto que me parecia familiar. Demorei alguns segundos para que pudesse ligar o nome à pessoa. Seria Sergio Paulo Rouanet, diplomata e membro da Academia Brasileira de Letras de quem eu conhecia vários textos, mas cuja imagem só havia visto na TV?

    Não, disse a mim mesma, já tentando me acalmar, não era possível. Caso Rouanet estivesse naquele congresso, seria para proferir a conferência magna. Considerando sua estatura intelectual, com a qual eu me media, ele não poderia estar naquela sala, onde, embora houvesse acadêmicos de vários lugares do mundo, estavam apenas pessoas "do meu tamanho".

    Mais tarde eu saberia que Rouanet estava lá, naquela manhã, porque Barbara, sua esposa, de quem fiquei igualmente amiga, tinha uma palestra a proferir.

    Decidi me aproximar, discretamente, valendo-me de sua distração com a leitura, de modo a poder dar uma olhada no crachá que ele portava. Foi então que constatei, agora alarmada, que era mesmo Rouanet a pessoa ali presente.

    Rouanet era para mim tudo aquilo que eu queria ser "quando crescesse". Um intelectual que transitava com erudição e desenvoltura entre diversos campos do saber, atraindo a muitos com a lucidez do seu pensamento.

    Àquela altura, não me restava muito a fazer, uma vez que a mesa de palestrantes começava a se formar. A minha seria a segunda fala do dia. Sentei-me no meu lugar e, enquanto o primeiro pesquisador se apresentava, pensava em como me atreveria, eu, arquiteta, a falar de psicanálise para alguém que, entre outros textos conhecidos, havia escrito "A Epistemologia Freudiana".

    Foi então que se deu o milagre, um milagre psíquico, diriam, talvez, os psicanalistas. À espera da minha vez de falar, lembrei de meu pai e de uma quadrinha em particular, dentre as muitas que ele usava durante nossa infância para ensinar a mim e aos meus irmãos valores que lhe eram caros. A quadrinha dizia assim: "Sê, no grande mosaico da vida, / a pedrinha que és / e deixa que os outros sejam / as pedrinhas que são".

    Enquanto pensava nesses versinhos e recebia, psíquica e simbolicamente, a autorização dada por meu pai para que ocupasse plenamente o meu lugar no mosaico da vida, ouvi o meu nome ser chamado. Fui lá e fiz a minha parte, mostrando, agora tranquilamente, a pedrinha que eu era.

    De volta ao meu lugar, senti uma mão no meu ombro. Era Rouanet me dizendo o quanto tinha apreciado a minha fala. "Nunca havia pensado nisso", disse ele, referindo-se à articulação entre arquitetura e psicanálise.

    A partir de então, ficamos amigos, e já são muitas as oportunidades de encontro que a vida acadêmica tem nos proporcionado, seja no Rio de Janeiro, no Recife, na Sorbonne...

    Nunca mais vivenciei um momento de "paralisia intelectual" como aquele que vivi em Sevilha, quando aprendi, definitivamente, a ser a pedrinha que eu sou no mosaico da vida. Obrigada, pai.

    LÚCIA LEITÃO, 60, professora de arquitetura da Universidade Federal de Pernambuco, é autora de "Onde Coisas e Homens se Encontram" (Annablume).

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