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    Sob cartilha ideológica, governos reforçam o que mais querem combater

    SAMY ADGHIRNI

    31/07/2016 02h00

    Faz cinco anos que vivo em países governados por regimes ideológicos. De 2011 a 2014, fui correspondente da Folha na República Islâmica do Irã. Há dois anos exerço a mesma função na Venezuela chavista. Também fiz reportagens em outros países com semelhante rigidez de valores oficiais, como a Cuba castrista e a Síria do clã Assad.

    Essa experiência me faz pensar que governos baseados em cartilhas de pensamento nunca dão certo. Alguns dirão que toda política é ideológica, e isso é verdade. Mas os regimes aqui citados dão quase ou nenhuma margem para a dissonância, cometem atrocidades em nome dos ideais da nação e martelam uma propaganda escandalosamente mentirosa.

    Juan Barreto/AFP
    A inscription on a wall in the low income Santa Rita neighborhood in Maracay, 70km from Caracas, reads "Corrupt military, the people is hungry", on July 21, 2016. Long lines, chronic shortages, hyperinflation and violent crime have left President Nicolas Maduro fighting for his political life. / AFP PHOTO / JUAN BARRETO
    Pixação em um muro do bairro de Santa Rita, em Maracay, próximo a Caracas

    O sinal mais claro da falência desses sistemas é que todos acabam reforçando exatamente aquilo que dizem combater. Ninguém é mais capitalista que os ucranianos que viveram sob jugo soviético. O franquismo fez tanto mal aos espanhóis que até hoje a sociedade rejeita o modelo de extrema-direita, em ascensão no resto da Europa.

    O caso da Venezuela é dos mais eloquentes.

    ESQUERDA ANTICHÁVEZ

    Dias atrás, tive uma conversa interessante com um casal de professores universitários venezuelanos. Ambos historiadores, sessentões e de esquerda. Mas detestam o chavismo, que consideram autoritário, corrupto e incompetente.

    Contaram-me a dor que sentiram ao ver recentemente que uma agência dos correios em Caracas levava a bandeira de Cuba em vez da venezuelana. "O país está entregue aos cubanos", suspirou o marido. O colapso econômico e a calamidade social na Venezuela afastaram do chavismo até organizações de esquerda, como o sindicato UNT (União Nacional de Trabalhadores) e o partido Bandeira Vermelha, convertidos à oposição.

    O movimento Marea Socialista, que reúne intelectuais de extrema-esquerda, se desvinculou do chavismo depois que Nicolás Maduro assumiu a presidência, em 2013.

    Algo semelhante ocorreu após a revolução islâmica de 1979 no Irã, quando muita gente resolveu se distanciar da religião depois que as mesquitas se tornaram uma extensão do governo.

    ELOGIOS A TRUMP

    O ódio ao chavismo é tão visceral nas classes média e alta da Venezuela que qualquer ideia na direção contrária é válida. É comum ouvir venezuelanos torcendo para que "apareça algum Pinochet para colocar ordem na casa" ou elogiando o candidato republicano à Casa Branca Donald Trump.

    Já Barack Obama, mesmo tendo aplicado as primeiras sanções norte-americanas contra o governo chavista, é descrito em rodas de conversa como um líder frouxo que foi ludibriado pelos irmãos Castro ao normalizar relações com Havana.

    Essas sanções contra a Venezuela, aliás, têm apoio de muitos venezuelanos, algo impensável em outros lugares.

    Até em bairros pobres de Caracas há gente amaldiçoando Hugo Chávez por ter "trazido essa desgraça de socialismo."

    IRRECONCILIÁVEIS

    Regimes ideológicos contaminam toda a sociedade. Um dos aspectos mais tóxicos dessa onipresença é a lógica binária do nós contra eles alimentada pelos governos, que racha famílias e destrói amizades.

    Outra consequência nociva é a sede de vingança dos opositores. Acertos de conta costumam ser sangrentos quando a história dá voltas e liberta as vítimas. Não sobrou muita coisa dos partidários de ditadores depostos, como Nicolae Ceausescu e Saddam Hussein.

    Se Maduro e seus aliados se agarram com tanta força ao poder é em grande parte porque sabem a fúria que os espera na saída.

    O problema dos venezuelanos é que a oposição também não é flor que se cheire. O antichavismo está cheio de racistas, corruptos e golpistas. Chávez, aliás, só se radicalizou a partir de 2002, depois que empresários e militares tentaram derrubar seu governo democraticamente eleito.

    ADIÓS

    Esta coluna encerra minha participação neste espaço. Muito obrigado a todos.

    Samy Adghirni, 37, é correspondente da Folha em Caracas.

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