RESUMO O projeto Escola sem Partido não cumpre o papel a que supostamente se propõe. Numa perspectiva que considera liberal, o artigo advoga que visões ideológicas parciais de esquerda ou de direita deveriam ceder lugar a uma educação capaz de fornecer instrumentos para o estudante tomar as suas próprias decisões.
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Audiência pública do movimento "Escola sem Partido" |
No segundo ano do ensino médio, tive que aprender, na aula de geografia, os males da globalização, as vantagens do socialismo e, para completar, a diferença entre mais-valia absoluta e mais-valia relativa. Ao mesmo tempo, não me foram passados nem os rudimentos de oferta e demanda, sistema de preços e vantagens comparativas, tópicos que, esses sim, fazem parte da ciência econômica até hoje. O professor em questão era autoritário e não tolerava discordâncias em sala.
Meu antigo colégio é um dos melhores do Brasil e me deu uma excelente formação. Mesmo ali, esse professor enviesado no conteúdo e autoritário na exposição fazia da aula um espaço de doutrinação. Em muitas escolas do país a situação é ainda pior, conforme relatos, vídeos e fotos publicados na internet têm revelado. Professores fazem de suas salas palanque político ou ideológico e de seus alunos um rebanho a ser convertido.
O projeto de lei Escola sem Partido aparece para, supostamente, dar um fim a essa situação. No entanto, propõe meios tão nocivos e é guiado por um ideal tão questionável que, se passar e pegar, deve causar mais mal do que bem.
Ele propõe duas medidas práticas: a primeira é colar um cartaz em todas as salas de aulas do país com os "deveres do professor", uma lista de seis itens bastante genéricos, como a proibição de promover suas próprias opiniões e preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas ou partidárias. Por si só, um cartaz não é grande coisa. Mas ele adquire uma conotação de ameaça ao ser acompanhado do segundo ponto: todas as secretarias de educação devem estabelecer um canal de comunicação para receber denúncias anônimas contra professores que violarem seus deveres; denúncias que, por sua vez, deverão ser encaminhadas ao Ministério Público.
Em outras palavras: dá-se a todos os estudantes (e a seus pais, cujas convicções também devem ser preservadas) uma arma a ser usada contra qualquer professor que lhes desagrade. Foi mal na prova de história? O professor não aceitou a resposta do aluno? Oportunidade perfeita para denunciar um ato terrível de doutrinação.
SEM LIMITES
Não há limite para o que a lei poderá ser usada para coibir: ensino da teoria da evolução, educação sexual, discussão de gênero, toda e qualquer interpretação histórica etc. Na prática, todo conteúdo curricular virará objeto de cabo de guerra entre diversas militâncias organizadas, com o professor no meio, sem nenhuma autonomia. Vai acabar com a doutrinação? Talvez. O certo é que acabará com a própria possibilidade de uma aula enriquecedora e minará ainda mais a relação entre professores e alunos.
A oposição que a esquerda –representada, por exemplo, pelos sindicatos de professores– tem feito ao Escola sem Partido chega a ser pior do que sua defesa. Defender-se das intenções do projeto alegando que "toda fala ou ato humano são inerentemente carregados de intenções –portanto, são atos políticos" (conforme a moção de repúdio publicada por entidades do setor) é aceitar como inevitável e até desejável a doutrinação em sala. É ser incapaz de distinguir entre uma aula séria e panfletagem de quinta categoria. Há professores lutando justamente para preservar seu direito de fazer a cabeça dos alunos pela causa que eles consideram certa.
Nesse debate, entram diferentes concepções do que é a educação e de qual sua finalidade na vida do estudante. Para uma, que podemos chamar de esquerda, o papel da educação é mostrar que vivemos em um sistema injusto e atiçar os jovens a lutarem pelos direitos que lhes são privados. Para outra, de direita, a educação serve para reforçar os valores tradicionais ou religiosos passados de geração em geração e, caso se veja ameaçada pelo sistema de ensino, deve-se lutar para amordaçá-lo.
Para uma terceira vertente, que podemos chamar de liberal (em sentido ético, não econômico), educar é dar ao jovem as ferramentas necessárias para formar suas próprias crenças e convicções, formar seus critérios, ensinando-o a pensar por conta própria. Apenas para essa concepção faz sentido a distinção entre educar e doutrinar. E é justamente ela que ficará seriamente comprometida se o Escola sem Partido vingar.
A concepção de ensino neutro que o projeto pinta como ideal é vaga e mal formulada. É impossível que um professor dedique, por exemplo, igual profundidade a diferentes teorias e leituras da história. A ideia de que o ensino não deve ofender a sensibilidade moral de nenhum aluno (ou, mais ainda, de pais de alunos) é, ademais, incompatível com uma aula dada em sala de aula plural e com dezenas de alunos. Sempre há alguém que se sentirá ofendido e isso não é necessariamente ruim.
IMPOSSIBILIDADE
A neutralidade plena pretendida pelo Escola sem Partido é impossível, e por isso todo professor terá o flanco aberto a ataques. Cada professor reflete, em sala, a formação que teve e os autores de sua preferência. Não é possível cobrir todas as diferentes escolas de pensamento em sala, e a escolha de mostrar uma ou duas consideradas mais relevantes já carrega consigo uma dose de viés pessoal. A questão é se isso será feito com mais ou menos honestidade, se apresentará argumentos, se fará referência a outras abordagens sem demonizá-las e se abrirá espaço para questionamentos dos alunos, incentivando seu crescimento intelectual, ou se será panfletário e enviesado.
Não vamos jamais conseguir legislar a melhora do ensino. O problema de viés de esquerda existe e uma de suas causas está nos cursos de pedagogia e licenciatura, que precisam ser urgentemente reformulados para que percam menos tempo com teorias abstratas e militância política e ensinem o futuro professor a lidar com uma sala de aula real. Só teremos um ensino mais plural com entrada de professores com visões diferentes, e não com a censura à discussão, que é, na verdade, o fim da possibilidade do ensino.
Há que se considerar, por fim, a relevância do projeto. Em primeiro lugar porque, hoje em dia, com internet e smartphones, o poder do professor em sala –que nunca foi tanto quanto pintam os defensores do Escola sem Partido– está menor do que nunca. Aulas são filmadas e divulgadas na rede, afirmações são imediatamente contestadas com uma breve consulta on-line. O Escola sem Partido nasce obsoleto. Questionar um professor e encontrar referências fora da sala de aula nunca foi tão fácil. Em vez de tentar legislar a melhora do ensino –tentativa fadada ao fracasso– deveríamos nos preocupar em dar a ele mais ferramentas para fazer melhor seu trabalho, que, afinal, faz falta.
É impossível discutir esse tema no Brasil sem suspeitar que estamos focando a questão errada, gastando tempo demais com um problema que é, infelizmente, secundário. Pois o fato mais grave do ensino básico no Brasil não é seu viés ideológico, e sim sua incapacidade de ensinar os conteúdos elementares.
Jovens terminam o ensino médio sem conseguir compreender um texto minimamente complexo ou calcular frações. O grande problema da educação no Brasil não é que jovens leiam muito Marx na escola, é que saiam da escola sem saber ler. Ao colocar uma corda no pescoço de todos os professores e fazer dessa carreira algo ainda mais estressante e menos atrativo, corre-se o sério risco de prejudicar nosso sistema educacional como um todo. O que já não é bom ainda pode piorar.
JOEL PINHEIRO DA FONSECA, 31, economista e mestre em filosofia, escreve para o site Spotniks.