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    Em novo livro, médico vencedor do Pulitzer traça limites dos genes

    MARCELO LEITE

    24/07/2016 02h00

    Ao lado de Atul Gawande, Siddhartha Mukherjee tem produzido muito da melhor prosa sobre medicina e ciência que se pode encontrar. Médicos e escritores de talento, ambos têm lugar garantido no panteão que abriga Oliver Sacks e poucos mais.

    Após abocanhar o Prêmio Pulitzer de não ficção em 2011 com uma obra sobre câncer ("O Imperador de Todos os Males", Companhia das Letras), Mukherjee repete um espetáculo de erudição, beleza, precisão e profundidade com "The Gene" [Simon & Shuster, 608 págs., R$ 79,80 na Livraria Cultura; R$ 59,54 ebook na Amazon].

    Ao escolher como subtítulo do novo livro "Uma História Íntima", ele chama a atenção de maneira feliz para as muitas qualidades da obra –e para aquela que talvez seja sua única fraqueza.

    A longa narrativa sobre o átomo da hereditariedade soa íntima porque é da espécie humana e de cada um de nós que ela fala. Não só do quanto de nossa natureza, de nosso comportamento e de nossos males está contido em germe numa sucessão de 3 bilhões de moléculas (bases nitrogenadas) –o genoma–, mas, igualmente, da irresistível tendência para tudo substancializar e, nesse caso, fantasiar os genes como sede de toda identidade, individual e coletiva.

    Mukherjee não disse, mas poderia ter dito: DNA não é destino. Ninguém escapa dele (do DNA), por certo, mas o alcance e a intensidade de seus efeitos dependerá muito de quais genes e quais defeitos ou qualidades estão em discussão. Nós somos o que o ambiente, a biografia e o acaso fizeram do que o genoma fez conosco.

    ESQUIZOFRENIA

    O autor se estende sobre a esquizofrenia para explicar a intricada ação dos genes no resultado final que se chama pessoa. Aqui sua história adquire um outro viés de intimidade, a do próprio Mukherjee, que tem na família dois tios e um primo nessa condição, pelo lado paterno.

    São cheias de ternura e compaixão as passagens do livro em que fala do pai e de sua angústia com a perspectiva de soçobrar na doença mental (sóbrio, o médico não toca na sua própria). Juntos voltam a Calcutá, onde a família se refugiara em 1947, após a partilha de Bengala entre Índia e Paquistão, e visitam a antiga casa paterna.

    Mukherjee vê o pai entrar sem bater na casa habitada por desconhecidos e teme pela reação da dona quando ela aparece. A excelência literária do texto pode ser avaliada pelo modo como a cena vai sendo narrada:

    "A mulher reconheceu meu pai –não o próprio homem, que nunca encontrara, mas a forma do homem: um menino voltando para casa. Em Calcutá –em Berlim, em Peshawar, em Déli, em Dacca– homens assim parecem surgir a cada dia, brotando do nada pelas ruas e entrando sem aviso nas casas, como quem cruza casualmente as soleiras em direção a seu passado."

    Não era uma casa qualquer, mas aquela em que Rajesh e Jagu tinham perdido o juízo e vegetado. Dela se afastara o pai, mudando-se para Nova Déli, para longe da loucura que acreditava carregar no sangue. E que descreveu para o escritor, na língua materna, como "abhed" –algo indivisível, inseparável e impenetrável. Ou seja, sua própria identidade.

    O motivo ressurge em várias partes do livro, sempre com delicadeza e sem pieguice. Centenas de páginas à frente, Mukherjee explica como nunca foi encontrado "o gene da esquizofrenia", e não foi por falta de procura.

    Nada menos que 108 trechos de DNA já foram implicados na doença, mas quase nada se sabe sobre suas combinações e os fatores ambientais capazes de desencadeá-la. O que nem sempre acontece, diz e repete o autor.

    Mukherjee assinala, dessa maneira, a ausência de uma causação mecânica, ou do que em genética se chama de baixa penetrância (proporção de portadores de um genótipo que de fato manifestam o fenótipo correspondente).

    DNA não é destino –e também por isso tem fracassado a busca de uma cura para a esquizofrenia pela via dos genes.

    Há algo mais de íntimo, ou quase narcísico, no livro: o apego de Mukherjee ao acervo de informações proveniente de sua pesquisa hercúlea. Ele leva a sério demais a pretensão de fazer uma história do gene, como no caso do câncer, e contempla o leitor com uma obra exaustiva, em todos os sentidos.

    Seu recuo a Platão e Aristóteles, no esforço de recensear todas as hipóteses já aventadas sobre hereditariedade, sobrecarrega a leitura. Mendel e Darwin, tudo bem, mas passam um pouco dos limites os arrastados excursos com Galton e Davenport (eugenia), Lysenko e Vavilov (neolamarckismo) ou Morgan e Dobzhansky (mutações). Para nada dizer da abstrusa narrativa sobre hemofilia na família do czar Nicolau 2º.

    Até mesmo a crônica das descobertas em torno do DNA –de Avery a Watson&Crick e Nirenberg– ganharia se abreviada, pois conduziria mais rapidamente ao cerne do livro (as técnicas de intervenção no genoma e suas implicações).

    Além disso, toda essa história já recebera tratamento mais minucioso nas obras "The Eighth Day of Creation" (o oitavo dia da criação), de Horace Freeland Judson, e "The Path to the Double Helix" (o caminho para a dupla hélice), de Robert Olby (infelizmente nunca traduzidas no Brasil).

    DETERMINISMO

    O melhor do livro está na franqueza, sem perder o otimismo, com que Mukherjee reconhece e expõe as limitações da genômica. Elas aparecem em aberto contraste com as expectativas ingênuas induzidas no senso comum com a falsa noção determinista de que por trás de cada moléstia (ou característica) há um gene (ou poucos) e uma porta escancarada para uma cura (ou para um "melhoramento").

    Mukherjee encara a complexidade do genoma, de suas interações com o ambiente e da resultante na conformação de cada indivíduo. Descreve-a, dá exemplos de fracassos retumbantes em experimentos terapêuticos ocasionados por ela, mas não recua um passo na certeza de que nada, em princípio, impede que venha a ser desconstruída, entendida e até manipulada pela ciência.

    "É impossível entender a biologia dos organismos e das células ou a evolução –ou ainda a patologia, o comportamento, o temperamento, a doença, a raça, a identidade ou o destino humanos", afirma, "sem primeiro se haver com o conceito de gene."

    Recuperando uma ideia feliz de Richard Dawkins, ele esclarece que genes não são como plantas arquitetônicas, desenhos que especificam parte por parte o prédio construído. Eles têm mais semelhança com receitas de cozinha, que prescrevem processos e podem dar errado (ou certo) de inúmeras maneiras.

    "Genes compõem os fios da rede; o detrito retido nela é o que transforma cada rede individual em um ser."

    DESEQUILÍBRIOS

    O Projeto Genoma Humano, concluído em 2001, trouxe um enorme avanço para a pesquisa em genética, mas não "desvendou o Livro da Vida" nem "o que significa ser humano", como se dizia na época. Quinze anos depois, os resultados colhidos se resumem a maior precisão em diagnósticos e pouco avanço em tratamentos.

    Como expõe Mukherjee, mesmo que possamos entender a natureza do destino codificado em genomas individuais, é possível que só nos tornemos capazes de predizê-lo em termos de probabilidades, mais que de certezas. Por outro lado, uma vez adquiridas tecnologias (ainda que elas sejam ineficientes e muito onerosas) para alterar essas probabilidades de maneira intencional, nosso futuro mudaria completamente.

    Esse é o ponto central do livro: o conhecimento sobre os meandros do genoma aumenta e vai seguir aumentando; já existem tecnologias para alterá-lo de maneira quase precisa, ainda que sem controle seguro das consequências; não há clareza alguma sobre que limites devem ser respeitados na marcha (tecnicamente) inexorável para a modificação genética de seres humanos.

    Uma das dificuldades, talvez a principal, será definir quais males podem ser considerados indiscutíveis, passíveis de serem extirpados do patrimônio genético da espécie de modo legítimo. Mutações e polimorfismos genéticos não são pecados, mas variações que servem de matéria-prima para a seleção natural; seu caráter deletério (ou vantajoso) pode depender de modo crucial do contexto.

    Mukherjee ressalta que os desequilíbrios de comportamento podem frequentemente manifestar-se de formas mais brandas, ainda que não desprovidas de sofrimento, e que trazem uma intrigante associação com personalidades criativas, geniais.

    Seria sábio tentar eliminar esses distúrbios da face da Terra?

    Mukherjee faz sua a ponderação do pintor norueguês Edvard Munch, precursor do expressionismo célebre pela tela "O Grito" (1893): "Meus problemas são parte de mim e de minha arte. São indistinguíveis de mim, e o tratamento destruiria minha arte. Quero preservar esses sofrimentos".

    MARCELO LEITE, 58, repórter especial da Folha, é autor de "Promessas do Genoma" (Editora Unesp).

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