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    Leia trecho do romance "Baseado em Fatos Reais", de Delphine de Vigan

    24/07/2016 02h00

    DELPHINE DE VIGAN
    tradução CAROLINA SELVATICI
    ilustração FERNANDO MOLINA

    SOBRE O TEXTO O trecho acima faz parte de "Baseado em Fatos Reais", que a editora Intrínseca lança no começo de agosto. Primeiro livro da escritora francesa traduzido no Brasil, é o mais recente de seus oito romances. O livro narra a relação entre uma escritora em crise criativa e L., mulher que passa a controlar a narradora.

    Fernando Molina
    Ilustração de Fernando Molina para a Ilustrissima de 24.07. ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***

    Estávamos sentadas no sofá, L. e eu. Eu havia saído primeiro da pista de dança, em um momento que a música deixara de me agradar.

    L., que tinha dançado perto de mim por mais de uma hora, não demorara a se juntar a mim. Com um sorriso, ela conseguira o espaço estreito que me separava de meu vizinho, fazendo-o se aproximar do braço do sofá e permitindo que ela se sentasse confortavelmente. Cúmplice, ela havia lançado para mim um gesto de vitória.

    – Você fica muito bonita quando dança –declarara ela, ao se sentar.– Fica muito bonita porque dança como se achasse que ninguém está olhando, como se estivesse sozinha; aliás, tenho certeza de que você dança assim sozinha no seu quarto ou na sua sala.

    (Minha filha, quando era adolescente, me disse um dia que, quando fosse adulta, guardaria essa lembrança de mim, a mãe que dançava no meio da sala para demonstrar alegria.)

    Agradeci o elogio a L., mas não soube o que responder; além disso, ela não parecia esperar nada, continuava a observar a pista, um sorriso nos lábios. Eu a observei de soslaio. L. usava uma calça preta, solta, uma camisa creme cuja gola era decorada com uma estreita tira de seda ou couro escuro, eu não conseguia definir o material com precisão. L. era perfeita. Pensei nas propagandas da marca Gerard Darel, me lembro muito bem delas, era exatamente aquilo, aquela sofisticação simples, moderna, a inteligente mistura de tecidos clássicos, burgueses, e detalhes audaciosos.

    – Sei quem você é e estou feliz em encontrá-la –acrescentou ela, depois de um instante.

    Eu deveria sem dúvida ter perguntado como ela se chamava, por quem tinha sido convidada, talvez até mesmo o que fazia da vida, mas me senti intimidada por aquela mulher, por sua segurança tranquila. L. era exatamente o tipo de mulher que me fascina.

    L. era impecável, os cabelos lisos, as unhas lixadas com perfeição e cobertas de um vermelho vivo que parecia brilhar no escuro.

    Sempre admirei as mulheres que usam esmalte. Unhas pintadas representam para mim uma ideia de sofisticação feminina que, acabei admitindo, pelo menos em certo aspecto, sempre seria inacessível para mim. Tenho mãos largas demais, grandes demais, fortes demais de certa maneira e, quando tento pintar minhas unhas, elas parecem ainda maiores, como se essa tentativa vã de travesti-las salientasse seu caráter masculino (de qualquer modo, por si só o procedimento sempre me pareceu trabalhoso. O gesto em si exige uma minúcia, uma paciência que não tenho).

    Baseados Em Fatos Reais
    Delphine De Vigan
    l
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    Quanto tempo é necessário para ser uma mulher assim?, perguntei-me enquanto observava L., como havia observado dezenas de mulheres antes dela, no metrô, na fila de espera dos cinemas, nas mesas de restaurantes. Penteadas, maquiadas, engomadas. Sem nenhum amassadinho. Quanto tempo levavam toda manhã para chegar àquele estado de perfeição e quanto tempo levavam para se retocar à noite, antes de sair? Que tipo de vida é preciso levar para se ter a liberdade de domar os cabelos com uma escova, trocar de bijuteria todo dia, selecionar e variar as roupas, não deixar nada ao acaso?

    Hoje sei que não é apenas uma questão de disponibilidade, mas de tipo, que tipo de mulher escolhemos ser, se é que temos escolha.

    Lembro que na primeira vez que encontrei minha editora em seu pequeno escritório na rue Jacob, primeiro fiquei fascinada com sua sofisticação, as unhas, claro, mas também todo o restante, simples e de um gosto impecável. Ela exalava uma feminilidade um pouco clássica, mas perfeitamente dosada, dominada, que havia me impressionado. Quando conheci François, estava convencida de que ele gostava de mulheres de outro tipo que não o meu, mais arrumadas, mais refinadas, sob controle. Revejo-me em um café explicando a uma de minhas amigas os motivos para um fracasso anunciado, simplesmente não era possível, mas claro, por causa disso, porque François gostava de mulheres de cabelos lisos e dóceis (eu unia gestos às palavras), e eu era uma pessoa hirsuta. Essa diferença parecia resumir discrepâncias mais profundas, mesmo fundamentais, de maneira geral nosso encontro tinha sido apenas um banal erro de julgamento. Precisei de tempo para admitir que não era esse o caso.

    DELPHINE DE VIGAN, 50, escritora francesa, foi vencedora do prêmio Renaudot em 2015.

    CAROLINA SELVATICI, 34, tradutora, é professora dos cursos de formação de tradutores da PUC-Rio e da escola Brasillis.

    FERNANDO MOLINA, 26, é ilustrador.

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