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    Escola sem Partido não resolve o problema e torna o professor refém

    JOEL PINHEIRO DA FONSECA

    31/07/2016 02h00

    RESUMO O projeto Escola sem Partido não cumpre o papel a que supostamente se propõe. Numa perspectiva que considera liberal, o artigo advoga que visões ideológicas parciais de esquerda ou de direita deveriam ceder lugar a uma educação capaz de fornecer instrumentos para o estudante tomar as suas próprias decisões.

    Divulgação
    novembro 2015 Audiencia Publica "Escola sem Partido"
    Audiência pública do movimento "Escola sem Partido"

    No segundo ano do ensino médio, tive que aprender, na aula de geografia, os males da globalização, as vantagens do socialismo e, para completar, a diferença entre mais-valia absoluta e mais-valia relativa. Ao mesmo tempo, não me foram passados nem os rudimentos de oferta e demanda, sistema de preços e vantagens comparativas, tópicos que, esses sim, fazem parte da ciência econômica até hoje. O professor em questão era autoritário e não tolerava discordâncias em sala.

    Meu antigo colégio é um dos melhores do Brasil e me deu uma excelente formação. Mesmo ali, esse professor enviesado no conteúdo e autoritário na exposição fazia da aula um espaço de doutrinação. Em muitas escolas do país a situação é ainda pior, conforme relatos, vídeos e fotos publicados na internet têm revelado. Professores fazem de suas salas palanque político ou ideológico e de seus alunos um rebanho a ser convertido.

    O projeto de lei Escola sem Partido aparece para, supostamente, dar um fim a essa situação. No entanto, propõe meios tão nocivos e é guiado por um ideal tão questionável que, se passar e pegar, deve causar mais mal do que bem.

    Ele propõe duas medidas práticas: a primeira é colar um cartaz em todas as salas de aulas do país com os "deveres do professor", uma lista de seis itens bastante genéricos, como a proibição de promover suas próprias opiniões e preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas ou partidárias. Por si só, um cartaz não é grande coisa. Mas ele adquire uma conotação de ameaça ao ser acompanhado do segundo ponto: todas as secretarias de educação devem estabelecer um canal de comunicação para receber denúncias anônimas contra professores que violarem seus deveres; denúncias que, por sua vez, deverão ser encaminhadas ao Ministério Público.

    Em outras palavras: dá-se a todos os estudantes (e a seus pais, cujas convicções também devem ser preservadas) uma arma a ser usada contra qualquer professor que lhes desagrade. Foi mal na prova de história? O professor não aceitou a resposta do aluno? Oportunidade perfeita para denunciar um ato terrível de doutrinação.

    SEM LIMITES

    Não há limite para o que a lei poderá ser usada para coibir: ensino da teoria da evolução, educação sexual, discussão de gênero, toda e qualquer interpretação histórica etc. Na prática, todo conteúdo curricular virará objeto de cabo de guerra entre diversas militâncias organizadas, com o professor no meio, sem nenhuma autonomia. Vai acabar com a doutrinação? Talvez. O certo é que acabará com a própria possibilidade de uma aula enriquecedora e minará ainda mais a relação entre professores e alunos.

    A oposição que a esquerda –representada, por exemplo, pelos sindicatos de professores– tem feito ao Escola sem Partido chega a ser pior do que sua defesa. Defender-se das intenções do projeto alegando que "toda fala ou ato humano são inerentemente carregados de intenções –portanto, são atos políticos" (conforme a moção de repúdio publicada por entidades do setor) é aceitar como inevitável e até desejável a doutrinação em sala. É ser incapaz de distinguir entre uma aula séria e panfletagem de quinta categoria. Há professores lutando justamente para preservar seu direito de fazer a cabeça dos alunos pela causa que eles consideram certa.

    Nesse debate, entram diferentes concepções do que é a educação e de qual sua finalidade na vida do estudante. Para uma, que podemos chamar de esquerda, o papel da educação é mostrar que vivemos em um sistema injusto e atiçar os jovens a lutarem pelos direitos que lhes são privados. Para outra, de direita, a educação serve para reforçar os valores tradicionais ou religiosos passados de geração em geração e, caso se veja ameaçada pelo sistema de ensino, deve-se lutar para amordaçá-lo.

    Para uma terceira vertente, que podemos chamar de liberal (em sentido ético, não econômico), educar é dar ao jovem as ferramentas necessárias para formar suas próprias crenças e convicções, formar seus critérios, ensinando-o a pensar por conta própria. Apenas para essa concepção faz sentido a distinção entre educar e doutrinar. E é justamente ela que ficará seriamente comprometida se o Escola sem Partido vingar.

    A concepção de ensino neutro que o projeto pinta como ideal é vaga e mal formulada. É impossível que um professor dedique, por exemplo, igual profundidade a diferentes teorias e leituras da história. A ideia de que o ensino não deve ofender a sensibilidade moral de nenhum aluno (ou, mais ainda, de pais de alunos) é, ademais, incompatível com uma aula dada em sala de aula plural e com dezenas de alunos. Sempre há alguém que se sentirá ofendido e isso não é necessariamente ruim.

    IMPOSSIBILIDADE

    A neutralidade plena pretendida pelo Escola sem Partido é impossível, e por isso todo professor terá o flanco aberto a ataques. Cada professor reflete, em sala, a formação que teve e os autores de sua preferência. Não é possível cobrir todas as diferentes escolas de pensamento em sala, e a escolha de mostrar uma ou duas consideradas mais relevantes já carrega consigo uma dose de viés pessoal. A questão é se isso será feito com mais ou menos honestidade, se apresentará argumentos, se fará referência a outras abordagens sem demonizá-las e se abrirá espaço para questionamentos dos alunos, incentivando seu crescimento intelectual, ou se será panfletário e enviesado.

    Não vamos jamais conseguir legislar a melhora do ensino. O problema de viés de esquerda existe e uma de suas causas está nos cursos de pedagogia e licenciatura, que precisam ser urgentemente reformulados para que percam menos tempo com teorias abstratas e militância política e ensinem o futuro professor a lidar com uma sala de aula real. Só teremos um ensino mais plural com entrada de professores com visões diferentes, e não com a censura à discussão, que é, na verdade, o fim da possibilidade do ensino.

    Há que se considerar, por fim, a relevância do projeto. Em primeiro lugar porque, hoje em dia, com internet e smartphones, o poder do professor em sala –que nunca foi tanto quanto pintam os defensores do Escola sem Partido– está menor do que nunca. Aulas são filmadas e divulgadas na rede, afirmações são imediatamente contestadas com uma breve consulta on-line. O Escola sem Partido nasce obsoleto. Questionar um professor e encontrar referências fora da sala de aula nunca foi tão fácil. Em vez de tentar legislar a melhora do ensino –tentativa fadada ao fracasso– deveríamos nos preocupar em dar a ele mais ferramentas para fazer melhor seu trabalho, que, afinal, faz falta.

    É impossível discutir esse tema no Brasil sem suspeitar que estamos focando a questão errada, gastando tempo demais com um problema que é, infelizmente, secundário. Pois o fato mais grave do ensino básico no Brasil não é seu viés ideológico, e sim sua incapacidade de ensinar os conteúdos elementares.

    Jovens terminam o ensino médio sem conseguir compreender um texto minimamente complexo ou calcular frações. O grande problema da educação no Brasil não é que jovens leiam muito Marx na escola, é que saiam da escola sem saber ler. Ao colocar uma corda no pescoço de todos os professores e fazer dessa carreira algo ainda mais estressante e menos atrativo, corre-se o sério risco de prejudicar nosso sistema educacional como um todo. O que já não é bom ainda pode piorar.

    JOEL PINHEIRO DA FONSECA, 31, economista e mestre em filosofia, escreve para o site Spotniks.

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